quinta-feira, setembro 23, 2010

Duas notas a respeito de Peckinpah


1.

É público e notório que os westerns de Sam Peckinpah tentam registrar o canto de cisne tanto do espaço geográfico e social do Velho Oeste, quanto do gênero cinematográfico que dele tanto se ocupara. A alegoria de Pauline Kael é mesmo bonita: “Pouring new wine into the bottle of the Western, Peckinpah explodes the bottle” (Ao colocar vinho novo na garrafa do Western, Peckinpah faz com que ela transborde). Isto se refere, é claro, à proverbial violência nos filmes do diretor.

Mas há outro aspecto da coisa que também vale citar. A sociedade rural, meio selvagem / meio patriarcal, do velho oeste vai encontrando o seu fim com a chegada da civilização urbano-industrial e suas máquinas, o que já está bem demonstrado na construção da ferrovia em Era Uma Vez no Oeste (“Once Upon A Time In The West”, 1968) do Sérgio Leone. Além disso, obsolescência do Oeste também será a da figura típica do bandoleiro, e é deste que Peckinpah tratará com lirismo e carinho dramático.

Mas não é dos velhos pistoleiros (e pistoleiros velhos) que queremos falar aqui. E sim, de um elemento que Peckinpah faz questão de associar à sua decadência e à transformação do locus amoenus do Oeste: trata-se do automóvel. Trazendo à lembrança toda a mitologia do far-west enquanto paisagem de uma natureza inóspita e convidativa à exploração e conquista, não ficarão de fora as figuras arquetípicas do cavalo e das carruagens, que sempre ajudaram a enformar os clichês do gênero:

quem se esquecerá da minúscula imagem da diligência atravessando soberba e temerariamente a vastidão desconhecida de um Monumental Valley dominado por índios pouco amistosos, em No Tempo das Diligências (“Stagecoach”, 1939) de John Ford? Bem, e o que é que faz Sam Packinpah, por seu turno? Ele faz questão de inserir, encaixar, meter e enfiar a massa e o volume de um veículo motorizado na paisagem “westeriana” que tanto conhecemos e amamos.

O impacto visual e a estranheza de tais imagens constituem, creio eu, talvez o aspecto mais violento da tão falada violência do cineasta. Tomando a liberdade e ousadia de emendar Kael, Peckinpah fabricou um verdadeiro coquetel molotov ao encher com gasolina a cânfora do western. Foi assim também que o diretor a “explodiu”. E ele é bem cuidadoso em colocar com irônica ênfase as figuras de automóveis em planos bastante significativos de seus filmes.

Além do mais, o automóvel não representa tão somente uma violência “simbólica”. Vejamos os exemplos. Em Pistoleiros do Entardecer (“Ride The High Country”, 1962), temos dois planos escarninhos: 1. Alguém sai de um saloon e, ao botar o pé na rua, é quase atropelado por um carro, se não fosse por outra pessoa que o puxasse pelo braço ao grito de “cuidado” (e o veículo invade o quadro pela lateral quase em primeiro plano, atropelando também os olhos do espectador);

2. Numa breve panorâmica, a câmera acompanha a corrida entre um cavalo e um dromedário (sendo este último conduzido por um dos heróis do filme) pelas ruas da cidade; no final de seu movimento, a câmera fixa um quadro no qual vemos, em primeiro plano e no ponto de ouro, um automóvel estacionado – enquanto, ao fundo, escapam os dois animais. A composição deste último plano é absolutamente intencional em seus menores detalhes e muito inteligente.

Peckinpah demonstra, de maneira exemplar, que cinema é mais do que “registro” do real; cinema é discurso construído. E o mais interessante é que as duas imagens estão no começo do filme, logo nos primeiríssimos minutos. O diretor não perde tempo em mostrar a que veio. No Meu Ódio Será A Tua Herança (“The Wild Bunch”, 1969), os (anti-) heróis encontram o corrupto general mexicano – para quem acabaram de fazer um serviço sujo – a se refestelar na própria ignomínia:

junto dos seus comparsas, o comandante desfila com irrepreensível desfaçatez a bordo de um luxuoso conversível que fica simplesmente dando voltas em círculos ao redor da pequena e miserável aldeia ocupada, arrastando por uma corda amarrada aos pulsos um dos membros da quadrilha dos “gringos” (os protagonistas), que teria trabalhado “desonestamente” (resumindo ao máximo a história). A cena é de uma violência impressionante, mesmo para os padrões de hoje: todos na aldeia, inclusive crianças, envolvem-se na “malhação do judas”.

Esse tipo de “castigo” nos faz lembrar de nossos cangaceiros (“dar um galope” em alguém, como diz o bandidão de O Cangaceiro – 1953, de Lima Barreto). Não obstante, em Peckinpah a violência do “arrastamento” será ainda maior, mais prolongada, simbólica (carregada de ostentação material) e sarcástica, por ser usado um automóvel no lugar de um cavalo. Por fim, em A Morte Não Manda Recado (“The Ballad of Cable Hogue”, 1970), os carros não vão mais martelar pregos no caixão dos bandoleiros.

Neste filme bastante sensível, o objeto-fetiche do capitalismo industrial do século XX apontará suas rodas para os velhos pioneiros, que desbravaram e ocuparam o Oeste a pé ou sobre os cascos de cavalos. O protagonista, Cable Hoghe (Jason Robards) é o herói do sonho americano no sentido mais tradicional: após ser assaltado, espancado e deixado para morrer no meio da aridez do meio-oeste, ele encontra um poço de água, contrói ao redor dele sua casa e passa a viver bem confortavelmente, junto com a mulher que conhecerá, oferecendo água e comida para os viajantes das diligências que passam por ali.

A chegada da ferrovia lhe trará o grande medo de falir (a estrada de ferro não passará próximo de sua propriedade), mas as esperanças serão renovadas quando os primeiros automóveis começam a tomar o lugar das diligências na velha estrada. Mas então... (spoiler!) Cable Hogue morrerá estupidamente atropelado pelo primeiro carro que vê na vida (ele tentará impedir, com o próprio corpo, que o veículo sem freios deslize por uma leve ladeira). A sua ignorância e simpática ingenuidade em relação às coisas “modernas” se mede pelo comentário irônico que faz logo após o acidente: “It kicks harder than a mule!” (O coice dele é mais forte que o de uma mula).

Cable Hogue é um homem simples, de um tipo em extinção, mas que ainda tenta dar uns fôlegos de sobrevida nos filmes de Peckinpah. De qualquer maneira, é neste filme que a presença ameaçadora do automóvel se faz mais elaborada e contundente, enquanto parte fundamental do desenrolar dos acontecimentos e do destino dos personagens. Qual a conclusão a que chegaremos a partir disso? Sam Peckinpah é simplesmente contra o “progresso”, como um novo Velho do Restelo?

Não creio que seja nada tão ideologizado. Peckinpah tem, com certeza, uma alma de poeta (o lado poético da violência nos filmes dele é algo que a sua fortuna crítica nos EUA já mostrou). E o lirismo do diretor é do tipo romântico, ou seja, ele lamenta com nostalgia o crepúsculo de velhos mundos, cuja simplicidade maior no sentir, no pensar e no viver está sendo maquinalmente substituída pela frieza de objetos de um engenho e indústria indiferentes às coisas mais profundas e intransigentes da alma.

2.

Existe algo da velha areté dos guerreiros homéricos nos heróis de Peckinpah: a virilidade e outras virtudes varonis que tornam inconcebível a ideia de um homem abandonar o campo de batalha, mesmo em desvantagem. Acredito que seja nesta chave que se deve pensar a tão falada violência nos filmes do diretor. O ato violento aqui não é aquele do profissionalismo de gângster, remetendo tampouco ao sadismo do psicopata. A violência em Peckinpah não é uma anomia social, mas um valor ético e moral, ligado – logicamente – a estruturas sócio-culturais mais “primitivas”.

A agressividade dos personagens exerce-se em função de uma honra e lealdade mais calcadas na proximidade das relações de indivíduo a indivíduo. Os heróis pekinpanianos deixam-se possuir pela violência, mergulhando nela como em um transe beatífico. Nisto, a autopreservação pouco importa; não há outra escolha para o guerreiro, ele deve defender o que é seu, ou morrer tentando. Em outros casos, trata-se de vingança. Vejamos. Em Meu Ódio Será A Tua Herança, a caminhada altiva do “wild bunch” rumo à autoimolação é um dos momentos mais poéticos de todo o cinema.

Eles não querem saber se vão vencer as tropas do “general” (já sabem que jamais vencerão); mas aqueles velhos e decadentes pistoleiros simplesmente não podem abraçar a aposentadoria tendo abandonado um dos seus nas garras do inimigo. Desse modo, tendo todas as razões práticas para irem embora (principalmente o dinheiro em mãos), eles decidem voltar atrás e tirar satisfações com o “general”, pois não podem passar por cima da razão ética. Algo bem parecido ocorre em Tragam-me A Cabeça de Alfredo Garcia (“Bring Me The Head of Alfredo Garcia”, 1974):

depois de ter cumprido (com imensas dificuldades) a missão, ter recebido o pagamento conforme combinado e estar pronto para ir embora, o herói decide subitamente se voltar contra o “patrão”, indignado com a quantidade de mortes (inclusive a da própria namorada) necessárias para que trouxesse a tal da cabeça. O último ato do herói é “kamikaze”: ele morre, mas leva junto o patrão e boa parte de seus asseclas. Talvez não seja nem o caso de entender esses “gran finales” como apenas um ato abnegado de auto-sacrifício na impossibilidade de se conquistar uma vitória mais prática e concreta.

Acredito que as escolhas de tais heróis constituem elas mesmas o ponto mais alto (ou verdadeiramente único) de seus atos guerreiros: é um outro tipo de vitória, baseada em outros valores. Mais exatamente, eles buscam não uma vitória de fatos, mas uma vitória de princípios. Os guerreiros gregos conquistavam a imortalidade através da memória que deixavam de seus feitos. Assim, morrer realizando uma façanha valorosa (ainda que de efeito prático frustrante) é mais sedutor do que viver na covardia e na obscuridade. No fundo, são códigos cavaleirescos que perpassam diversas culturas (mas todas elas distantes dos padrões da civilização urbano-industrial).

Os guerreiros de Peckinpah realizam seus grandes atos de violência como um rito, sacerdotes que são da pulsão de morte (a qual, no mesmo sentido psicanalítico, relaciona-se dialeticamente com a pulsão de vida): matar para dar vida; morrer para viver. O tão comentado aspecto gráfico e a câmera lenta nas cenas mais violentas do cineasta podem ser analisados como expressão dessa liturgia homérica. O paradoxo de tais sínteses remete, muito coincidentemente, ao clássico conto do nosso Guimarães Rosa: “A Hora e Vez de Augusto Matraga” (publicado originalmente no livro “Sagarana”, em 1946).

O ato final de Matraga tem o mesmo aspecto, qualidade e significado que os que vemos nos dois filmes acima citados (a fantasia é imaginar Peckinpah filmando uma adaptação de Rosa). O ocaso do Velho Oeste e de seus guerreiros não se consumará sem uma despedida à altura. Algo assim já se via, dentre os filmes do diretor, em Pistoleiros do Entardecer (“Ride The High Country”, 1962), ainda que de maneira menos elaborada que nas obras posteriores.

Mas o melhor e mais acabado exemplo da areté em Sam Peckinpah encontra-se em Sob O Domínio do Medo (“Straw Dogs”, 1971). Seria uma imprecisão dizer que o pacato matemático vivido pela figura pouco intimidante de Dustin Hoffman teria “perdido a cabeça” frente ao cerco de sua casa e partido para cima do bando de escoceses bêbados e sedentos de sangue. O fato é que: depois de se fazer diversas vezes submisso ao bullying dos seus vizinhos, o personagem de Hoffman, vendo que a agressividade primitiva daqueles atingiu o paroxismo, reconhece que instrumentos racionais e discursivos não lograrão dissuadi-los.

Sendo assim, ele decide (o filme coloca como um ato de decisão mesmo, ainda que muito indignada, e não como mera explosão nervosa) abandonar a justiça civilizada e partir para a mais primitiva: um homem jamais poderá permitir (de qualquer maneira) que sua casa seja invadida (não importa com quais razões). De pouco adiantam os apelos da mulher, que tenta colocar panos quentes na briga e forçar o marido a uma atitude mais “lógica”. Hoffman mergulhará com gosto na violência, entrando num transe quase orgásmico, lembrando, novamente, o Augusto Matraga de Rosa

(ambos são personagens que resistem ao máximo às pulsões violentas; mas, quando estas lhes são requeridas em favor da moral e da ética mais primitivas, eis que o guerreiro adormecido desperta). Ébrio de agressividade, Hoffman chega a ecoar o gesto do homem que estuprara sua mulher (e que é um dos que empreendem o cerco à casa, apesar de o protagonista desconhecer o atentado), tomando-a pelo pescoço e prometendo quebrá-lo se ela não colaborar com os seus planos de defesa.

No final do filme, após ter massacrado todos os invasores, Hoffman deixa a esposa em casa e leva de carro, até a cidade, o homem que escondia em sua residência e que o bando ensandecido queria capturar a todo custo (suposto estuprador). A última imagem, mostrando de frente, dentro do veículo, os rostos do homem e de Hoffman, este com um leve mas firme e soberbo sorriso de contentamento e de “missão cumprida”, ecoa muito ironicamente o final do popular A Primeira Noite de Um Homem (“The Graduate”, 1967, Mike Nichols), com o mesmo Hoffman contente com o ato corajoso e viril de “roubar” a noiva do altar, ambos indo embora num ônibus coletivo.

sexta-feira, setembro 10, 2010

Iep!


A mais louca e mais poética fantasia não se distanciará muito da realidade, pois quando esta já é naturalmente dotada de um aspecto quase mágico, será acionado aquele olhar sensível – e raro – que desejará explorar o potencial expressivo de tudo que parece mentira, mas não é. Como dizia o mestre Alberto Caeiro: “Só a natureza é divina, e ela não é divina.” O verdadeiro poeta chama a atenção para as coisas, exercitando e estimulando um olhar constantemente renovado em relação a elas, descobrindo nelas sempre novas, diferentes e, principalmente, insuspeitadas facetas.

E o cinema é um dispositivo particularmente feliz para a aplicação de tais filosofias. Quando lemos a análise que André Bazin faz de dois grandes clássicos do cinema para as crianças (O Balão Vermelho – 1956; e O Cavalo Branco – 1953; ambos de Albert Lamorisse), no ensaio intitulado “Montagem Proibida” (presente na antologia: “O Cinema: ensaios”. 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1991), compreendemos a condenação quase moral que o grande crítico faz das trucagens que envolvem a montagem. Cremos que, hoje em dia, Bazin tomaria o mesmo posicionamento em relação ao uso indiscriminado dos efeitos especiais de computação gráfica.

Em vista disso, só temos que louvar as escolhas estéticas e humanas feitas para Iep! (Holanda / Bélgica, 2010, dir.: Ellen Smit). O filme está sendo exibido, em São Paulo, no 8º FICI (Festival Internacional de Cinema Infantil) e, segundo a Folha de S. Paulo de hoje, “ganhou o prêmio máximo no festival de cinema infantil de Montréal, no Canadá”. A história começa com um observador de pássaros (Warre) que vive com a mulher (Tine) numa casa de campo bem bucólica e um dia encontra, debaixo de uma árvore, um minúsculo e estranho ser: o corpo é de uma menina, mas no lugar dos braços veem-se asas. Ele leva o “bebê” para casa e passa a criá-lo, junto com a esposa – ambos não têm filhos.

A menina-pássaro recebe o nome de Dorinha (a versão que vi fora dublada exclusivamente para o FICI) e vai crescendo, até o dia em que precisa, literalmente, voar para longe do ninho. Isso, é lógico, provoca uma corrida dos “pais” para buscá-la, à qual se juntam outros personagens, espaços e acontecimentos inusitados, nem todos bem colocados e (ou) trabalhados. Mas tudo se perdoa e não compromete o resultado geral do filme, que não deixa de se fazer sensível, edificante e esteticamente bem dirigido. A narrativa tem um andamento comum em histórias infanto-juvenis, parecendo como que um novelo de lã que se arremessa e vai se desenrolando, passando por todos os lugares e despertando todas as reações.

Tirante uns planos gerais tarkovskianos, o melhor e mais chamativo neste filme é a escalação da jovem canadense Kenadie Jourdin Bromley para o papel principal. É em sua excepcional figura que se realiza aquele princípio poético do real que parece fantástico, de que falamos mais atrás. Bromley é portadora de uma condição genética muito rara denominada nanismo primordial, que faz com que todos os membros e órgãos do corpo possuam um tamanho muitíssimo reduzido e de modo proporcional (diferentemente das formas mais comuns de nanismo).

No Brasil, devemos nos lembrar do caso em que uma dessas pessoas foi explorada de maneira circense no “Domingão do Faustão”, em 1996 (o que virou até capa da – no geral infame – revista “Veja” e ajudou a suscitar um debate social que finalmente começou a impor limites à barbárie na TV aberta – um de seus melhores frutos é a campanha “Ética na TV – Quem Financia A Baixaria É Contra A Cidadania”). Porém, é lógico que no filme de Ellen Smit o registro é bem outro.

Quando vemos a pequena Bromley / Dorinha (a atriz tem sete anos de idade), com os seus braços de penas, inserida no mesmo plano que os outros atores (principalmente no colo da mãe adotiva), tornamo-nos imediatamente encantados pelo poder mágico de uma máquina que não faz nada mais do que registrar o que se coloca diante dela. Aqui não cabem truques de montagem ou de efeitos “especiais” (ambos só são – sabiamente – usados em algumas das cenas nas quais Dorinha precisa voar). Temos aqui a beleza e a diversidade naturais da figura humana expressas em função da arte, da fantasia e da sensibilidade. Enfim, o humano em favor do humano.

Compare-se isso com o abominável “freakshow” que, no geral, domina as mídias audiovisuais e se alcançará uma ideia da coragem e do valor deste pequeno e independente filme. O que é também muito interessante é que os conteúdos alegóricos de Iep! não aparecem senão muito pela tangente. Podemos, é claro, ler o filme como uma fábula sobre o processo de criação dos filhos; sobre o crescimento destes; sobre a convivência com o diferente, etc, etc, etc.

Mas, retomando mais uma vez as formulações do poeta Caeiro, é melhor deixarmos aqui em segundo plano (embora não tão menos importante) as metáforas e símbolos, para que não nos esqueçamos de prestar atenção à imensa experiência sensorial que esta película nos proporciona, através da força visual inusitada e única que possui. Num mundo em que ser “diferente” virou modinha, muito graças a golpes publicitários do naipe de Glee, é urgente que se produzam, descubram e valorizem tentativas como as de Iep!

Pequena digressão final: a verdadeira inclusão social não pode se realizar através do nivelamento por baixo na sociedade de consumo; não é macaqueando a cultura dos “winners” que os “losers” haverão de se auto-afirmar (é por isso que uns 80% dos livros de autoajuda que existem por aí não valem nem o papel em que são impressos). Imaginem se, ao invés de aprender a bater suas asas e voar para longe, Dorinha treinasse umas coreografias e fosse ostentar suas penas no “musical” da escola! Os velhos circos de aberrações continuam por aí, ainda que sob tendas de armação mais sofisticada e sutil...

P.S.: A família de Kenadie Jourdin Bromley mantém um site, o qual aceita doações em dinheiro. Maiores informações, clique aqui.

quinta-feira, setembro 02, 2010

Blogueiro não é maloqueiro...


É isso aí, galera! O que é que nós, blogueiros cinéfilos de Pindorama, podemos aproveitar da profissão de fé empreendida pelo nosso companheiro americano Paul Brunick, no texto de ontem? Bem, vou tecer, mais ou menos livremente, algumas digressões um pouco idiossincráticas a respeito de coisas que ele discute, seguindo mais ou menos a ordem da apresentação delas no artigo dele. De resto, engajar-nos-emos (nossa, essa palavrinha não saiu o que eu esperava) em uma conversa através dos eventuais comentários de vocês. Vamos que vamos...

Que a decadência da crítica – e do próprio cinema – tenha encontrado as catracas liberadas com a geração “blockbuster” a partir dos anos 80, isso não é novidade alguma. Mas o “profissional” que escreve resenhas de filmes não pode deixar que a banalização dos meios contamine os seus enunciados, emprenhando-os de lugares-comuns – ainda que estes sejam de crítica e oposição. Desse modo, não dá para simplesmente despachar das vistas qualquer nova empreitada hollywoodiana sob a mira de exclamações do tipo: “o cúmulo da infantilização de Hollywood”, dentre outras que recombinam mais ou menos as mesmas palavras e parecem fazer parte central no caderninho de notas de alguns críticos de grandes jornais.

É cansativo, não? Em princípio, porque tais sentenças, que costumam ser impressas fora de qualquer contextualização e argumentação em formato de texto (naqueles malfadados quadros de “cotações”), parecem sumariamente desqualificar em termos de expressão cultural qualquer coisa ligada à “criança”. Quero dizer, se o crítico não gosta de filmes pueris, os pimpolhos certamente gostarão. O cinema dirigido para estes não é um cinema “menor” – assim como, logicamente, a sua literatura. O problema, na real, é: uma certa “Hollywood”, que costumava dar atenção à gente grande, decidiu mudar de rumo e levar seu espetáculo para outras plateias.

Mas, parafraseando Brunick, uma parcela da crítica parece preferir trabalhar com “nostalgia pré-fabricada”, ao invés de “pensamento histórico aplicado”. De qualquer modo, pode ser que eu é que esteja sendo ingênuo: talvez nenhum jornal ou revista, hoje em dia, se proponham a discutir um pouco mais a fundo e a sério as coisas, cotidianamente (polemização fácil vende bastante, e desconfio que “experts” da estirpe de Diogo Mainardi saibam bem disso).

Enfim, concordamos que os anos 80 foram invadidos por pepitas da natureza de Willow – Na Terra da Magia (“Willow”, EUA, 1988, dir.: Ron Howard); mas havemos de concordar também que a década dos altivos e amedrontadores yuppies também produziu um – verdadeiro – autor como John Hughes, que compôs arranjos mais sofisticados para os “teen movies” (principalmente em O Clube dos Cinco – “The Breakfast Club”, 1985, sua obra-prima), ainda que todo mundo depois dele só tenha avacalhado a melodia – exceto, talvez, por Gus Van Sant.

Então, ninguém discordará de que seja inglória a tarefa de procurar pelos nos ovos de Brett Ratner e Michael Bay (aproveitando-nos do exemplo de Brunick), mas tal situação deverá ser modulada em duas frequências: 1. Há diretores que são comerciais e vão além do comercial – sem deixar de serem comerciais, tais como o supra-citado Hughes (o juízo de valor que se dará a esse paradoxo é justamente um trabalho para o “super-crítico”); 2. Em qualquer porcaria (pense nas piores porcarias mesmo, naqueles pantagruélicos desperdícios de celulose fílmica, como as fitas de Uwe Boll, ou aquelas com Jean-Claude Van Damme), podem ser encontrados ecos de forma e de conteúdo que já animaram as mais altas obras-primas já produzidas pela espécie que domina este planeta – ainda que tais ecos se façam ouvir bem de longe.

É por isso que preciso fazer aqui e agora uma pequena sessão de puxasaquismo sedarasgativo: uma de minhas maiores inspirações para começar a escrever sobre filmes e dar início a este blog foi a coluna Ponto de Fuga, assinada pelo professor e historiador da arte Jorge Coli, publicada aos domingos no caderno “Mais” da Folha de S. Paulo (e que, infelizmente, foi para o saco, na mais recente reforma gráfico-editorial do jornal; não obstante, graças a alguma alma caridosa, uma antologia de seus textos foi reunida em livro e lançada recentemente pela editora Perspectiva).

Coli dedicava-se, na maior parte do tempo, à música e às artes plásticas; mas, quando falava sobre cinema, procurava apontar e estimular reflexões e comparações estético-filosóficas a partir das produções mais rasteiras da indústria (e não estou aqui falando daqueles filmes “ruins” que viram “cult” entre os cinéfilos, estou falando das sessões habituais de “Temperatura Máxima” e “Domingo Maior”). O próprio autor explicou, uma vez, os bem arrazoados motivos de tal proposta. Até hoje, não me esqueço de como ele demonstrou que certa película estrelada por Van Damme – Hell, 2003, dir.: Ringo Lam (?) – era mais FILME do que o “hype” nacional da época, Carandiru (2003, dir.: Hector Babenco).

Assim que inaugurei o Sombras Elétricas, escrevi para ele e conquistei um comentário seu na resenha que fiz do Superman Returns (a terceira postagem deste blog – confira aqui). Que alegria! Enfim, acredito que, para a sobrevivência e desenvolvimento da crítica de cinema – e dos próprios filmes, por que não? – o crítico não deva ter preconceitos, não importa o quão densas sejam as trevas da idade na qual vivemos. Ele pode e deve ter preferências pessoais, é claro, mas isso já é outra coisa.

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É mesmo aterrorizante a intolerância presente nos depoimentos de velhos críticos do “mainstream” e citados por Brunick, a respeito da crítica feita em blogs e seus autores. Por outro lado, como o articulista não deixa de reconhecer, existem de fato bobagens escritas na rede – minha veia professoral sente algum prazer em separar o joio do trigo. E o fato mais importante é que, se a velha guarda não pode ter essa atitude condescendente em relação aos mais jovens, é da responsabilidade destes mostrar que a carapuça não lhes serve, através de muito estudo, leituras e filmes que contribuam para a formação estética, histórica e intelectual do aspirante a crítico de cinema (a tirada que o autor faz com o “Encouraçado Pokémon” é hilária).

Acho, sobretudo, orgasticamente inspirador (um verdadeiro tesão) o exemplo que Brunick toma em relação a Andrew Sarris e Pauline Kael, dois grandes ban-ban-bans da crítica norte-americana. É reconfortante saber que ambos começaram escrevendo DE GRAÇA para qualquer lugar que se dispusesse a publicá-los. E não só concordo com Brunick de que Sarris e Kael não enxergariam os blogueiros como penetras, como acredito piamente que, se eles estivessem começando suas carreiras hoje em dia, muito provavelmente seriam eles próprios donos de blogs. A nova “era de ouro” pode não estar chegando (diferentemente do que acredita o autor); mas, se não houver tais suportes na Internet, com certeza perderemos um ou dois gênios da crítica.

É por esta razão também que, sendo professor, boto muita confiança no poder de cursos, oficinas, grupos de estudo, (cine-) clubes, etc. Não sou tolo o suficiente para achar que educação formal resolve tudo (muito pelo contrário), creio bastante no autodidatismo e no diletantismo “desinteresseiro” (acho que o neologismo é autoexplicativo); mas não há nada como a troca e o exercício coletivo de experiências, dúvidas e pontos-de-vista. O apoio mútuo é o que mais ajuda a despertar e fazer deslanchar novos talentos, seja em comunidades virtuais (sites de relacionamento, associações de blogs), seja nas reais. Mas nestas, é beeeeeem difícil encontrar alguma coisa: em São Paulo, alguém realiza uma oficina de crítica de vez em nunca.

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Outro braço que devemos dar a torcer por Paul Brunick será em relação aos seus tristes comentários sobre o tamanho reduzido dos textos publicados hoje em dia nas mídias impressas. De fato, quando abro a Folha ou o Estado de São Paulo às sextas-feiras, fico quebrando a cabeça para tentar imaginar como é que eu poderia falar sobre, por exemplo, Wall.E (2008) – que eu adorei –; ou sobre Besouro (2009) – que eu odiei –, nas parcas linhas daquelas caixas de texto. Mas que nada! Eu? Eu sou apenas um... rapaz latino-americano. Fico imaginando é Paulo Emílio Salles Gomes escrevendo para a Veja! – (hahaha).

De qualquer maneira, entendamos bem as coisas: a ideia não é que, quanto mais palavras, mais neurônios; mas faço coro a Brunick, quando este diz que “críticos de cinema trabalham melhor quando são capazes de escrever numa variedade de formatos que variam enormemente em volume, estilo retórico e público presumido”. E, retomando o conteúdo dos textos, tendo em vista a enfadonha tarefa de ter que escrever sobre Michael Bay, às vezes os críticos parecem esquecer mesmo de suas outras funções, as quais acho recomendável que sejam exercidas, principalmente, pelo pessoal desamarrado dos blogs. Nas palavras do articulista:

“1. proselitismo em favor dos criativamente triunfantes, mas comercialmente marginais; 2. garimpagem em velhos catálogos à busca de obras-primas não-apreciadas em seu tempo; 3. colocação dos filmes dentro das narrativas mais abrangentes da história das ideias; 4. transformação de gosto pessoal em arte ensaística para o benefício de si própria”. Na imprensa de papel, é natural que tais práticas sejam exceção. Quanto à “blogosfera”, já vi e vejo páginas bem interessantes que se dedicam com coragem e abnegação a esse trabalho “nerd”. Não obstante, a coisa poderia ser mais generalizada, se é para que a próxima era dourada da crítica nasça dentro da rede.

Finalmente, reflitamos um pouco sobre a citação otimista que Brunick faz de Oscar Wilde: “É somente o moderno que sempre sai de moda”. Isso pode ser lido em duas chaves: 1. A auto-indulgência de qualquer vanguardismo masturbatório é estéril, seja este encarnado na forma de um filme, diretor ou movimento (já fui taxado de reacionário por defender tais posições, mas tenhamos um pouco de discernimento aqui, pessoal: existem vanguardas e “vanguardas” – dentre as últimas, os epígonos constituem a espécie mais abjeta que rasteja pela face da Terra);

2. Por mais que o capitalismo permaneça nos empurrando goela abaixo Brett Ratners e Michael Bays da vida, não são eles que ficarão para a história, assim como não ficaram nenhum dos “romancistas” que escreviam rentáveis folhetins como deviam usar papel higiênico, durante o industrioso século XIX – no lugar deles, temos hoje um Balzac. Pense nisso. Ousando contrariar Brunick, vamos dizer que nem sempre o capitalismo “acha um jeito”. Ufa! Acho que, por hoje, é isso mesmo. Assim que sair o próximo número da Film Comment (e eu conseguir comprá-lo, logicamente), tentarei traduzir, publicar e comentar aqui a parte final do texto de Paul Brunick. Falou!

quarta-feira, setembro 01, 2010

Os Vivos e Os Mortos - parte 1


Hoje o Sombras Elétricas completa 04 anos de vida, em suas 375 postagens, 61.575 visitas e 701 comentários. Agradecimentos muito carinhosos aos leitores, apoiadores, críticos e colegas blogueiros.

Agora, conforme prometido, o texto traduzido da Film Comment – do qual começamos a falar na última postagem.

OS VIVOS E OS MORTOS – “online” vs. “old school”: hora da desmistificação

por Paul Brunick

PARTE I

Para muitos de nós, a prática de crítica cinematográfica é mais excitante hoje do que tem sido por décadas. Sim, realmente. Isto pode soar como uma postura contrariante à luz dos muitos, muitos ensaios que têm recentemente propagado a “morte” da crítica de cinema (um alerta: a culpa é da Internet!); mas minha intenção é apenas constatar os fatos sob um ponto de vista mais comum do que geralmente se pensa.

Quando os “experts” se entregam aos seus devaneios de como a crítica era “antes da Internet”, eles geralmente acabam falando dos anos 60 e 70. É um truque bastante revelador. Embora tal período seja preservado como uma joia rara por muitos cinéfilos, para os críticos a nostalgia é mais severa. Enquanto os cineastas-autores da era clássica encontravam pouco uso para os “connaisseurs”, o momento pós-Cahiers das trocas de farpas beneficiava-se do mútuo enriquecimento entre a crítica e a criação. E as platéias também embarcaram nessa, sincronizando os seus gostos com os dos críticos em uma extensão que estes nunca tinham visto até então (e nunca voltaram a ver depois). Pela primeira vez nos EUA, havia um debate nacional sobre filmes que não se reduzia à sua política ou à sua “influência moral”, mas girava em torno de sua estética. Se a crítica cinematográfica teve uma era de ouro, foi essa.

Mas a festa acabou no começo dos anos 80, e uma ressaca cinzenta tem tipificado as reflexões desde então. A era do blockbuster empurrou a ambiciosa cinefilia para as margens da cultura popular, onde aquela se encontra agora sentada em exílio como um rei deposto que aguarda pacientemente a restauração. Isso não evitou eventuais turnos de entusiasmo crítico – a maneira como os resenhistas escrevem sobre os filmes (semana sim, semana não) é, com frequência, bem diferente de como eles escrevem sobre o cinema como um todo (enquanto indústria e forma de arte). Para os comentadores que têm trabalhado nas últimas três décadas, um filme poderia ser uma comédia em primeiro plano, mas sempre uma tragédia no plano geral. Hoje em dia, o canto de cisne do moribundo crítico de jornal pode ser melhor compreendido como uma luta burocrática nesta guerra fria cultural. Então, por que é que tantas pérolas de pensamento tentam sugerir que o barco ia de vento em popa até os bloggers invadirem a cena e arruinarem a coisa toda?

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“As lições da História são reveladoras”, escreve Thomas Doherty – colaborador do Chronicle of Higher Education – sobre o documentário For The Love of Movies: The Story of American Film Criticism. Mas o saudosista filme dirigido pelo crítico Gerald Peary é, na verdade, o oposto de revelador. Não passa de uma auto-afirmação. As principais atrações deste filme não vão além das caricaturas apressadas de estorvadas personalidades críticas: a santíssima trindade de Otis Ferguson, Manny Farber e James Agee; além do irrepreensível casal formado por Pauline Kael e Andrew Sarris. Este canônico time dos sonhos foi reunido para representar a crítica cinematográfica do século XX como uma tradição unificada, que se encontraria sitiada na era da Web (visualize imagens de arquivo mostrando mãos datilografando sob a sugestão de uma ambientadora trilha musical, como num “reality show” vulgar).

Para sermos justos, o filme oferece um ocasional aceno em direção ao equilíbrio de pontos de vista, quando a “blogueira” e agora editora de cinema do LA Weekly, Karina Longworth, faz uma aparição. Mas a montagem não deixa de favorecer aquelas cabeças falantes irrepreensivelmente dispostas a vomitar desespero ou cuspir veneno. “O que eu vejo nas resenhas de Internet são pessoas cuja ignorância é apenas ligeiramente menor do que a média expressando-se a si mesmas dentro da média”, opina o crítico da Time Richard Schickel. Quanto a Rex Reed, do The New York Observer, captamos melhor a nuança do seu discurso na insolente escolha das palavras: “essa gente”. Citando ambos, Doherty eleva a investida a paroxismos barrocos. Para ele, críticos digitais são “moleques arruaceiros que ainda pagam meia-entrada nos multiplex”; “homens pueris do povão, viscerais e emotivos”; e “trogloditas semi-letrados que perambulam pela paisagem rugindo exclamações”.

É foda! Eu até gostaria de dizer que os sentimentos de Doherty são únicos, mas artigos parecidos com o dele (tão parecidos, que poderiam ser escritos com os mesmos templates) têm sido uma fixação da imprensa mainstream por muito tempo. Tendo vinte e poucos anos, eu preciso admitir que esta compulsória condescendência em relação às gerações mais novas é particularmente irritante. Aparentemente, eu não leio. Coisa alguma. Nem tenho eu qualquer interesse em assistir ao “Encouraçado Pokémon” de Albert Einstein, porque, cá entre nós, eu já vi a versão colorida mesmo. Felizmente, o severo déficit de atenção de que sofro me compele a clicar para longe desses artigos e de seus justos sermões.

Bater-se de frente contra a retórica vazia da retaguarda crítica torna-se simplesmente improdutivo a partir de certo grau. Eu escrevi alguns parágrafos cuidadosamente urdidos em resposta aos prognósticos do crítico do New York Press, Armond White; mas, honestamente, de que adianta? Testemunhei White esbravejar contra a devastação cultural que seria o ciberespaço em alguns ensaios bem longos e meia dúzia de entrevistas, mas ainda falta vê-lo nomear quaisquer sites específicos que vão além do Ain’t It Cool News e do Rotten Tomatoes, os quais são certamente frutos bem rasteiros. Embora a autoridade histórica e o dinamismo verbal de White intimidem você quase a ponto de achar que ele está certo, quanto mais eu o releio, mais claro se torna o fato de que suas polêmicas não encontram chão na realidade empírica do presente. É apenas um esforço de má-fé, uma recusa total de se dedicar ao objeto em questão, porque tal objeto é definido – a priori – como indigno de dedicação. Isso nos lembra daqueles críticos que, em 1937, ainda faziam manha contra o som sincronizado.

Então, por que responder? Parcialmente, porque acredito que o talento crítico emergente na Web beneficiar-se-ia de maior apoio institucional. Mas principalmente, porque eu faço objeção à maneira como tais artigos barateiam a cinefilia. Esses “experts” brandem os nomes dos meus heróis da crítica como se estes fossem pouco mais do que paus e pedras na malhação dos jovens iniciantes. Eles se posicionam como designados guardiões de uma sabedoria herdada, tendendo a inflamarem-se conforme a idade das trevas digital se espalha pela terra; mas, ao invés de pensamento histórico aplicado, eles comercializam utilizando nostalgia pré-fabricada e desdém reacionário. Enquanto isso, uma geração de cinéfilos nascentes está sendo afastada do mesmo cânone que esses “experts” querem defender. Como a molecada diria hoje em dia: JÁ ERA! A história do comentário de filmes tem muito mais a dizer sobre o seu presente e futuro do que a fácil auto-afirmação do status quo.

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Antes de tentar explorar as vastas paisagens do ciberespaço (o que será feito na próxima edição), vamos dar uma segunda olhada nas carreiras de dois críticos muito violentados. O artigo de Doherty no Chronicle prossegue em For The Love of Movies: “A sua narrativa espinhal é a lendária e rancorosa disputa entre Andrew Sarris e Pauline Kael... Kael deu o primeiro golpe em seu duro ataque ao culto do diretor enquanto autor – ‘Circles and Squares’, publicado em 1963. Esse ensaio ajudou a deslanchar duas carreiras: a dela própria, enquanto crítica que não leva desaforo para casa, e a do seu alvo (Sarris), que subitamente reconheceu o manifesto de uma nova crença nos textos obscuros que publicara na Film Comment (de baixa circulação na época).”

Pode ser meio chato apontar que os primeiros artigos de Sarris foram, na verdade, publicados em Film Culture (ele só começaria a colaborar regularmente com esta revista em 1970), mas é um detalhe insignificante. Film Culture foi o órgão não-oficial da cena cinematográfica underground de Nova York, um trabalho de amor nutrido pelos irmãos Adolfas e Jonas Mekas. Só podia ser considerada uma revista “impressa” na medida em que não era escrita à mão num guardanapo de bar, uma vez que o seu espírito anti-establishment tinha pouco em comum com o jornalismo mainstream. Quando Sarris começou a escrever para ela no final dos anos 50, ele o fazia de graça.

E quanto a Pauline Kael? Ela mal poderia tirar Sarris da obscuridade em 1963, quando ela própria ainda era perfeitamente obscura. Seu debute se deu alguns anos mais tarde, quando uma coletânea de seus primeiros escritos, I Lost It All at the Movies, tornou-se um surpreendente bestseller. Examine o índice desse livro e você verá que muitos dos seus ensaios derivaram de trabalhos freelance inacreditavelmente sub-remunerados, feitos para periódicos de nichos específicos e comércio acadêmico; “Circles and Squares” rodou em Film Quarterly, uma revista que quase tinha abaixado as portas poucos anos antes por falta de assinantes. E muitas das resenhas são transcrições de participações que Kael escreveu e gravou para rádios universitárias, mais uma vez, de graça. Mas quando ela finalmente conquistou uma posição fixa no periódico de alta circulação McCall’s, em 1965, o seu contrato inicial de um ano jamais foi renovado. Por que? Como o editor Robert Stein admitiu com bastante franqueza anos mais tarde: “Ela não parava de detonar todo e qualquer filme comercial”.

Por um acaso, qualquer um desses fatos parecem a você afirmações auto-evidenciadas de profissionalismo de mercado? Por um acaso, iconoclastas e autodidatas do tipo de Kael e Sarris teriam realmente enxergado o poder de auto-publicação da Internet como algum tipo de intrusão indesejada?

As trajetórias pessoais de Kael e Sarris sugerem para mim que os grandes críticos de filmes sabem conciliar integridade e carreirismo numa tensão produtiva que torna insignificante qualquer noção de hierarquia. De modo mais prático, as suas obras demonstram que críticos de cinema trabalham melhor quando são capazes de escrever numa variedade de formatos que variam enormemente em volume, estilo retórico e público presumido. A inteligência de Kael, que viaja na velocidade da luz, associada à frequência também veloz com que escreve, fizeram com que o trabalho de resenhas semanais que ela tinha no The New Yorker fosse bem adequado ao seu temperamento; mas o seu legado pode igualmente ser encontrado nos longos ensaios com estilo de manifestos nos quais ela atacou questões mais abrangentes de indústria e de estética. “Trash, Art and The Movies”, artigo de 1969 publicado no Harper, tinha 15.000 palavras sobre... bem, não é tão fácil fazer uma sinopse. E este é o ponto da questão. Que bela revista impressa hoje em dia aceitaria publicar um texto de tal tamanho e tal ambição? Para qual revista se dirigiria um seguidor contemporâneo de Sarris que quisesse publicar umas “Anotações Sobre a Política dos Autores em 2010”?

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Se há um ponto no qual eu até simpatizo com as facções “apocalípticas”, é na sua solidariedade para com os recentemente desempregados das seções de artes e cultura de qualquer jornal. Não posso imaginar o que deve ser passar décadas em uma carreira que outrora prometia estabilidade até a aposentadoria apenas para ter o tapete puxado debaixo de seus pés. É trágico. O sadismo com que se realiza cada uma dessas demissões é nojento, e são geralmente retardados os argumentos em favor da imprestabilidade social da figura do crítico (há sempre algum pesquisador aplicado que descobre que “crítico” é etimologicamente relacionado a “criticar”). Porém, o grau com que esses cortes de pessoal ocasionaram reflexões a respeito do futuro da crítica acabou distorcendo a análise, lembrando frequentemente aquelas racionalizações posteriores que se tentam fazer de uma explosão de nervos. E quanto à ideia de que este período de destruição pode levar a uma ressurreição das próprias cinzas, como uma Fênix? Você consegue sequer sugerir isso sem soar como um completo malcriado?

No geral, a crise existencial do jornalismo tem sido exagerada. Se você mantém as rédeas curtas durante as grandes recessões, mas soltando-as para o grande número de posições criadas pela economia do ciberespaço, acreditando (como eu) que o futuro da publicidade online ainda está para ser conquistado, então as perspectivas passam de desesperadoras para apenas ruins. Dentro da próxima década, a indústria de notícias encontrará uma solução para seus problemas de rendimentos (minha teoria pessoal é de que edições digitais de marcas bem estabelecidas serão embrulhadas e entregues como se fazem com os pacotes de TV a cabo). Se esta confiança soa ingênua, é porque ela nasce de um questionável cinismo: no fundo, acredito que a revolução das fontes livres na Web será inevitavelmente esvaziada em tamanho e efeitos pela contrarrevolução de direcionamento econômico que está para chegar. O capitalismo sempre acha um jeito.

Mas aqui vai um toque de realidade: o sistema que atualmente está sendo reestruturado não era, particularmente, um grande sistema para começo de conversa. E os críticos sabem disso. Eles têm reclamado durante os últimos 30 anos. Quando Hollywood reconhece experimentalismos de linguagem e complexidade dramática só tardiamente, relegando-os maliciosamente às divisões “especiais” de seus estúdios; quando o lançamento de filmes estrangeiros é relegado a guetos específicos num punhado de cidades grandes; quando os espectadores são definidos pelo mais baixo denominador comum de sua indiferença; então, temos aí a situação em que dúzias de críticos profissionais tentam expandir sua inteligência coletiva para encontrar novas maneiras de analisar sarcasticamente o virtuosismo de um Brett Ratner ou a desumanidade de um Michael Bay (ambos os casos dignos de nota, mas dificilmente seriam o apogeu da crítica cultural). Mas e quanto às outras funções de um crítico: proselitismo em favor dos criativamente triunfantes, mas comercialmente marginais; garimpagem em velhos catálogos à busca de obras-primas não-apreciadas em seu tempo; colocação dos filmes dentro das narrativas mais abrangentes da história das ideias; transformação de gosto pessoal em arte ensaística para o benefício de si própria? Nas mercantilizadas colunas de resenhas em jornais, tais práticas têm sido a exceção, e não a regra.

Elogiar saudosamente o passado da crítica de filmes é, no final das contas, traí-lo. Como Oscar Wilde escreveu uma vez: “É somente o moderno que sempre sai de moda”. O presente digital – incipiente, desengonçado, volátil, mas bastante vivo – anima-se de uma promessa pulsante: a próxima era de ouro pode estar apenas a alguns cliques de distância.


Por hoje é só, galera. Na sequência: comentários ao texto acima.