“Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.” Walter Benjamin, Sobre o conceito da História, in Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política, vol. 1.
A gente já sabe
que a história é escrita pelos vencedores, que fazem valer o seu próprio ponto
de vista e costumam produzir uma linha interpretativa de acontecimentos que
segue pauta única: o “progresso”. Assim sendo, a história geral da humanidade
seria a história de uma caminhada essencialmente homogênea, contínua. Uma
caminhada vazia. O outro lado dessa moeda é o tempo histórico observado em seus
acidentes, paradas, retornos (retrocessos), saltos; ou seja, em sua inerente heterogeneidade,
descontinuidade. Uma história não-triunfalista, fragmentada, plena de tensões e
contradições. Assumindo a visão dos “derrotados”, legitimando-a, preservando-a,
divulgando-a, o historiador materialista deverá então escovar a história a contrapelo, desfazendo a sua superfície
predominantemente homogênea.
Circula na
internet um video curto (menos de 4 minutos), com imagens amadoras da cidade de
São Paulo em 1944 e 1945. A filmagem é bastante caseira (em 8mm, com boa
qualidade e em cores) e revela cenas familiares: um pai segurando seu bebê, uma
criança brincando, uma família acenando, tendo como pano de fundo as ruas da
cidade. Tudo com muita singeleza, lembrando bastante os primeiros filmes dos
irmãos Lumière (“Le Déjeuner de Bébé”). Não encontrei referências aos autores
ou pessoas filmadas, apenas à empresa que fez a telecinagem a partir do
original em 8mm. O caráter prosaico e íntimo das cenas espontâneas, junto com o
aspecto quase bucólico de uma São Paulo que ainda podia se vestir do epíteto de
“terra da garoa”, fazem ambos o encanto dessa pequena relíquia cinematográfica,
anônima.
Contudo, há algo
nela que não dá para esquecer, que é impossível de não chamar a atenção de um
observador atento. Quando o filme bate a marca de 1 minuto, vemos um pai (ou
tio, avô, enfim) caminhando de mãos dadas com uma criança pequena (um menino),
pela calçada, em direção à câmera. Poucos instantes depois, ele o tomará nos
braços, beijando-o e olhando para ele com um afeto comovente. Enquanto a cena
se desenrola, vemos surgir em plano de fundo, e com uma profundidade de campo
extraordinariamente nítida, uma mulher – negra – que vem caminhando também rumo
à câmera, na mesma direção do homem e do menino. Ela vem calmamente pelo lado
de dentro da calçada, quase rente ao muro das casas. De repente (à meia distância
do “assunto” da cena), ela faz uma curva de 90 graus à direita e parece que vai
atravessar a rua, quando sai do quadro.
Eu disse que não
consegui descobrir a identidade pessoal
dos cidadãos paulistanos que aparecem na filmagem, mas a sua identidade
social pode ser facilmente deduzida. A família mostrada é branca e, é bem
provável, de uma condição social minimamente confortável, uma vez que podem
dispor de uma câmera para eternizar momentos de intimidade (também deviam ter
acesso, logicamente, ao material de projeção), em meados dos anos 40. Lembremos
também que a cena em questão se passa na rua José Maria Lisboa, no bairro nobre
dos Jardins. A esses personagens, supostamente típicos de uma classe média
paulistana da época, contrapõe-se a mulher negra que passa, carregando um
embrulho nas mãos. Quanto a ela, sobram especulações.
Quem é essa
mulher, socialmente falando? Seria também moradora dos Jardins, da rua José
Maria Lisboa? Teria ido apenas até a padaria mais próxima, para comprar pão
para si e para os filhos? O fato é: sabemos que a “gente diferenciada” até hoje
não é residente típica de bairros nobres paulistanos, sequer bem-vinda neles (a
não ser, é claro, para trabalhar sem maiores direitos legais nas casas dos
“patrões”): reveja-se a polêmica da construção do metrô em Higienópolis. Se
atualmente, 126 anos depois da abolição da escravatura, a questão social e
racial no Brasil ainda sofre bastante para ser debatida e resolvida, como é que
deviam ser as coisas em 1944 – apenas 56 anos passados da Lei Áurea? E
principalmente: por que essa mulher desvia seu caminho, de maneira tão brusca?
Não é estranho isso?
Experiência de
pedestre: quem vem andando, de maneira calma, firme e em linha bastante reta
(sem aquele leve ziguezaguear de quem passeia à esmo, ainda mais do lado de
dentro da calçada), sabe muito bem para onde está indo e não vai, normalmente,
desviar-se em uma curva de 90 graus, de repente. Pelo menos, não sem algum
gesto de cabeça, mãos ou tronco indicando que a pessoa esqueceu algo muito
importante em outro lugar, fora do seu caminho; ou que viu algo chamativo do
outro lado da rua e decidiu rumar para lá. Na filmagem que vemos, a mulher vem
de cabeça e (provavelmente) olhar firmes na direção da câmera – não dá para ver
seu rosto em detalhe. Experiência de pedestre: quem anda e olha de modo tão
reto assim, e muda de direção de repente, é porque viu algum obstáculo à frente
(real ou presumido – o medo, por exemplo, de algum pedestre “suspeito”
caminhando na direção contrária).
O que será que
essa mulher viu? Será que o cinegrafista – ou alguém da família, ao lado dele –
teria feito para ela aquele gesto sutil de “chega para lá, a genta tá filmando
um negocinho aqui, coisa rápida”? Ou será que ela percebeu a filmagem e, por
gentileza (ou constrangimento), decidiu passar pelo outro lado da rua, para
“não atrapalhar”? E principalmente: qual o significado simbólico disso, tendo
em vista os preconceitos e desigualdades sociais e raciais, no Brasil e em São
Paulo, ao longo da sua história? Tendo em vista também nossa “cultura”, ainda
muito viva em 2014, da divisão social dos espaços, tanto os públicos quanto os
privados: os apartamentos de luxo com “quartinho de empregada”, os elevadores
“de serviço”, os “rolezinhos” em shopping centers, etc, etc, etc. Imagine em
1944!
Essas perguntas
poderão parecer inúteis para muita gente, mas o fato é que este pedaço de fita
de cinema de 8 milímetros ilustra um dos grandes poderes da imagem audiovisual,
ainda que por acaso (entre os grandes cineastas, a coisa é bem proposital): as
relações – principalmente de contraponto – entre o primeiro plano e o plano de
fundo, usando uma lente que possibilite a profundidade de campo. Temos aqui
duas narrativas, dois universos temáticos, dois conjuntos (tipos) de
personagens, que vão se desenrolando e construindo suas relações paralelamente,
em um mesmo plano. São duas histórias, completamente independentes, e uma
terceira: aquela que nasce do contato (para não dizer o choque) entre ambas,
quando a mulher percebe a câmera e procura sair do seu próprio caminho, o caminho
da lente.
Para aqueles que
gostam de escovar a história e o cinema à contrapelo, no dizer de Walter
Benjamin, a história dessa mulher negra será bem mais interessante, enquanto
narrativa cinematográfica. É a história dela que deverá ser trazida e focalizada,
através da reflexão crítica, para o primeiro plano, ao contrário do que seria a
história “principal” nesse filme (o homem e o menino). Em cinema, muitas coisas
importantíssimas – para não dizer as mais importantes – residem nos pequenos detalhes,
nas laterais ou no fundo do quadro, fora do âmbito do assunto / drama principal.
É à contrapelo que se descobrem e se comunicam coisas que nos fazem realmente
entender o conjunto de uma realidade cujo recorte, aparentemente ingênuo, temos
na frente dos olhos.
No fundo de uma
cena tão idílica e clara da vida da classe média paulistana (cena essa de valor
humano naturalmente incontestável), percebemos quase que literalmente uma
mancha. Uma coisa que, em princípio, parecer ser nada (e pode ser nada mesmo);
mas que, por outro lado, pode revelar algo terrível: uma tensão incômoda, um
elemento de desagregação no tecido de uma sociedade que, em primeiro plano,
parece tão homogênea, harmônica, tranquila, feliz... No fundo da imagem, pulsa
uma outra cena, que logo será praticamente varrida para fora do quadro, mas
cujo valor humano também precisa ser lembrado, enaltecido, eternizado com o
mesmo poder dos instrumentos da sétima arte, sob pena de... Bem, a História já
se cansou de nos tentar ensinar.
O link para o
vídeo é:
P.S.: A sutileza
de Woody Allen nos dá outro exemplo, este perfeitamente irônico, do poder da
imagem cinematográfica em condensar e equilibrar, dentro de um único plano,
duas narrativas, dois universos opostos – e de pesos diferentes, tendo em vista
as estruturas sociais. Em Blue Jasmine
(seu filme mais recente), vemos a irmã e o cunhado da protagonista chegarem
para fazer uma indesejável visita; ambos são pobres, enquanto ela é uma
socialite nata, casada com um milionário. Com a câmera fixa em um plano
incomodamente longo, vemos todos se cumprimentarem e engatarem aquela conversa
inicial sobre amenidades, parados na entrada do apartamento, enquanto a pobre
da empregada segura a porta aberta, sem que ninguém entre ou saia
completamente, absolutamente ignorada por todos, objeto de cena...