Muito já se falou das relações entre cinema e poesia, e muitas são as definições para um tal cinema de poesia. Talvez a mais conhecida – e igualmente polêmica – seja a de Pasolini, que distinguia o cinema “de poesia” e o cinema “de prosa”, inspirado que estava pelas metodologias da linguística e dos estudos literários. Para o cineasta italiano, a poesia se revela nos filmes através do trabalho prioritário da forma, que deve se fazer auto-evidente (o “estilo” deve estar à mostra, como o esqueleto de um prédio), em oposição a uma filmagem “naturalista” (prosa) na qual a câmera – o instrumento mais essencial da escrita fílmica – procura se fazer invisível. Uma das decorrências disso é que a linguagem audiovisual deve buscar maneiras próprias de importar as figuras de linguagem da poesia escrita (principalmente a metáfora / alegoria).
Ao meu paladar, são mais saborosas as formulações de Tarkovski, o escultor do tempo. Para o diretor de Solaris (1972), a poesia nasce de uma “consciência do mundo”, a qual se derrama muito para fora do pensamento racional. Dotado de um olhar não-analítico e não-linear, o artista reconhecerá como ninguém a “organização poética da existência”; com isso, a expressão objetiva – dita realista – que ele há de empreender será muito diferente do fetiche positivista que domina as formas de representação literária e cinematográfica desde o século XIX. O pensamento poético é dotado de sua própria lógica, irredutível a quaisquer manuais de dramaturgia. Em um cinema assim, o espectador participa ativamente, com o cineasta, do processo de construção do filme, que para ambos é antes a descoberta da vida do que a demonstração de um “teorema”.
Essas ideias do grande mestre russo funcionam como recipiente perfeitamente transparente para acomodar as 35 Doses de Rum (“35 Rhums”, França, 2008). Este pequeno grande filme passou pela Mostra de Cinema de SP no ano passado, mas nunca estreou em circuito comercial, tampouco foi lançado em DVD, assim como várias outras pérolas de sua diretora, Claire Denis – a mais recente, Minha Terra, África (“White Material”, 2009) foi exibida na Mostra deste ano e estreou apenas numa sala, em São Paulo (adivinhem qual seja). Apesar de Andrei Tarkovski afirmar que não pensa em poesia como gênero, o sabor que fica nos olhos e ouvidos, quando assistimos à Claire Denis, não é apenas o de uma visão de mundo poética.
O que chamará a atenção em seu filme, se o colocarmos dentro de todo o debate a respeito de cinema e poesia, será a intensidade do seu lirismo. As 35 Doses de Rum são poéticas na medida em que constituem a expressão formal da descoberta da vida e da organização poética da existência, para emprestar mais uma vez as palavras tarkovskianas; e são líricas na medida em que tal descoberta e tal existência são carregadas de emoção. O filme inteiro é uma panorâmica das paisagens do espírito, com escalas nos mais diferentes estados interiores. Diz muito a esse respeito o fato de a diegese ser, em grande parte, atravessada por meios de transporte (um trem de metrô, uma van, um táxi, uma moto).
Mas esse fato simbólico é colocado sem pesar a mão sobre o efeito de real – o qual, afinal de contas, é o veículo do filme. Melhor ainda seria dizer: efeito de verdadeiro, já que a vida (em sua dimensão subjetiva) é o motor desse veículo. Dessa maneira, o dramático tem um papel muito reduzido na história. 35 Doses de Rum é um filme quase sem diálogos; e quando estes se fazem presentes, realizam-se sob palavras rápidas, fragmentadas, e em voz baixa. Mas não pensemos que tal procedimento torna frouxas as relações e tensões entre as personagens. Muito ao contrário, aquelas se manifestam muito mais num kabuki de gestos e olhares que se entrecruzam, atravessam, chocam e se perdem uns dentro dos outros.
A arquitetura dramática não se faz muito consistente; pelo menos, não em um sentido tradicional. A maneira como os corpos deixam exalar essências das almas confinadas sob pressão cobre o filme todo de uma atmosfera densamente lírica. Essa ênfase toda no lirismo também faz com que 35 Doses de Rum deixe de lado as infusões épicas, as quais, assim como as dramáticas, fariam parte natural e essencial de um longa-metragem de ficção. Na exibição de uma hora e quarenta minutos, pouca coisa acontece, efetivamente, em termos narrativos e causais; nisto, apresenta igualmente pouco consistência a trama linear e lógica dos acontecimentos (que Tarkovski tanto despreza). Não é que o filme seja “sem pé nem cabeça”, ou com vários “buracos” e “pontas soltas” na história; somente um espectador pouquíssimo treinado (ou muitíssimo acostumado a formas mais “mastigáveis” de cinema) poderia achar tais coisas.
Claire Denis trabalha bastante no terreno do implícito e do ambíguo, cuidadosamente plantados. Concluindo, a sensibilidade e humanidade deste filme são surpreendentes. Tem potencial para obra-prima contemporânea. Conforme eu ia assistindo, pensava comigo mesmo, a respeito da mise en scène: “está mais para um filme oriental”. Foi quando caiu a ficha: “essa história entre pai e filha lembra muito mesmo o Pai e Filha (1949), de Ozu”. Depois, pesquisando na rede, li que Denis fora assistente de Wim Wenders. Ah, agora tá explicado. Basta ver a epígrafe que o diretor alemão colocou em Asas do Desejo (1987), dedicadas aos “ex-anjos” Andrei (Tarkovski), François (Truffaut) e Yasujiro (Ozu). Realmente, nada do que foi, é ou será humano nos é alheio – jamais.
Ao meu paladar, são mais saborosas as formulações de Tarkovski, o escultor do tempo. Para o diretor de Solaris (1972), a poesia nasce de uma “consciência do mundo”, a qual se derrama muito para fora do pensamento racional. Dotado de um olhar não-analítico e não-linear, o artista reconhecerá como ninguém a “organização poética da existência”; com isso, a expressão objetiva – dita realista – que ele há de empreender será muito diferente do fetiche positivista que domina as formas de representação literária e cinematográfica desde o século XIX. O pensamento poético é dotado de sua própria lógica, irredutível a quaisquer manuais de dramaturgia. Em um cinema assim, o espectador participa ativamente, com o cineasta, do processo de construção do filme, que para ambos é antes a descoberta da vida do que a demonstração de um “teorema”.
Essas ideias do grande mestre russo funcionam como recipiente perfeitamente transparente para acomodar as 35 Doses de Rum (“35 Rhums”, França, 2008). Este pequeno grande filme passou pela Mostra de Cinema de SP no ano passado, mas nunca estreou em circuito comercial, tampouco foi lançado em DVD, assim como várias outras pérolas de sua diretora, Claire Denis – a mais recente, Minha Terra, África (“White Material”, 2009) foi exibida na Mostra deste ano e estreou apenas numa sala, em São Paulo (adivinhem qual seja). Apesar de Andrei Tarkovski afirmar que não pensa em poesia como gênero, o sabor que fica nos olhos e ouvidos, quando assistimos à Claire Denis, não é apenas o de uma visão de mundo poética.
O que chamará a atenção em seu filme, se o colocarmos dentro de todo o debate a respeito de cinema e poesia, será a intensidade do seu lirismo. As 35 Doses de Rum são poéticas na medida em que constituem a expressão formal da descoberta da vida e da organização poética da existência, para emprestar mais uma vez as palavras tarkovskianas; e são líricas na medida em que tal descoberta e tal existência são carregadas de emoção. O filme inteiro é uma panorâmica das paisagens do espírito, com escalas nos mais diferentes estados interiores. Diz muito a esse respeito o fato de a diegese ser, em grande parte, atravessada por meios de transporte (um trem de metrô, uma van, um táxi, uma moto).
Mas esse fato simbólico é colocado sem pesar a mão sobre o efeito de real – o qual, afinal de contas, é o veículo do filme. Melhor ainda seria dizer: efeito de verdadeiro, já que a vida (em sua dimensão subjetiva) é o motor desse veículo. Dessa maneira, o dramático tem um papel muito reduzido na história. 35 Doses de Rum é um filme quase sem diálogos; e quando estes se fazem presentes, realizam-se sob palavras rápidas, fragmentadas, e em voz baixa. Mas não pensemos que tal procedimento torna frouxas as relações e tensões entre as personagens. Muito ao contrário, aquelas se manifestam muito mais num kabuki de gestos e olhares que se entrecruzam, atravessam, chocam e se perdem uns dentro dos outros.
A arquitetura dramática não se faz muito consistente; pelo menos, não em um sentido tradicional. A maneira como os corpos deixam exalar essências das almas confinadas sob pressão cobre o filme todo de uma atmosfera densamente lírica. Essa ênfase toda no lirismo também faz com que 35 Doses de Rum deixe de lado as infusões épicas, as quais, assim como as dramáticas, fariam parte natural e essencial de um longa-metragem de ficção. Na exibição de uma hora e quarenta minutos, pouca coisa acontece, efetivamente, em termos narrativos e causais; nisto, apresenta igualmente pouco consistência a trama linear e lógica dos acontecimentos (que Tarkovski tanto despreza). Não é que o filme seja “sem pé nem cabeça”, ou com vários “buracos” e “pontas soltas” na história; somente um espectador pouquíssimo treinado (ou muitíssimo acostumado a formas mais “mastigáveis” de cinema) poderia achar tais coisas.
Claire Denis trabalha bastante no terreno do implícito e do ambíguo, cuidadosamente plantados. Concluindo, a sensibilidade e humanidade deste filme são surpreendentes. Tem potencial para obra-prima contemporânea. Conforme eu ia assistindo, pensava comigo mesmo, a respeito da mise en scène: “está mais para um filme oriental”. Foi quando caiu a ficha: “essa história entre pai e filha lembra muito mesmo o Pai e Filha (1949), de Ozu”. Depois, pesquisando na rede, li que Denis fora assistente de Wim Wenders. Ah, agora tá explicado. Basta ver a epígrafe que o diretor alemão colocou em Asas do Desejo (1987), dedicadas aos “ex-anjos” Andrei (Tarkovski), François (Truffaut) e Yasujiro (Ozu). Realmente, nada do que foi, é ou será humano nos é alheio – jamais.