O
filósofo Jean Baudrillard sobre o fotógrafo Sebastião Salgado (agradeço a Wanderson Lima, do Epigramas e Epitáfios, pelo texto):
Ele é admirável se quisermos, mas suscita o problema
do voyeurismo sociopolítico. A sua fotografia trata do humanismo da
miserabilidade. Tudo isso me provoca um problema quase moral que não tenho
vontade de resolver. É a foto-testemunho sobre a qual escrevi também algumas
páginas. E aqui igualmente é preciso voltar a Barthes, pois o testemunho é o
fim da fotografia. Ele inscreve uma idéia, uma verdade, ele não fotografa o que
é, mas o que não deveria ser. Isso é uma posição moral de denegação. Se esta é
uma foto moralizante, em relação à própria imagem ela é um contra-senso. Seria
preciso que a imagem pudesse estar lá por sua especificidade e não
curto-circuitada por uma idéia moralista, histórica… (BAUDRILLARD, Jean. Entrevista a Sheila Leirner. In República. São Paulo: D’Ávila
Comunicações, Abril, 1999.)
Sebastião
Salgado, apesar de toda a fama e prestígio, sempre foi alvo de críticas como a
que vemos acima, às vezes associadas à denúncia de uma autopromoção que
animaria, para além dos limites do bom-tom, o projeto de arte fotográfica do
ex-economista. Em outras palavras, o “voyeurismo sociopolítico” de que fala
Baudrillard se pavimenta sobre a distância intransponível entre a posição
social do fotógrafo-artista (assim como a do seu público: uma elite urbana
frequentadora de exposições e compradora dos caríssimos foto-livros) e a
posição social do objeto-assunto de seu trabalho (aquele outro, sempre pitoresco, sempre exótico, quase reificado enquanto
objeto de contemplação estética ou de “reflexão” política / antropológica /
sociológica: o sem-terra, o sem-teto, o garimpeiro, o nativo, o aborígene,
etc). Exótico = o que vem de fora.
Associe-se
isso aos procedimentos estilísticos de Salgado. Em primeiro lugar a estetização,
carregada e desprovida de qualquer sutileza, com que o fotógrafo trata o seu
ofício, o que leva os críticos a falarem na “cosmética da fome” (que também
atormenta o cinema brasileiro). O estetismo
de Salgado, além da possibilidade de ser por si só questionável, se
considerarmos tão-somente a “arte pela arte”, também não o seria sob o
princípio da adequação forma-conteúdo? O que será que Rodrigo S. M. (o narrador
fictício de “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector) teria a dizer a respeito
do método de Sebastião Salgado? Vejamos o que ele diz a respeito de sua própria
composição e, principalmente, da personagem retratada (a semi-miserável
Macabéa):
Assim
é que esta história será feita de palavras que se agrupam em frases e destas se
evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. É claro que, como
todo escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conheço adjetivos
esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos
o ar em vias de ação, já que palavra é ação, concordais? Mas não vou enfeitar a
palavra pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro – e a jovem
(ela tem dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo, morrendo de fome. Tenho
então que falar simples para captar a sua delicada e vaga existência.
(LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p.14-15.)
A
fotografia de Salgado não seria enjoativamente “suculenta”? Isso nos faz ter
saudades do “estilo-cacto” de Graciliano Ramos em “Vidas Secas” (nas palavras
do poeta João Cabral de Melo Neto) e do estilo igualmente “cacto” das suas
imagens na versão cinematográfica de Nelson Pereira dos Santos. De qualquer
maneira, os problemas de se buscar (ou não) o encontro com o outro referente da elaboração artística
nunca são de soluções fáceis, o que já elimina quaisquer posturas que se
queiram radicais: no limite, a única arte perfeitamente adequada ao que “não
deveria ser” (nas palavras de Baudrillard) seria a arte alguma. Não queremos
permitir que a fotografia encontre o seu fim através do testemunho, como quer o
filósofo; talvez não seja possível higienizar a fotografia, enquanto construção
discursiva, do “curto-circuito” das ideias moralistas ou históricas. Toda
fotografia é moralizante, por isso, toda imagem é um contra-senso, de fato.
Mas
pode ser estabelecido um limite para esse fetichismo inerente ao olhar
fotográfico. A linha será desesperadoramente tênue, mas ainda assim visível. O
ponto de discórdia é que fotógrafos como Sebastião Salgado nitidamente a
rompem. Inescrupulosamente. O pão-imagem dos pobres torna-se ouro no processo
fotográfico de Salgado e percorrerá galerias de arte, museus e livros
luxuosamente editados para gente de bolsos bem costurados e consciências
político-estéticas bem nutridas. A mais recente ilustração dessa cena saiu
hoje, em reportagem da Folha de S. Paulo sobre o destino da menina sem-terra
que virou ícone na obra do fotógrafo. Joceli Cruz Borges dos Santos, hoje com
21 anos, ainda vive em um acampamento do MST e possui dois sonhos: 1. Receber um
pedaço de terra; 2. Receber dois
exemplares do livro “Terra”, de Sebastião Salgado, do qual ela é capa (um para
si mesma, outro para o pai – a mãe foi assassinada).
Irônico?
Não seria este um belo exemplo do “pão de ouro” de que fala Clarice Lispector? Não
obstante, a prova mais cabal do supra-citado voyeurismo sociopolítico pode ser
vislumbrada quando Joceli diz:
Não
vi ele me fotografando. Parece que estou olhando para a foto, mas não lembro de
ver alguém me fotografando. Nem minha família lembra o local exato onde foi. Fiquei sentida por sair toda desarrumada.
Mas fico feliz pelo meu pai e minha mãe ter conquistado a sua terra.
Eis
a “posição moral de denegação” em um foto “que não deveria ser”. É claro que,
aos olhos sociopoliticamente treinados de Salgado e do seu público, tal imagem deveria muito bem “ser”: a
particularidade da figura toda desarrumada da menina está lá apenas para demonstrar a totalidade e o alcance da
realidade social observada, assim como as teorias usadas para interpretá-la (a
jovem Joceli é a “coitada”: oprimida, excluída, miserável, sem-terra, por isso,
maltrapilha). A inteligentzia
agradece. Faz-se com isso fotografia “de tese”, que não forçará menos a barra
do que o cinema de tese ou os velhos romances de tese positivistas que tanto
excitavam as taras cientificizantes da belle
époque. Mais uma vez: o mundo, a vida e o ser tornam-se desindividualizados
e escravizados por uma ideia – crime capital de todo e qualquer discurso que se
pretenda artístico.
A
imagem precisaria existir por sua “especificidade”, diz para nós Jean
Baudrillard. Neste caso, precisaria haver um encontro real e humano entre o eu
do fotógrafo e o outro do fotografado, através da sensibilidade do primeiro em
reconhecer que ninguém gostaria de ser retratado parecendo “feio”, “desarrumado”,
etc. Neste caso, é em tal sentido, especificamente, que Sebastião Salgado
fotografou o que “não deveria ser”. E nisto, atropelou por completo a
subjetividade, a dimensão, a humanidade de um outro – o qual, no entanto,
também somos nós, ainda que tão difícil de reconhecer. Ao percorrer com os
olhos os álbuns temáticos de Salgado (trabalhadores, sem-terra, etc), não
conseguimos deixar de nos lembrar, ainda que vagamente, dos velhos zoológicos
etnográficos, apenas em uma versão mais sofisticada: o livro de fotografias e a
exposição em galerias ou museus são os novos “cercadinhos” para a contemplação
curiosa do “exótico” por parte dos civilizados. Essa lembrança incomoda. Mas é
de confessar, mais uma vez, que se trata de uma problemática com soluções
difíceis – quando não impossíveis: a imagem contra-senso e o testemunho que é o
fim da fotografia.
*
A
fotografia de Sebastião Salgado busca, sistematicamente, efeitos emotivos
fáceis, condescendentes. E não há qualquer sutileza neste aspecto. Salgado é
como um mau poeta. Ou um poeta inexperiente. Além disso, o programa
político-social da arte do fotógrafo reduz o indivíduo humano, excessivamente,
ao tipo (eis o “humanismo da
miserabilidade”). O retrato do tipo e de tudo o que é típico pode se tornar uma
armadilha já bastante conhecida pelos escritores, desde a consolidação do
romance (meados do século XIX). Nas artes plásticas, os grandes mestres da
pintura buscam, desde o Renascimento, a verdade
psicológica no indivíduo a ser retratado, para além de sua posição, funções
ou convenções sociais. Quanto à fotografia, bem, retratistas como Sebastião
Salgado ainda titubeiam no escuro...
Em
contrapartida, vejamos o que diz o curador-chefe do MoMA de Nova York a
respeito de uma foto muito famosa de Henri Cartier-Bresson:
À
medida que a celebridade de Cartier-Bresson cresceu ao longo dos anos 1950 e
1960, não foram poucas as fotos mais fracas que entraram no seu catálogo de
popularidade. O mesmo aconteceu com outras que se inclinavam para o domínio do
sentimentalismo ou simplesmente nele mergulhavam – como o famoso flagrante de um
garotinho
que marcha
orgulhoso pela rue Mouffetard com duas garrafas de vinho tinto.
Nos
anos 1970, quando o mercado para fotografia encarada como arte estava
crescendo, Cartier-Bresson começou a ter sucesso em seus esforços para vender
cópias para colecionadores. Em 2003, Helen Wright, que fora sua agente
americana para essas vendas por muito tempo, foi entrevistada para uma matéria
sobre as fotos mais procuradas. Ela explicou que a do menino da rue Mouffetard
“é
solicitada com tanta frequência que Henri está quase a ponto de se recusar a
assiná-la e enviá-la para mim. (...) Os norte-americanos parecem simplesmente
adorar essa foto. O motivo é muito simples, eu acho: é que eles a consideram
muito francesa”.
Cartier-Bresson
acabou passando a lamentar a popularidade da foto e se recusou a permitir novas
reproduções. (GALASSI, Peter. Henri-Cartier Bresson: o século moderno. São
Paulo: Cosac Naify, 2010. p. 56)
É
engraçado pensar em como uma parcela pequena da obra de um fotógrafo, que
sabiamente a renegou, pode se tornar o carro-chefe da obra de outro fotógrafo.
Fica a conclusão – que pode muito bem valer como um elogio: o melhor do
trabalho de Sebastião Salgado é o pior do trabalho de Cartier-Bresson. Biscoito
fino, de qualquer maneira.