sexta-feira, janeiro 29, 2010

Avatar



Eu tive que comprar ingresso para este filme com uma semana de antecedência, pois todas as sessões se achavam lotadas – isso porque ele já estava havia um mês em cartaz . Nunca tinha passado por isso antes; o máximo de “perrengue” que já tivera para ver um filme foi esperar algumas horinhas na fila do velho cine Marabá para assistir a Batman, em 1989, ou sentar-me no chão para ver ET – O Extraterrestre, em 1985. Chegando o tão glorioso dia (ontem), a sala I-MAX do Shopping Bourbon Pompéia parecia um parque de diversões. A última vez que entrara em uma sala de cinema absolutamente lotada foi para ver O Poderoso Chefão, na Mostra de SP de 2008. Muito bem. Os óculos 3D colocados, após alguns trailers o filme começa.

Numa panorâmica aérea, na primeiríssima cena, a vertigem já me faz quase cair para a frente e acelera meu coração de uma maneira que eu não sentia desde meus remotos tempos de Playcenter. O resto é espanto, assombro, choque, fascinação. Se o cinema nasceu com e se define pela obra de Georges Meliès (como defende Georges Sadoul), então temos de admitir que James Cameron é o seu maior mestre na contemporaneidade. Tudo em Avatar é hiperbólico, a começar pelo custo de 500 milhões de dólares desta produção e os quase 2 bilhões que ela já arrecadou – quebrando o recorde histórico de Titanic. Será James Cameron o novo Meliès ou o novo Cecil B. de Mille?

De qualquer maneira, temos aqui o mágico e o fabuloso colocados de volta à sétima arte nos níveis mais primevos da experiência sensorial. Os enjôos provocados por este filme nas salas I-MAX em 3D são muito reais. A amiga que me acompanhava passou consideravelmente mal e continuou enjoada mesmo após o fim da sessão, enquanto voltávamos para casa. Quanto a mim, só tive algumas tonturazinhas e um leve peso no estômago em um determinado momento muito “aéreo” da fita. Avatar é realmente diferente de qualquer outro filme do 3D atual, seja animação ou “live action” – a película de Cameron é literalmente um amálgama dos dois.

Imagino que a tecnologia inédita, inventada exclusivamente para este filme, tenha surtido os resultados esperados. A sensação de imersão que toma conta do espectador é quase indescritível. Já não estamos mais falando em metáforas quando dizemos que a tela do cinema é uma “janela” para o mundo. O próprio Cameron falou sobre a sua tecnologia pioneira em uma entrevista para a Variety, que eu traduzi e publiquei aqui no blog. De resto, o design dos cenários, das paisagens, dos monstros e criaturas fantásticas que povoam o mundo de Pandora foi feito com o maior esmero que se poderia esperar do orçamento “pandórico” do filme. Não mergulhávamos com tanta força numa outra realidade desde O Senhor dos Anéis.

Avatar é uma experiência a ser vivida. E geralmente, quando se discute o cinemão mais sensorial, deixa-se de lado a fábula, a intriga, o enredo, os temas e mensagens veiculadas – tanto porque estes já são como que deixados de lado pela própria produção do filme. Bem, Avatar não é tão ingênuo quanto as velhas fitas de Meliès ou de Mille. James Cameron cutuca – alegoricamente, é claro – algumas feridas abertas da situação histórica e geopolítica atual. Agora, qual a coerência “subversiva” de um filme de meio bilhão de dólares é um assunto que fica para outra hora. Vamos aqui pensar apenas na história proposta pelo diretor-roteirista.

Outro dia, vendo um programa de entrevistas em um desses canais de notícias, tive vontade de dar um tiro na televisão ao ouvir um desses “economistas” reclamando muito pomposamente que a mais recente crise internacional tinha sido causada pelo Estado, e não pelas manobras excessivamente arriscadas e desregulamentadas dos bancos, como alguns querem nos fazer acreditar. O jornalista, em afago ao discurso do entrevistado, citou como papagaio os aforismos dos papas do Consenso de Washington, de que “o Estado não é parte da solução, é parte do problema”. Isto é um absurdo tão grande, uma barbárie tão incompreensível quanto o discurso daqueles que tentam negar o aquecimento global.

É nestes momentos que eu torço sinceramente para que aconteça na realidade algo como em O Dia Em Que A Terra Parou, ou em O Fim dos Tempos, ou ainda em O Senhor dos Anéis (quando as árvores se revoltam contra a indústria e destroem a “fábrica” do mago Saruman). Pois bem. É exatamente o absurdo de alguns discursos e atitudes muito dominantes hoje em dia que aparece em Avatar, com o choque de todos os filmes que mostram a barbárie (nazista ou não): o mais recente deles era Distrito 9. Enquanto o mundo for conduzido por executivos mimados e petulantes com a idade mental de um moleque de 10 anos e por generais com as mesmas características, as coisas continuarão no rumo que estamos presenciando.

Avatar é uma fábula que posiciona sua moral contra os horrores da colonização. Os seres humanos que exploram Pandora pensam dentro da lógica positivista do neo-colonialismo do século XIX: o “progresso”, o bem-estar e a felicidade de uma população se medem apenas pelas conquistas científico-tecnológicas e pelo nível de prosperidade material. Com isso, os “selvagens” são necessariamente criaturas inferiores, pois andam semi-nus, vivem no meio do mato e praticam rituais “excêntricos”. Seja no futuro ou no passado – incluindo também boa parte do presente – não se consegue ter qualquer dimensão da visão de mundo do outro, de um outro modo de vida, de uma outra cultura.

O modus operandi dos colonizadores de Pandora é o mesmíssimo desde as grandes navegações do século XVI. Os na’vi devem se tornar civilizados e aculturados por bem ou por mal – tanto porque o que mais desejamos, no final das contas, são os recursos naturais das terras deles. Em 2154 não há mais a Compahia de Jesus, logicamente. Mas há as pesquisas “científicas” e sobretudo a “educação”. A personagem de Sigourney Weaver representa esta faceta do processo colonial. Ela tem bom coração e é inquestionavelmente bem intencionada, assim como os padres missionários do século XVI. Mas todos são frutos do seu tempo. Querendo fazer o bem – e até conseguindo, de certa forma – acabam no entanto por contribuir para o grande mal dos povos invadidos e dominados.

É claro que Avatar é uma produção de Hollywood e o bem sempre triunfa no fim. Mas em nossa realidade, as forças representadas pelo jovem executivo Selfridge e pelo coronel Quaritch sempre venceram. Exceto, talvez, no Haiti; mas veja só a história posterior e o atual estado daquele país. Ainda dentro da história das colonizações, Avatar não deixa de se arvorar nos mitos edênicos do paraíso reencontrado: Pandora é um novo Brasil – veja-se o famoso e clássico estudo de Sérgio Buarque de Holanda (“Visão do Paraíso”). Outro mito de que James Cameron se aproveita é o do encontro idílico de um homem e uma mulher que representam o “melhor” dos dois mundos: a civilização e a natureza. A história de Pocahontas e a de nossa Iracema (tão bem contada por José de Alencar) ecoam na de Jake Sully e Neytiri.

Bem, acho que é só. Quam ainda vai ver, divirta-se! E se for assistir ao filme em I-MAX 3D, não se esqueça de tomar um dramin antes (apesar do sono que ele provoca).

quarta-feira, janeiro 27, 2010

Os Incompreendidos



O que é que traz o encanto específico à obra de François Truffaut? Qual é a personalidade presente em todos os seus filmes? Acredito que seja, acima de tudo, uma naturalidade bastante especial. Truffaut filma com espontaneidade. Mas não é aquela espontaneidade calculada (ótimo paradoxo) dos filmes de tese neo-realistas, ainda que a forte influência da escola italiana se faça sentir não só no diretor de Os Incompreendidos, mas também nos seus companheiros da nouvelle vague. Truffaut filma como uma criança fascinada com a novidade, com a vida, com o mundo. Filma com ingenuidade (mas sabe muito bem o que faz). Filma com alegria: é o mais apaixonado dentre os diretores franceses de sua geração. Apaixonado pelo próprio cinema: seus textos de reflexão, suas críticas (ele começou escrevendo para a Cahiers du Cinema, apadrinhado por ninguém menos do que André Bazin – que o teria tirado das ruas ainda garoto, infância que ecoará no seu primeiro filme), as entrevistas empreendidas com Alfred Hitchcock, tudo o que fez esse rapaz (morreu ainda jovem) atesta um amor em relação ao cinema que é “calmo e prestante”, um amor de amigo e de amante, um amor total (no dizer do poeta Vinícius de Morais).

Os Incompreendidos (“Les Quatre-Cents Coups”, 1959) é uma das obras-primas universais sobre a infância. Sobretudo sobre a infância abandonada. O filme ecoa o espírito rebelde / traquinas de Jean Vigo (Zero de Conduta, 1934) – Truffaut se arvora somente nos melhores. A propósito, o cinema-criança-alegria de Truffaut também se faz notar pelo modo “peralta” de filmar, podemos dizer assim. Mas a liberdade e a sede de viver andam carregadas do desprezo, da inadequação, da repressão. Daí nasce o bem conhecido drama. Há um momento do filme em que a montagem expressa muito sugestivamente essa tensão: o jovem protagonista, Antoine Doinel (vivido por Jean-Pierre Léaud), está preso no centro de correção para menores infratores; vemo-lo enrolando um cigarro. Corte. Primeiro plano de seus dedos segurados pela mão de um adulto enquanto são tiradas suas impressões digitais. O filme todo dá esse destaque para as mãos, os dedos em gestos cotidianos que passeiam entre o carinho e a agressão. Outros momentos significativos são: logo no começo, quando Antoine põe a mesa para a família jantar; ou quando ele recebe no rosto um inesperado tapa do agente penitenciário. “Tenho duas mãos e o sentimento do mundo”, dizia o poeta Drummond. O poeta François Truffaut também tem.

terça-feira, janeiro 26, 2010

Plastic City


Cidade de Plástico é um filme bobo. É daqueles que querem dizer tanta coisa, mas tanta coisa, que acabam não dizendo nada. Parece que o tanto de gente que deve ter posto a mão nesse filme não conseguiu se entender: os trocentos mil produtores, co-produtores, produtores executivos e produtores associados, o diretor, os dois roteiristas, etc. Resultado: um apanhado e emaranhado cansativo de belas imagens sem qualquer organização numa história orgânica. Que se compreenda bem: o filme tem um enredo e este é relativamente compreensível; mas não convence. Cidade de Plástico não tem vida, não respira por conta própria, é tudo muito falso ali.

O que sobra são as firulas estetizantes da fotografia e da montagem, mesmo que estas não venham de lugar algum e levem para nenhum lugar. A mise en scène cambaleia muito mal entre mil e um estilos – e conflitantes estilos. O que mais se destaca – e mal se encaixa – são as cores e as luzes de um Wong Kar Wai, misturadas ao fantástico cartunesco de Kill Bill e ao ultrarrealismo de Cidade de Deus. Mas o pior é o som – o que já era de se esperar, em se tratando de filme brasileiro (ou meio-brasileiro): os dois atores chineses do elenco (protagonistas da história) aparecem tão mal dublados que dá vontade de dar risada. As falas deles lembram o Tela Class, da MTV, em que a turma do Hermes e Renato fazem dublagens satíricas de filems obscuros.

E o que é a participação ridícula do ótimo Milheim Cortaz? Se não é para colocar algo bem colocado em um filme, que não se coloque nada. Será que é difícil aprender isso? Como acontece com toda má narração, o discurso do autor aqui fala mais alto do que a narrativa dos acontecimentos. Percebemos o que o diretor e roteiristas quiseram nos comunicar através das mãos pesadas deles que esbofeteiam cada cena do filme. Mas nada do que aparece parece acontecer por conta própria – que é o que seria de se esperar de uma intriga minimamente realista. No final das contas, os paulistanos contentar-se-ão com a presença de sua cidade no cinema – coisa menos comum do que gostaríamos que fosse.

sexta-feira, janeiro 22, 2010

Bastardos Inglórios



Erro de português
 
Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
 
Oswald de Andrade
 
O gênero do "poema-piada" é algo bastante divertido na literatura do modernismo. No cinema, algumas produções levam-nos à tentação de adotar a classificação de "filme-piada". Os mockumentaries (falsos documentários satíricos) são, logicamente, os mais aptos a entrar neste rol; não obstante, a galhardia e fanfarronice de um Quentin Tarantino (verdadeiro traquinas) nos presenteou com estes Bastardos Inglórios.
 
O filme não se perde tanto no jogo de referências, citações e homenagens, coladas umas por cima das outras de maneira um tanto quanto frívola como em Kill Bill – apesar de estar claramente anos-luz atrás dos clássicos sarcásticos da II Guerra Mundial como Fugindo do Inferno (1963). O mérito de "Inglorious Basterds" é nos fazer pensar que a barbárie é algo tão absurdo, mas tão absurdo, MAS TÃO ABSURDO,
 
que a única resposta possível a ela é uma resposta dotada de um absurdo tão intenso quanto, mas que se faça diametralmente oposto a ela quanto ao posicionamento ideológico – é claro. E, além do mais, o filme é muitíssimo divertido e engraçado – e isso não precisa ter razão alguma. Com isso, Tarantino acerta com o mesmo tiro dois alvos distantes um do outro: é divertido ver Bastardos Inglórios e é divertido ver a derrocada "alternativa" do nazismo que o filme propõe.
 
Aqui, o diretor chega ao auge da catarse provocada em relação a uma violência sádica mas justiceira, coisa a que ele já se propunha desde Pulp Fiction. Nos filmes de Tarantino, os mais violentados são aqueles que mais "merecem" – pode apostar. Em tempos de Tropa de Elite, isso funciona muito bem com o público geral. E como as suas películas não se apresentam mais do que como "pulp fictions" (ficções baratas como as histórias em quadrinhos),
 
não podemos nem acusar o cineasta de estar defendendo posicionamentos sócio / políticos polêmicos. Pior mesmo são aqueles diretores que fazem filmes "de tese" – como o Lars Von Trier que discutinos aqui ontem. "Cine-gibi" (não o da turma da Mônica): eis o cinema tarantinesco. A fala "Au revoir, Shosanna!" já virou bordão na boca dos mais descolados. Então tá.

quinta-feira, janeiro 21, 2010

Comparações


Quando se fala em artes, a gente aprende não só com os bons exemplos, mas também com os maus. As grandes porcarias são tão didáticas quanto as obras-primas. Comparar-se então as duas é algo que funciona perfeitamente bem. Ainda mais quando se trata de dois filmes com a mesma temática, ou com as mesmas fontes de inspiração estética (deixo de fora, por enquanto, o infame caso das refilmagens). Bem, para que estou falando disso? Apenas para sugerir que todos assistam e comparem estes dois filmes:
 
A Hora do Lobo (1968), de Ingmar Bergman
 
Anticristo (2008), de Lars Von Trier
 
O segundo é, como boa parte da obra do seu diretor, uma grande picaretagem. Von Trier não passa de um marketeiro da "pós-mudernidade". É muito discurso para pouca realidade. E um discurso que não vai lá muito além da visão de mundo sorumbática de um típico "garoto enxaqueca" (alguém lembra dele?). "Ah, mas o cineasta dinamarquês, um dos ideólogos do DOGMA-95, é um grande polemicista!" – alguém poderia contra-argumentar. Que gracinha! Garotos de 08 anos também são "grandes polemicistas"...
 
De qualquer maneira, pegue-se a primeira cena de Anticristo e jogue-a nas mãos de qualquer um daqueles cineastas "da crueldade" de que fala André Bazin: teríamos facilmente, a partir dela, um grandessíssimo filme. E convenhamos: é piada aquele infeliz querer dedicar a película dele a Andrei Tarkovski, né? "Ah, Lars Von Trier é um grande provocador!..." Nesse sentido, os imbecis dos formandos que pixaram a Faculdade de Belas Artes em São Paulo também são grandes provocadores, não?
 
Como é odiosa e ridícula a condescendência com que os "críticos" tratam qualquer cineasta moderninho! Prefiro, só de raiva dessa pseudo-"inteligentzia", pagar pau para Michael Bay... Enfim, quem discorda de mim que assista – é um favor que você faz a si mesmo – à Hora do Lobo. A intriga é praticamente a mesma, na essência. Mas aqui temos um filme de verdade, de um cineasta com visão de mundo de verdade. Aliás, não é nem um pouco à toa que Bergman é um dos ídolos de Tarkovski.
 
Não farei nenhuma análise mais extensa de nenhum dos dois filmes. Não quero. Não precisa. Assista aos dois com muita atenção e carinho, e depois, trocaremos idéias. Pois o discurso unilateral (ao contrário do que alguns pensam) não explica tudo; só o diálogo, só as experiências compartilhadas é que nos fazem mergulhar de fato em um filme, às vezes. Enfim, a Trier só digo o seguinte: cinema de verdade é pra quem pode, não pra quem quer. Quem pode, inspira-se pelos grandes clássicos; quem não pode, alopra (fazer o quê?)...

domingo, janeiro 17, 2010

Onde Vivem Os Monstros


Olá, pessoal! Após algum tempo de muito trabalho, mudança de casa, poucos filmes e menos textos, estamos de volta ao Sombras Elétricas – entrando já em seu quinto ano de atividades (incrível, não?). Desejamos um feliz 2010 a todos e que venham grandes filmes! (como o que já será discutido abaixo, com spoilers, avisamos)

Este não é um filme fácil. É de um realismo mágico (adoro essa contradição) que lembra as fábulas infanto-adultas e sobretudo cruéis como O Labirinto do Fauno, Coraline e qualquer coisa feita por Tim Burton. Mas, ei! Spike Jonze também é um diretor maldito, não? Pois bem. Esta adaptação feita por ele de um clássico contemporâneo da literatura infanto-juvenil norte-americana é perturbadora como qualquer produção simbólica que cutuque (com vara curta) as onças mais escondidas do inconsciente humano. E acreditem: não há nada de moral(ismo) neste filme. As soluções encontradas são bastante positivas, mas o que pesa aqui é o processo – difícil e doloroso – de formação psíquica do indivíduo (particularmente a da criança). Então, o filme é sério.

A história é a de um garoto – Max – por volta dos seus dez anos, que se vê na grande dificuldade de encontrar o seu lugar: dentro de si mesmo (antes de mais nada), dentro da família e dentro do mundo. Após brigar com a irmã e com a mãe, ele toma um pequeno barco a vela e se lança ao mar, indo aportar numa ilha distante onde encontra um grupo de monstros – algo fofinhos, algo tenebrosos – que, por sua vez, estão com sérias dificuldades de lidar uns com os outros e consigo mesmos. Max se fará rei do bando e tentará consertar a situação. É aí que o bicho pega (trocadilho infame). A majestade do garoto se baseia na crença que os outros têm em seu grande "poder". Logicamente, dia mais dia menos os monstros perceberão que Max não tem lá muito a lhes oferecer. Então...

Muito bem. Realmente interessante é a solução encontrada pelo garoto. Ele admite não ter poder algum. Coloca-se, no final das contas, como apenas mais uma criatura frágil – tal qual os monstros. E sobretudo, Max coloca-se como amigo deles, disposto a chorar em seus ombros e dar o seu próprio às lágrimas alheias. Ah, e o menino decide voltar para casa! Com grande comoção, as despedidas são feitas e os monstros confessam que Max foi o único "rei" que eles não devoraram. O filme termina com a reconciliação de Max com sua mãe. Antes de mais nada, diga-se que esta narrativa é conduzida num tom bem equilibrado, com o grande e constante apoio da maravilhosa trilha sonora composta por Karen O. (vocalista do Yeah Yeah Yeahs).

Mas o que significa tudo isto? (perguntinha sempre infeliz). Bem, como toda fábula, a leitura deverá ser simbólica. O filme representa uma etapa do que Jung chama de o processo de individuação, que é a formação psíquica do sujeito – o tornar-se si mesmo – que ocorre na verdade ao longo de toda a vida. Os monstros, cada um com sua própria personalidade e suas idiossincrasias, representam aspectos diferentes e conflitantes da personalidade em formação do próprio garoto. A tarefa dele, como o filme bem mostra, será organizar, concatenar, equilibrar e promover as boas relações entre todos os "monstros" internos – sob pena de ser "devorado" por eles (a dissociação psíquica, para Jung, provoca o desabamento do indivíduo como um todo).

Mas o problema maior é que esta missão não poderá ser realizada através do controle despótico da razão. A razão não manda em nada, a razão manda apenas na própria razão, ela é apenas mais um dos muitos elementos que compõem a totalidade do nosso ser. Por isso, Max não pode ser simplesmente o "rei" da galera. Por que é que vocês acham que Max foi o único rei não-devorado pelos monstros? Porque muito provavelmente todos os outros não quiseram abandonar a majestade, o "poder"; não admitiram que não poderiam, afinal de contas, conduzir as relações entre os monstros como um maestro de orquestra. É claro que abandonar a razão não significa entregar-se a todos os caprichos do inconsciente. O equilíbrio está em aceitar-se como se é com naturalidade e ser sobretudo amigo de si mesmo (que piegas isso).

Lidando melhor com as próprias complicações internas, estaremos mais aptos a lidar com as dos outros e com as do mundo. Este é o ponto em que Max atinge a sua maturidade e decide voltar para casa, reconciliando-se com a mãe. Há um momento do filme em que o garoto chega a desejar que aqueles monstros tivessem uma mãe... (!) Puxando isto para Freud, vemos aqui o complexo de édipo e a consequente e necessária castração, processo em que nascerá o desejo que traz propósito às nossas vidas. A função materna é necessária, pois, não podendo tornar-se um com a mãe, o sujeito buscará realizar seu desejo mais primário de união com o outro (ou com o mundo) através de uma esposa, ou ideologia, ou trabalho, etc.

Os monstros viviam sem propósito até a chegada de Max (que lhes proporá a construção do "forte"); neste sentido, o próprio menino já funcionará como uma mãe para todos. E a separação será logicamente necessária para o completo amadurecimento de todos (e do próprio Max). Com tudo isso, o filme, seu cenário e personagens compõem uma verdadeira paisagem da alma; uma "maquete" da alma, digamos assim, tal qual aquela construída pelo monstro Carol. Jung trabalha com a ideia da pedra da alma (presente em algumas mitologias), que, assim como o totem ou outras esculturas (as quais já seriam objetos construídos por mãos humanas), configura uma exteriorização simbólica da psique do indivíduo.

É o que vemos no filme, desde o iglu construído no começo por Max – e que será destruído por um dos amigos da irmã, o que deixará o garoto extremamente triste e indignado – até o forte / imensa moradia para todos os monstros. A moradia, nos sonhos, também caracterizam uma simbolização da psique. Desse modo, entende-se porque Carol aparece no começo destruindo as casas dos seus companheiros (a dissociação psíquica), até que chega Max (o elemento consciente de união e propósito) e propõe a construção do forte – a moradia coletiva de todos os elementos da alma. Enfim, de qualquer maneira, o filme não se reduz a essas viagens de psicologia de porta de botequim, por mais que elas possam ser tentadoras às vezes. O melhor mesmo é ver e sentir e pensar com carinho e naturalidade na experiência proporcionada. Até.