terça-feira, agosto 28, 2007

Mais Estranho Que A Ficção


Em Estética da Criação Verbal, Mikhail Bakhtin reflete muito poeticamente sobre a fenomenologia da relação entre o autor e o seu herói. Pensamos bastante nesta relação ao ver Mais Estranho Que A Ficção (“Stranger Than Fiction”, EUA, 2006, dir.: Marc Forster). O autor não é apenas o criador de uma ficção (como o filme procura mostrar numa chave de fábula), e o seu herói-protagonista não é apenas um fulcro que será preenchido com a própria subjetividade do escritor. Em termos psíquicos, ambos são individualidades bastante concretas e independentes (quem nunca ouviu falar que o personagem, a partir de certo momento da narrativa, “ganha” vida própria? – coisa que a fábula do filme também ilustra); ambos possuem um conjunto único de experiências de vida e de fato vivem em universos concretos (é preciso não confundir a noção de “concreto” com a noção de “real”: o concreto pode não ter uma existência que nós chamamos de real, mas é dotado de tanto valor e significado reais quanto aquela), posto que separados.

Mas o mais interessante é que, não importa as diferentes densidades das instâncias do autor e daquela do herói, ambos possuirão uma relação que poderá se tornar bem próxima, apesar de todos os pesares. Na verdade, a relação é sempre muito polêmica, mas deve buscar um equilíbrio de forças. Digamos que o autor não pode simplesmente encarnar ou dirigir o herói como a uma marionete, assim como este não pode dominar o seu criador (o filme também mostra essa difícil disputa). Uma relação sadia entre o autor e o herói, independente da mistura comum entre atração e repugnância, entre amor e ódio, entre realidade e ficção, será aquela em que o herói receberá uma influência do seu autor, transformando-se dinamicamente à medida em que se desenvolve fenomenologicamente o relacionamento entre ambos; por outro lado, o autor também sofrerá a influência transformadora do seu herói. Como indivíduos psiquicamente diferentes, ambos se completarão, enriquecendo humanamente um ao outro.

Isso é o que de mais belo e significativo tem a mostrar a película Mais Estranho Que A Ficção. No fundo, tudo isso tem a ver com a velha e manjada dialética da “vida imita a arte, enquanto a arte imita a vida”. Assim, é bom que uma comédia hollywoodiana mais ou menos pretensiosa nos faça refletir sobre coisas importantes que, quando não tomamos cuidado, acabam jogadas ao quintal da banalidade. Discutindo a fenomenologia da relação autor-herói numa narrativa literária, muitas vezes nos apegamos demasiada ou exclusivamente à instância do herói e em como o autor age sobre ele (o que é natural, pois é óbvio que muitas vezes o personagem de um livro se dá muito mais à análise do que o seu autor). Entretanto, é muito interessante e importante também descobrir o como que o herói age sobre o seu autor (apesar das muitas, óbvias e às vezes incontornáveis dificuldades). São pouquíssimas as obras em que podemos perceber isso mais claramente, mas dentre elas a que mais me chamou a atenção é a novela A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Nesta “remarkable piece” da nossa literatura, a protagonista Macabéa “age” de maneira muito viva sobre o seu autor-narrador, que também é de ficção (inventado pela própria Clarice Lispector).

Ao ver, no filme de Marc Forster, a maneira como a autora Karen Eiffel (Emma Thompson) se preocupa e se angustia pelo destino do seu herói Harold Crick (Will Ferrell), tanto no significado literário, poético, quanto no sentido humano da experiência específica que ela o fará sofrer, lembrei muito de A Hora da Estrela. O dilema dela reside em que o valor artístico do personagem e da sua história se dará à custa do seu terrível sofrimento; será aceitável a alternativa de poupar o herói, mas perder para sempre uma arte que poderia ser eterna e universal? Não quero incorrer em spoilers, mas há passagens do filme que discutem essas coisas muito pertinentes de uma maneira interessantíssima. Assim, analisando a dimensão do autor, podemos dizer que Mais Estranho Que A Ficção é uma fábula que tematiza, metalingüisticamente, a criação literária. O personagem principal do filme não seria Harold Crick e seus problemas, mas a romancista Karen Eiffel e os problemas dela. Nas relações (também fenomenológicas) entre Cinema e Literatura, o mais comum são adaptações fílmicas de narrativas escritas. Mas o que precisamos mais é de filmes que mostram a literatura em si, seu processo de criação e de recepção, tratando também das pessoas envolvidas nesses processos (incluindo os seus problemas particulares), de maneira sempre fenomenológica. A fita de Marc Forster, mesmo não sendo nenhum modelo, pode ir ajudando – “anyway” – a abrir caminho.

Mas não podemos deixar de lado, no filme, a dimensão do herói. O modo ansioso (para dizer o mínimo) como Harold Crick passa a procurar a narradora de sua história (assim como ela o vinha naturalmente procurando) é uma alegoria da fenomenologia autor-herói. O aspecto fantástico do filme deve ser “lido” como em uma fábula, pois é dotado de um significado que o transcende. Nesta fábula dialética, assim como há uma mensagem dirigida ao autor, também haverá uma moral direcionada ao herói. Ao autor, o filme diz que ele deve se preocupar mais com a dimensão humana (incluindo toda a dignidade e a liberdade correspondentes) do personagem, tomando muito cuidado para não subordiná-la sumária e incondicionalmente à estética, ou à visão de mundo (ou tese) do próprio autor, a ser transmitida na obra. Pena que muitos autores clássicos da nossa literatura nunca aprenderam essa lição.

Ao herói, o filme diz que a riqueza, a variedade da vida e do destino (metáfora para a vontade do “autor”) não devem subordinar-se servilmente à sua vontade. A vida não é e nem deve ser sempre tudo aquilo que a gente quer. A pergunta que se coloca a Harold Crick todos nós devemos fazer a nós mesmos (é claro que nem sempre a coisa é assim tão dicotômica): o que é mais importante: viver como se deseja, mas sem qualquer sentido transcendente, ou aceitar um destino que pode ser até cruel, mas dotará a sua vida de grande poesia, arte e valor eterno e universal? Viver “bem”, ou viver “com arte”?