sábado, setembro 30, 2006

A Oitava Cor do Arco-Íris



É um alívio imenso ver um filme brasileiro contemporâneo que não pareça uma atualização cinematográfica da velha literatura de Aluísio Azevedo e de Émile Zola. Ou seja, um filme nacional que não apresente, numa chave tão contundente que beire o exagero sádico, a miséria material e psíquica, a violência, a ditadura militar, e outras chagas típicas do nosso país. Melhor ainda seria um filme que ignorasse completamente esses temas.

Ainda estou esperando a produção tupiniquim pós-retomada que envolva exclusivamente um drama psicológico urbano com ares universalizantes (se essa fita já existe e eu não conheço, por favor, alguém me aponte). Entretanto, um filme assim dificilmente seria considerado no estrangeiro, pois o preconceito de muitos impede que acreditem que sejamos capazes de produzir tragédias “shakespearianas”. Seria uma audácia o Brasil começar a falar como gente grande, madura e civilizada, em uma narrativa que pudesse suceder em qualquer grande metrópole do primeiro mundo.

Assim, o que as platéias e crítica do exterior exigem de nós são amostras do subdesenvolvimento, apenas isso. Um filme nacional poderia até apontar na direção que eu sugeri no parágrafo anterior, mas ele não poderia prescindir – em algum momento que seja – da cor local, isto é, de algum elemento reconhecível dos “problemas sociais” brasileiros. Isso revela o quanto domina, no estrangeiro, a mentalidade do colonizador (para a qual nós devemos nos colocar no “nosso lugar”, ou seja, falando como nação subdesenvolvida nas diversas manifestações culturais, dentre elas o cinema). Se nós obedecermos a esse imperativo, estaremos perpetuando a mentalidade do colonizado; desse modo, o ciclo se fechará.

É claro que é importante o nosso cinema tratar de questões que mais urgem à nossa atenção, reflexão e ação social; e há muitas conquistas importantes nesse terreno nos filmes pós-retomada. Por exemplo, as chocantes contradições provocadas pela profunda desigualdade social e a ditadura militar, trauma recente ainda longe de ser completamente processado e superado. Contudo, há tantos filmes assim, que a coisa acaba se naturalizando demais e virando como que um princípio temático e estético, algo que nós confundimos com a nossa própria identidade, definindo-nos como indivíduos e como nação. Esse é o perigo. Perigo que também (e principalmente) sofreu a literatura nacional do século XIX. Porém, a “cor local” que então se enxergava e exigia de nossas expressões artísticas e culturais pertencia a uma base “positiva”: o exótico e a beleza exuberante e específica de nossa natureza, de nosso índio, de nossa cultura popular. Românticos estrangeiros como Ferdinand Denis (autor de diversas pinturas paisagísticas sobre nossa terra) fizeram muito por espalhar essa noção de identidade brasileira, e românticos locais como Gonçalves Dias (poeta) e José de Alencar (romancista) assimilaram e assumiram isso como razão de alto patriotismo.

Por isso, Machado de Assis, que revolucionou a nossa literatura, pois ele não queria saber de tal “macumba para estrangeiro”, foi muito criticado à sua época, acusado de não mostrar a “cor local”. Não me surpreenderia se esse mesmo tipo de crítica fosse feita (aqui ou lá fora) a determinado filme (o qual, repito, acredito que não exista). Falta um Machado de Assis no nosso cinema, alguém que o renove tanto quanto o mulato gago e epiléptico do Cosme Velho renovou nossa arte literária; os filmes nacionais encontram-se numa situação tão sem saída quanto os romances no final do nosso Romantismo. Cadê “o bruxo”?

O filme A Oitava Cor do Arco-Íris (Brasil, 2004) não traz essa renovação, e nem devemos esperar que traga. Mas a produção tem o seu valor. Não apresenta a “cor local” moderna (a ênfase contundente na miséria e na violência), mas embeleza-se da “cor local” tradicional (paisagens do Mato Grosso, pontos turísticos de Cuiabá, um povo simples e simpático). Temos aqui o primeiro longa-metragem inteiramente produzido no Mato Grosso, dirigido pelo estreante em longas Amauri Tangará. Apesar dos seus defeitos, se cada estado produzisse um longa por ano, o cinema brasileiro atingiria outro patamar.

A intriga concentra-se no garoto Joãozinho, de 11 anos, órfão de pais e que mora com a avó. Preocupado com a saúde debilitada dela, ele toma a sua última posse que tem algum valor – uma cabrita preta magricela, chamada Mocinha – e a leva até Cuiabá, para tentar vendê-la e comprar os remédios de que a avó necessita. O filme se pauta na visão ingênua de Joãozinho (por que devemos carregar de conotação pejorativa o vocábulo “ingenuidade”? Esqueçamos um pouco Voltaire e qualifiquemos a mentalidade de Joãozinho – e a do próprio filme – como pura): ele não sabe sequer quais são os remédios que deve comprar, nem o quanto custam.

É dessa ingenui... ops! pureza que o filme retira a sua energia e valor. Dentro do quadro que pintamos anteriormente, isso é raro no cinema brasileiro contemporâneo (a não ser, é claro, que falemos daquela “ingenuidade” comum em comédias e histórias de amor urbanas que apenas mascara um discurso alienante de propósito comercial).
(continua no post abaixo)

Continuação de A Oitava Cor do Arco-Íris

(continuação do post acima)

Podemos falar de uma espécie de filmes que mostram personagens vagando meio perdidos por uma cidade, geralmente em busca de algo; uma espécie de “road movies urbanos” ou “street movies” (que horror!). Enfim, filmes como Ladrões de Bicicleta (Itália, 1948, Vittorio deSica), Irreversível (França, 2002, Gaspar Noé) e este A Oitava Cor do Arco-Íris têm, com certeza, algo em comum, no meio de todas as diferenças.

A Oitava Cor do Arco-Íris é um filme de que Cesare Zavattini talvez gostasse. Assim como no Neo-Realismo italiano, temos aqui uma visão humanista e emotiva da população carente, embora o lado ruim das coisas seja mostrado com menos gravidade e mais singeleza nesta película mato-grossense, em comparação com Ladrões de Bicicleta, por exemplo.

A singeleza do filme de Tangará é algo que salta aos olhos e aos ouvidos (na trilha sonora e diálogos). Os pobres que desfilam na tela poderiam ser de qualquer parte do mundo – inclusive nos países “desenvolvidos”. O problema da pobreza aqui é tratado de modo geral e superficial (sem que vá qualquer conotação pejorativa nesse termo). O filme não mostra como tese uma pobreza especificamente brasileira; a pobreza é universal, onde quer que haja pessoas carentes e abandonadas. A avó Vidinha, que nas suas orações lamenta não ter mais o que vender para se sustentar, e o neto Joãozinho, que tenta arduamente vender a cabrita – e até conseguiria fazê-lo sem grandes dificuldades – mas não tem sucesso porque está muito apegado a ela, à Mocinha, que é a última posse que resta, posse animal e de estimação, ainda por cima... tudo isso é profundo no sentido universal, e comovente.

Tanta emoção, é lógico, pode ser negativo. Assim como no Neo-Realismo italiano, A Oitava Cor... é melodramático em alguns momentos (como na linha musical condescendente que sempre acompanha o garoto Joãozinho – isso chega a ser cansativo). A interpretação dos atores (todos desconhecidos para nós) é meio dura, meio decorada, meio teatral (aliás, um defeito comum no cinema brasileiro), porém, simpática. De resto, o filme é bem realizado e esquemático (falo da trilha sonora “caipira” para os cenários rurais e o “rock and roll” de guitarras distorcidas para o ambiente urbano).

Mas tais defeitos não nos fazem esquecer as qualidades. Joãozinho, em suas aventuras urbanas na capital mato-grossense, lida com os mais variados tipos de situações e de pessoas: uns lhe são benevolentes, alguns o desprezam e outros (por que não?) lhe fazem crueldades. O interessante é que a realidade da vida e do mundo é representada da maneira mais abrangente – por isso, mais “realista”: inclui a bondade, a maldade e a indiferença. Amauri Tangará, que também assina o roteiro, revela-se bem maduro nessa visão. O que põe no chinelo filmes e obras literárias que defendem a visão mais pessimista da realidade, mostrando apenas os seus aspectos mais negativos, e ainda pretendem ser “realistas”. Que realismo é esse? Para mim, não passa de uma desculpa para o sadismo orgíaco de alguns artistas.

Todos nós conhecemos o Neo-Realismo (que é bem diferente do Realismo literário do século XIX de Gustave Flaubert e Honoré de Balzac). Mas acho que já é hora de falarmos de um Neo-Naturalismo (esse sim, idêntico ao literário, à lá Zola), que assola particularmente os filmes nacionais. Sob a justificativa de mostrarem a realidade nua e crua, filmes como Amarelo Manga (Brasil, 2003) não passam de um catecismo à base de Nietzsche e Sartre. Com isso, não seria surpreendente se a intelectualidade materialista / marxista / existencialista / niilista dos grandes centros urbanos desprezasse A Oitava Cor do Arco-Íris. Para tais cabeças pensantes, modernas e sofisticadas, o “naif” do filme seria algo detestável ou simplesmente desprezível, não-concorrente para que se dê valor “sério” a uma obra. Mas as inteligências desarmadas e as sensibilidades sem malícia saberão apreciar a obra de Tangará.

Uma situação que é significativa: no “Clube do Professor” do Unibanco Arteplex em São Paulo (uma sessão semanal, exclusiva e gratuita, para a classe docente), os ingressos para o filme Eu me Lembro (que também está estreando e que, a julgar pela sinopse, é bem mais “crítico” do que a obra que estamos discutindo, e ainda envolve a ditadura militar) se esgotaram muito antes de A Oitava Cor... . Seria um sinal de como as platéias urbanas intelectualizadas do Sudeste receberão o primeiro longa mato-grossense? Não me surpreenderia se fosse um fracasso total de bilheteria.

Deixo como surpresa, para quem for assistir ao filme, a explicação do título. Mas o fato é: a oitava cor do arco-íris é justamente aquela que as pessoas grandes e orgulhosas não vêem, mas os pequenos e os humildes sabem muito bem qual é.

sexta-feira, setembro 29, 2006

O Maior Amor do Mundo


Por Cris

Sem dúvida alguma, O Maior Amor do Mundo (Brasil, 2006) pode ser considerado um filme direcionado para o grande público. E isso está longe de ser um defeito, muito pelo contrário. Essa obra de Cacá Diegues é capaz de emocionar a massa. Muitos certamente considerarão o filme piegas, mas por que o clichê deve ser sempre visto como algo execrável?

Quando Mãe Santinha (anteriormente conhecida por Zezé, personagem de Léa Garcia) tira a sorte de Antônio (José Wilker) e diz que ele sofre de amor, “do maior amor do mundo”, e que pode trazê-la (?) de volta, tanto o personagem quanto o espectador riem-se do ato exploratório da negra – afinal, Antônio nunca havia tido mulher alguma e morreria dali a uma semana. Porém, aquele que ainda não havia sofrido por amor ou por outro sentimento qualquer, aquele que passara pela vida como que culpado pela mesma simplesmente por ter nascido, aquele que vivera até então de forma desapercebida e não se envolvera com mulheres, tampouco com política ou mesmo com os próprios pais – nem mesmo no enterro da mãe adotiva ele compareceu – passa a sofrer no momento em que se descobre moribundo e, conseqüentemente, começa aí a viver. Nesse sentido, Mãe Santinha, como a prenunciadora da verdade, tinha razão. Antônio passa a sofrer, realmente, do maior amor do mundo, o qual acaba por se desdobrar em dois: o amor por sua mãe biológica, a qual será revelada ao longo da narrativa, e por sua única mulher, Luciana (Taís Araújo). Em ambos os casos, o dois - a união - gera um terceiro. É bem verdade que esse tema não é nada original, mas... e daí? Hoje em dia existe uma pressão exagerada pela originalidade... O filme consegue ser simples e bonito, isso é o que importa. Apesar da simbologia despretensiosa e da atuação nada brilhante – porém satisfatória – de Wilker, Cacá Diegues foi extremamente feliz em especificamente um aspecto, uma das maiores carências do cinema brasileiro: o roteiro, o qual, devemos concordar, é no mínimo competente.

O Maior Amor do Mundo possui cenas bastante comoventes (como a da morte do simpático Mosca e a do nascimento da personagem principal) e divertidas (a transa de Luciana e Antônio, por exemplo). É catártico e, portanto, não pode ser considerado ruim. É bem verdade que o filme está longe de ser uma obra-prima do cinema brasileiro, mas essa, sem dúvida nem, é a intenção: ele cumpre com muita eficiência o quesito bom entretenimento. Por isso, uma dica para quem deseja assistir ao filme: vá ao cinema sem grandes expectativas e deixe-se comover. Assim, você sairá de lá com a sensação de que também pode encontrar (se é que já não encontrou...) o maior amor do seu mundo. Excelente para assistir ao lado da pessoa amada comendo pipoca!

Novo Membro-Colaborador do Sombras Elétricas


Estréia agora no Sombras Elétricas a Cris, grande parceira e apaixonada pelo Cinema - especialmente o brasileiro. Por enquanto, eu estarei fazendo as postagens dos textos dela. O seu e-mail é crisbastosf@yahoo.com.br. A foto acima somos eu e ela no Noitão do cine Belas Artes, em São Paulo. Viva a "música da luz"!

sexta-feira, setembro 22, 2006

Abismo do Medo


Nada pode segurar o espírito desbravador do homem, ou melhor, da mulher. Abismo do Medo (“The Descent”, Ingl., 2005) aparece como mais novo candidato a filme “cult”; é uma fita de aventura e terror com algo a mais. As melhores narrativas macabras, na literatura e no cinema, mexem fundo com a sensação mais primitiva de medo e ainda promovem, direta ou indiretamente, discussões mais altas, de ordem psicológica, social ou filosófica. O filme de Neil Marshall faz tudo isso e, o que é melhor, sem dar ares de ambicioso. A densidade – paradoxalmente – aliada à simplicidade é algo difícil de ser alcançado. Ficamos com vontade de conhecer a produção anterior do diretor britânico, Dog Soldiers - Cães de Caça (envolvendo militares e lobisomens), lançada no Brasil somente em DVD.

Filmes como esses, e ainda Eclipse Mortal (“Pitch Black”, EUA, 2000, dir.: David Twohy), espécie de “Alien, o Oitavo Passageiro” com Vin Diesel, ou Hell (EUA, 2003, dir.: Ringo Lam), espécie de “Expresso da Meia-Noite” com Jean-Claude Van Damme, não podem ser reunidos em um gênero (embora a maioria seja de ação ou terror); são antes uma natureza de produções com temas típicos daquelas mais comerciais – muitas vezes com as mesmas pretensões –, porém, são de baixo ou baixíssimo orçamento (em relação, é lógico, aos blockbusters) e dotadas de um “conteúdo” que rasteja sorrateiramente por entre os perigos e os sustos vividos pelas personagens. Na impertinência de classificar esses filmes como “independentes” ou “filmes de arte”, nós os chamamos de “filmes cult”.

A tradição dos filmes cult vem desde os anos 30, graças, por exemplo, ao Frankenstein (1931) de James Whale, com o ator Boris Karloff, e ao Drácula (1931) de Tod Browning, interpretado por Bela Lugosi; são obras que deram corpo e fama ao gênero do macabro, dando um novo salto na década de 50 com os “filmes B” (que envolviam, principalmente, ameaças vindas do espaço, dando corpo e fama também ao gênero da ficção científica), tais quais Plan 9 from Outer Space (1959) de Ed Wood, e The Blob (1958) de Irvin S. Yeaworth Jr.; nos revolucionários anos 60 temos a obra-prima dessa “natureza” de filmes: A Noite dos Mortos Vivos (“Night of the Living Dead, EUA, 1968), do mestre George Romero. Hoje, o “submundo” do cinema nos presenteia esparsamente com obras assim; temos que garimpá-las nas salas de exibição – caso do recente Silent Hill, que não foi sequer dignado com uma resenha mínima pelo grande jornal Folha de S. Paulo – ou, já que muitos desses filmes não são nem lançados nos cinemas, temos que buscá-los no fundo das locadoras de DVD (caso do já citado Dog Soldiers).

Abismo do Medo se encaixa bem na tradição acima, melhor do que alguns, mas ainda longe da genialidade de um George Romero. Como filme de terror, faz parte da melhor sub-divisão do gênero (dentre as muitas que podem se fazer, de várias maneiras e critérios diferentes).

Podemos reconhecer (sob certos critérios) três sub-gêneros no cinema do medo:
1. O terror sobrenatural: fantasmas e elementos além-mundo que interferem e aterrorizam os pobres mortais, caso de Evil Dead – A Morte do Demônio (1981), de Sam Raimi, e de todo o terror japonês. Esses filmes podem envolver, em termos religiosos, um sobrenatural mais “genérico” (caso de Poltergeist e da série Premonição) ou mais específico, especialmente o católico-cristão, caso do clássico O Bebê de Rosemary, de Roman Polanski.
2. O terror humano: assassinos e sádicos psicopatas bem reais que torturam das piores maneiras suas vítimas inocentes (ou não), caso de Seven – Os Sete Crimes Capitais (1994), de David Fincher, e da famosa e recente série Jogos Mortais. Temos aqui um sub-gênero particularmente “na moda”, onde ainda se enquadra O Albergue. Idéias religiosas ou interferências diretas do sobrenatural podem servir de motivação a esses “monstros” humanos, como no pra lá de clássico O Iluminado, de Stanley Kubrick.
3. O terror natural: animais reais ou imaginários, terrestres ou alienígenas, todos absolutamente selvagens e ferozes. Aqui o homem (ou mulher) de predador passa a presa, volta-se ao estado mais primitivo da vivência: não há civilização “evoluída” ou valores “humanos” que resistam ao chamado arcaico dos instintos. O terror humano também pode se fazer aqui presente, uma vez que, colocadas em uma situação-limite, as pessoas acabam sendo um perigo tão grande (ou maior) umas às outras do que a fera que as cerca e ameaça: temos isso em O Abismo do Medo, onde a situação na qual a natureza se impõe com mais força e verdade mostra quem as personagens são realmente; todas as máscaras psíquicas e sociais caem por terra. A obra-prima aqui, no entanto, é Alien, o Oitavo Passageiro, de Ridley Scott.

Dessas três formas, a última é onde mais facilmente se fazem bons filmes, pois a experiência que ela nos oferece é mais real (ao contrário do terror sobrenatural) e profunda, visto que o medo da natureza selvagem e (ou) desconhecida é o que está mais enraizado em nosso íntimo. No terror humano, é o assassino que muitas vezes assume a função do predador incontrolável, mas corre-se aí o risco de aceitar como natural um (desvio de) comportamento com bases de ordem social ainda a serem esclarecidas adequadamente; além disso, muitos filmes de “psicopatas” são carregados – para mero entretenimento – de um sadismo pouco saudável.
(continua no post abaixo)

continuação de O Abismo do Medo

(continuação do post acima)

The Descent (o título original é o mais adequado) é uma verdadeira “descida” às regiões mais profundas da natureza exterior e – ao mesmo tempo – interior, sem que isso constitua um paradoxo. Já foi assinalada por diversas mitologias, especialmente as mais primitivas, a analogia entre a Natureza e o corpo humano, particularmente o feminino. É a “mãe-terra” que nos dá vida e sustento. O filme apresenta essas analogias, de modo visual e evidente. O mergulho que as personagens mulheres fazem na terra é um mergulho que fazem em si mesmas – como bem diz uma delas, a propósito da personalidade da líder do grupo, que aquela era uma “ego trip”. A idéia é que, quanto mais o homem (ou mulher) explora audaciosamente o desconhecido, mais ele (ou ela) encontra um “espelho”; o espaço exterior e o interior organizam-se e se relacionam de maneira dialética. Tal idéia está presente em várias culturas, mitologias, filosofias, ciências (psicanálise jungiana) e artes. Essa é a “odisséia” de 2001, um Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick.

Tanto o corpo físico quanto o psíquico estão presentes nessas analogias. O mergulho em cavernas misteriosas e de múltiplos compartimentos como símbolo do mergulho no inconsciente – especialmente em suas zonas mais misteriosas e escondidas – já foi assinalado por Jung (psicanálise) e Campbell (mitologia). Aparece em várias narrativas, desde as folclóricas mais primitivas, até a literatura e o cinema recentes, seja em obras mais ambiciosas, seja no entretenimento muitas vezes infanto-juvenil. Os personagens de O Senhor dos Anéis vivem entrando em cavernas, assim como Luke Skywalker em Star Wars: O Império Contra-Ataca (dentro da qual ele enfrenta a figura de Darth Vader, seu pai, que revela por trás da máscara o próprio rosto do filho). Tais simbologias podem ser por demais evidentes ou didáticas, mas, mesmo assim, mantêm seu alto significado.

O Abismo do Medo não é uma fábula infanto-juvenil. Na forma, podemos dizer que é adolescente: ele apresenta todos os elementos típicos da “gramática cinematográfica” dos filmes de terror, para fazer o público pular da cadeira a cada cinco minutos: pseudo-sustos antes que venha a ameaça principal, elementos colocados sutilmente nas cenas iniciais que já anunciam o que as personagens vão enfrentar, preparando o programa da narrativa (o perigoso “rafting” como um dos esportes radicais, uma pá com “cara” monstruosa e a caveira de um boi penduradas do lado de fora da cabana, já anunciando o que elas vão ver dentro da caverna). Todavia, no conteúdo, é uma obra adulta, ou dirigida a adolescentes que querem se preparar para a fase adulta.

Se podemos reconhecer sinais nas coisas, então temos que afirmar com convicção que tudo, absolutamente tudo que elas encontram pela frente, antes e no início do mergulho subterrâneo, indica que, em favor da prudência, não devem fazer aquela exploração: o alce morto por alguma criatura selvagem; a caverna como simplesmente um buraco no chão, de entrada totalmente vertical; as marcas de garras na parede da gruta; e, por fim, a passagem extremamente estreita que desaba após a travessia das personagens. Esses fatos são colocados em favor do suspense, mas mostram que nada pode deter de antemão o espírito do homem (ou da mulher) – enfim, o espírito humano. É quase como se a natureza dissesse que não quer ser invadida e explorada temerariamente – em função apenas da ambição exagerada da ocupação e dominação e do egocentrismo da auto-superação – desejo que também pode ser aplicado ao corpo da mulher e ao nosso inconsciente.

Nessa caverna-inconsciente, pode ser significativo o fato de as exploradoras encontrarem e enfrentarem monstros de figura masculina (exceto por um, que pareceu ser fêmea). Isso lembra as análises psicanalíticas que se fazem a respeito de A Bela e a Fera. Um outro aspecto da leitura feminina que se pode fazer do filme é o fato de a líder do grupo se chamar Juno. A deusa romana Juno, que na mitologia grega se chama Hera e é esposa de Júpiter (Zeus para os gregos), é a protetora do casamento, do parto, enfim, da mulher em todos os aspectos do seu ser e da sua vida. Para os romanos, cada homem tinha um “gênio” e cada mulher uma “juno”. Juno é, então, a figura máxima da mulher, que no filme comanda as outras. Entretanto, a deusa Juno tem personalidade e vontade por demais fortes, promovendo intrigas e vinganças; tal é o caso de sua correspondente no filme. Mas o que mais chama a atenção é o fato de que Juno, no filme, tem um caráter notadamente negativo e traidor (ela é mais “vilã” do que os monstros, que agem apenas por instinto). Em Batman Forever, Hera é o nome da vilã. Seria isso anti-feminismo?

As relações que se desenvolvem entre as personagens, nesse tipo específico de contexto, lembram O Enigma de Outro Mundo (“The Thing”, EUA, 1982), de John Carpenter. Em certo momento, até a trilha sonora (marcação contínua do baixo) lembra a dos filmes de Carpenter. Quanto a outras comparações, podemos dizer que Abismo do Medo é a perfeita mistura entre duas obras capitais da ficção científica literária: Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Verne, e A Máquina do Tempo, de H. G. Wells. Na verdade, o filme é o que teria sido a primeira, caso fosse escrita pelo autor da segunda; pois H. G. Wells é um escritor mais adulto, crítico e tenebroso do que Júlio Verne. As criaturas humanóides ferozes, adaptadas à vida escura no subterrâneo, em Abismo do Medo, lembram demais os morlocks do futuro mostrado por Wells, quando a espécie humana se dividiu em duas, sendo uma os “morlocks” do subsolo e a outra os “eloys”, criaturas infantilizadas que habitam a superfície (e servem de comida para as primeiras).

“The Descent” não acrescenta muito de original à linha da qual faz parte, na qual se destacam Alien, o Oitavo Passageiro (EUA, 1979), de Ridley Scott, e o já citado Enigma de Outro Mundo; talvez o grande mérito seja dar figura antropomórfica à ameaça da natureza desconhecida. De resto, assim como Eclipse Mortal, segue bem a cartilha do (sub) gênero.

terça-feira, setembro 19, 2006

Farenheit 451

Um daqueles fatos tristes que mostram o quanto o Brasil é subdesenvolvido e o quanto nós estamos longe dos grandes centros de cultura é não chegar até as terras tupiniquins certas produções essenciais do estrangeiro. Concentro-me aqui apenas no mercado de DVD’s: ainda existe muita coisa importante que não foi lançada aqui. Até mesmo (talvez principalmente) os filmes nacionais são programaticamente negligenciados pelos selos de “home vídeo”. Mas a análise desse problema fica para outro dia.

Um dos exemplos clássicos desse estado de coisas era o “não-lançamento oficial” de Farenheit 451 (Ingl., 1966, dir.: François Truffaut). Esse filme nunca havia sido lançado no Brasil nem em VHS. Apenas circulava entre os cinéfilos uma cópia (primeiro em VHS, depois em DVD) gravada do “Telecine” (canal de filmes da TV por assinatura), que de vez em quando exibia a obra – uma vez cheguei a assisti-la na Rede Globo (o “Telecine” é da rede “Globosat”, hoje “Net”), de madrugada.

Mas finalmente, em agosto último, a Universal lançou o filme em DVD, para alívio dos fãs e para o bem das pessoas que estão agora para conhecer essa interessantíssima produção.

Fahrenheit 451 é o único filme em Inglês dirigido por François Truffaut, grande nome da Nouvelle Vague francesa, realizador também, dentre vários, de Os Incompreendidos (“Les Quatre Cents Coups”, França, 1959) e Jules et Jim (França, 1962). O diretor teria ficado decepcionado com o resultado final do filme, por não ter gostado de certos diálogos em Inglês, preferindo a versão dublada em Francês. A trilha sonora é (inconfundivelmente) assinada por Bernard Herrmann, compositor favorito de Alfred Hitchcock.

O enredo, baseado no romance sci-fi homônimo de Ray Bradbury – autor clássico do gênero – mostra um futuro distópico não tão distante (o filme não se preocupa em revelar inovações científicas e tecnológicas, ou seja, não há efeitos especiais), dominado por um regime totalitário (embora não se façam quaisquer referências a um governo) cuja maior e principal lei é a proibição de qualquer forma de escrita e de leitura. O controle ideológico-social é exercido pela TV: todas as casas têm um aparelho de televisão central ao redor do qual “vivem” as pessoas, a ver e ouvir as “mensagens” transmitidas pelos programas.

Nesse universo, a principal força física de controle e repressão é o corpo de bombeiros (“firemen”), cuja tarefa é unicamente buscar, encontrar e queimar os livros que ainda circulam de maneira subversiva. Um diálogo muito interessante do filme envolve o sentido literal de firemen (“os homens-fogo”): uma personagem diz, em tom de surpresa e curiosidade, que, antigamente, os “firemen” serviam para apagar o fogo, e não para provocá-lo. Isso mostra o esvaziamento semântico e a deturpação do sentido de palavras e conceitos historicamente operados por regimes autoritários.

O protagonista é o jovem bombeiro Montag (Oskar Werner), muito fiel ao seu trabalho mas sem uma personalidade muito desenvolvida (ele parece um “songo-mongo”). Ele começa a questionar as coisas quando conhece (e talvez se apaixone um pouco, apesar de já ser casado) uma jovem “subversiva” amante de livros e, principalmente, uma senhora que prefere morrer queimada junto com seus livros a vê-los destruídos – em uma das cenas mais belas do filme. Montag começa, ele mesmo, a ler algumas obras. Naturalmente, ele se desentende com sua esposa, totalmente “cegada” pelo “sistema”. Linda Montag é tão dependente dos programas vespertinos de TV para donas-de-casa, quanto Emma Bovary é dependente dos folhetins românticos (no romance seminal Madame Bovary, de Gustave Flaubert). Ela o denuncia e ele tem que fugir. Encontra refúgio, junto com a jovem Clarisse (Julie Christie, que também interpreta a esposa de Montag, Linda), no país dos homens-livro: um bosque distante habitado por pessoas que decoram por inteiro um livro de sua preferência e queimam, elas mesmas, esse livro, pois apenas o que se imprime na alma não pode ser destruído. O livro escolhido por Montag é Histórias Extraordinárias, de Edgar Allan Poe.

Essa história se insere dentro da ficção científica com ares de fábula sócio-política, tal como o filme Alphaville (França, 1965), de Jean-Luc Godard e as narrativas literárias de H. G. Wells, particularmente A Máquina do Tempo. Nos diálogos de Farenheit 451, são veiculadas algumas idéias centrais e frases-feitas comuns a todos os regimes repressores, e também idéias e frases típicas de quem se opõe a eles; por isso, a obra de Truffaut tem grande valor didático, poderia ser exibida em escolas como parte da e estímulo para a formação histórico-político-ideológica dos estudantes.
(continua no post abaixo)

(Continuação de Farenheit 451)

(continuação do post anterior)

O filme Farenheit 451 (que é a temperatura em que o papel dos livros entra em combustão, equivalente a 233º Celsius) revela a paixão de François Truffaut pelas obras impressas, que também é mostrada em uma cena tocante de A Noite Americana (França, 1973). Uma das edições queimadas é a revista Cahiers du Cinéma, a bíblia francesa do cinema, na qual o cineasta trabalhou como crítico. Os close-ups com que Truffaut filma os livros sendo incendiados são altamente expressivos, procuram fazer o espectador prestar uma atenção tão próxima que é como se ele encarnasse nos livros e sentisse o seu sofrimento, sentisse o calor daquele fogo impiedoso.

O sofrimento dos livros sendo destruídos. Truffaut mostra essas cenas de barbárie como se fossem homicídios, ou melhor, genocídios – o próprio Montag diz, para explicar sua paixão recém-descoberta pelos livros, que “por trás de cada livro há um homem”. A cena mais bela é a da senhora que se imola em um auto-sacrifício junto com a sua biblioteca. Truffaut vai alternando closes do rosto dela e dos “rostos” dos livros na pira incendiária.

O mundo representado em Farenheit 451 promove aquilo que o Professor Arlindo Machado (do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP e do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da USP) explica como, em princípio, um retorno à oralidade: sabemos que a cultura humana originou-se sob formas de expressão orais; com o nascimento e o progressivo aperfeiçoamento da escrita e da leitura – especialmente em alguns momentos-chave, como na invenção da imprensa por Gutenberg no século XV e o salto cultural do Século das Luzes (XVIII) –, a natureza e a manifestação da cultura foram se tornando cada vez mais escritas, letradas.

Podemos afirmar que o auge dessa cultura livresca encontra-se em meados do século XIX, com o imenso sucesso dos folhetins: narrativas romanescas de entretenimento cujos capítulos eram publicados diariamente nos jornais. Já no princípio do século XX, com o uso do cinema sob forma de narrativas de ficção para entretenimento, e posteriormente com a grande Era do Rádio, a cultura letrada foi perdendo as entradas que tinha na sociedade geral. O gigantesco sucesso do cinema, do rádio, e ainda mais da televisão – que mais contribuiu para esse quadro de mudanças, mais até do que o cinema –, tomou de assalto e ocupou os amplos terrenos antes dominados pelos livros e outras “mídias impressas”, agora enterradas e de certa maneira restritas a grupos sociais mais específicos.

Ainda de acordo com o Prof. Arlindo Machado, melhor do que entender esse movimento como um retorno à cultura falada (em oposição à escrita), é enxergá-lo como uma segunda oralidade: pois, embora a comunicação promovida pelo cinema, rádio e TV seja oral, não ocorre nesses veículos a mesma interação próxima e dinâmica entre o emissor (os próprios veículos) e o receptor (espectador e ouvintes) tal qual vemos em uma conversa banal. O engraçado é que os recentes desenvolvimentos da Internet permitem-nos vislumbrar uma segunda escrita, também diferente da primeira e que teria vindo para suplantá-la, assim como o rádio e a TV suplantaram a conversa em família e as noites passadas na varanda com os vizinhos.

É claro que nem tudo são cactos: Jean-Luc Godard, por exemplo, ciente da “segunda oralidade” da TV, decide tirar o melhor proveito dela, levando o modelo socrático de diálogo para as suas minisséries televisivas de entrevistas 6 x 2; e France / Tour / Detour / Deux / Enfants (1978).

Contudo, nos anos 50 e 60, a visão que se tinha do futuro era naturalmente condicionada pelo poder crescente e assustador da TV. Assim, Ray Bradbury imaginou a TV como peça central de manutenção e propagação de um novo totalitarismo, fabulando em seu romance toda uma distopia muito bem traduzida em imagens audiovisuais por François Truffaut.

Como filme de cinema, Farenheit 451 funciona de uma maneira mais especial do que o livro, causando um efeito a mais que só vem a engrandecer a imaginação da obra literária original. Isso acontece porque o filme aparece numa época em que o cinema tinha acabado de perder parte considerável de seu público e poder para a televisão (anos 50 e 60). Farenheit 451 de Truffaut não se mostra ressentido, mas tem alto significado o fato de o filme começar focalizando antenas de TV em tons monocromáticos bem fortes, com os créditos iniciais sendo falados pela voz em off de um locutor tal como em um programa televisivo.

Temos aqui a perfeita correspondência poética entre o universo diegético (a história do filme) e a instância da narração (a feitura do filme) que caracteriza a estética da grande literatura e do melhor cinema: a escrita foi de tal forma abolida daquele mundo representado que até mesmo o filme que o representa abstém-se de utilizá-la inclusive nos créditos, ou seja, na parte do filme que não corresponde necessariamente à representação “mimética” da realidade narrada, parte essa em que o filme se revela como construção de um universo fictício. Tudo para fazer o espectador entrar “no clima” dos acontecimentos.

Nesse grande filme, François Truffaut denuncia o mal da TV tanto quanto lamenta o mal feito aos livros.

segunda-feira, setembro 18, 2006

A Fortaleza Escondida


Assisti ontem, mais uma vez, à Fortaleza Escondida, filme japonês dirigido em 1958 pelo grande Akira Kurosawa.

Não cansa de me fascinar e de me encher os olhos o rigor da fotografia de Kurosawa. Cada plano de seus filmes é como uma pintura. Dá vontade de montar um álbum de fotos a partir dos filmes. Parece que cada enquadramento procura criar um grande efeito, lírico, épico e dramático ao mesmo tempo.

Essa riqueza de gêneros é outra coisa fantástica: filmes como o acima citado e também Os Sete Samurais (“Shicinin No Samurai”, 1954) e Trono Manchado de Sangue (“Kumonosu Jô”, 1957) são plenos de momentos líricos: muitas vezes na sutileza de um plano, como o do rosto da princesa chorando sobreposto à meia-lua da bandeira do seu clã recém-destruído, em A Fortaleza Escondida; momentos épicos: as grandes batalhas, como a da chuva em Os Sete Samurais; e momentos fortemente dramáticos: basta citar Trono Manchado de Sangue, adaptação de Macbeth de Shakespeare.

Que digam que os “westerns orientais” de Kurosawa não são o cinema japonês autêntico e que seu virtuosismo é muitas vezes vazio; não me importa. O fato é que o cinema do mestre japonês é dotado daquele nível alto de fabulação que alça o espectador às esferas do mito, tal como as melhores narrativas, desde os tempos mais primitivos. Ver filmes como Rashomon (“Rashômon”, 1950) ou Ran (“Ran”, 1985) faz-me pensar em Apocalipse Now (EUA, 1979, dir.: Francis Ford Coppola), em Excalibur (EUA/Ingl., 1981, dir.: John Boorman), em Rastros de Ódio (“The Searchers”, EUA, 1956, John Ford) e na literatura de João Guimarães Rosa, particularmente o magnífico romance Grande Sertão Veredas.

Todas essas obras, apesar de pertencerem a linguagens diferentes, apresentam aquele tom especial, a atmosfera das narrativas folclórico / mitológicas que estão na origem de todas as culturas humanas. O Japão feudal de Kurosawa é um ambiente tão universal quanto o Vietnã de Coppola, a Europa medieval de Boorman, o far-west de Ford e o sertão mineiro de Guimarães Rosa. Como este bem disse: “o sertão é do tamanho do mundo” e também “o sertão está em toda parte”. Assim, não é à toa que os samurais são tão personagens de tragédias shakespearianas quanto os jagunços.

Isso sem falar das fitas urbanas do cineasta japonês, como Viver (“Ikiru”, 1952), de uma poesia comovente, e O Idiota (“Hakuchi”, 1951), baseado em Dostoiévski e que ainda não tive oportunidade de ver. Isso tudo me leva a crer que Akira Kurosawa não é fascinado pelo “mundo ocidental”, como querem os seus críticos; ele é fascinado por histórias que se aprofundem em questões universalmente humanas, transcendentes, atingindo assim o âmbito do mito, que também dá o tom para os seus filmes.

Assim como muitos grandes filmes e toda grande literatura, a obra de Kurosawa não se prende a questões históricas ou sociais. Ela parte dessas para alçar vôos mais altos, no sentido psicológico / filosófico. Esse trabalho nas duas frentes: o particular e o universal é justamente o que faz João Guimarães Rosa, com os seus “faroestes caboclos”.

(Continua no próximo post)

(Continuação de A Fortaleza Escondida)

(Continuação do post anterior)



Enfim, quero dizer algumas coisas sobre A Fortaleza Escondida, filme não tão conhecido e razoavelmente difícil de se encontrar. A intriga envolve a fuga da princesa Yuki, protegida pelo forte general-samurai Rokurota Makabe (vivido pelo grande Toshiro Mifune) e acompanhada por dois ladrõezinhos-bufões (Matakishi e Tahei). O feudo dela (Akizuki) foi atacado e ocupado pelo clã vizinho (Yamada). Os Akizuki são amigos dos Hayakawa, vizinho deles e também dos Yamada; porém, a fronteira com o reino amigo está fechada e fortemente vigiada (justamente para impedir as fugas). Então, o plano acaba sendo atravessar o território inimigo dos Yamada só para chegar até Hayakawa.

A travessia por terreno inimigo de uma princesa guerreira disfarçada, um lendário guerreiro e dois bobocas covardes que “caem de pára-quedas” na história já é um tema muito estimulante, no sentido narrativo e mítico. É fácil imaginar várias versões dessa intriga em ambientes e épocas diferentes (até mesmo como ficção científica, sobre o que vamos falar daqui a pouco), dado seu caráter genérico. Na verdade, histórias assim, envolvendo princesas disfarçadas, porém, guerreiras e corajosas, são comuns e muito valorizadas no folclore tradicional japonês. Bem diferente da tradição ocidental dos contos de fada, onde a princesa é sempre a figura feminina, frágil e passiva, esperando para ser salva.

A Fortaleza Escondida se destaca dentre os outros “filmes de samurais” de Kurosawa pelo seu humor. Os dois pequenos ladrões covardes são como bufões, suas figuras trazem uma ruptura cômica no meio da epopéia.

E aí, já deu pra lembrar de algum outro filme a partir desses elementos? Se não, aqui vai: Star Wars (EUA, 1977). George Lucas é fã dos filmes épicos de Kurosawa. Os seis episódios da série que antigamente chamávamos Guerra nas Estrelas (“Star Wars”) apresentam vários elementos da obra do mestre nipônico, como, por exemplo, o corte na montagem em “cortina horizontal”. Contudo, de todos eles, o filme em que Lucas se inspirou mais diretamente é, com certeza, A Fortaleza Escondida. A princesa Leia corresponde perfeitamente à princesa Yuki; o personagem de Toshiro Mifune poderia ser Han Solo (aqui não há muita semelhança); e a principal referência é o elemento cômico-bufão, que no épico espacial é caracterizado pelos robôs C-3PO e R2-D2, e no nipônico por Matakishi e Tahei (embora haja diferenças de caráter: os dois últimos são ambos covardes, enquanto R2-D2 tem personalidade forte e coragem irrepreensível e C-3PO, apesar de medroso e nervoso, não é interesseiro nem trai os seus companheiros).

Não é a primeira vez que obras de Kurosawa, influenciadas pelas ocidentais, acaba inspirando-as. Os Sete Samurais deu em Sete Homens e um Destino (“The Magnificent Seven”, 1960, dir.: John Sturges) e Yojimbo (1961) inspirou Por um Punhado de Dólares (“Per um pugno di dollari”, Ita/Esp/Ale, 1964, dir.: Sérgio Leone).


quinta-feira, setembro 14, 2006

O Karma de Tarantino

Pulp Fiction - EUA, 1994, dir.: Quentin Tarantino
Quentin Tarantino é um daqueles cineastas queridinhos da crítica e do público cinéfilo, tais como Pedro Almodóvar ou David Lynch. Cria-se um hype imenso em torno de cada novo filme seu, especialmente nos dois Kill Bill (2003). O hype é, hoje, algo comum nas produções mais “eruditas” da indústria do entretenimento de massas, por isso mesmo consideradas “cults”. Por isso, vamos ver o que Tarantino tem de “cult”; o que é que nele é considerado interessante e o que é que é realmente interessante em seus filmes. Isso, não pode ser o fato de um cinéfilo, ex-atendente de locadora de vídeo, atingir o sucesso fazendo fitas que emulam as suas prediletas. Isso funciona muito bem para a nossa catarse, mas é um fato extra-cinematográfico.

O que interessa realmente é perguntar onde está, dentro do texto cinematográfico do diretor, o nosso foco de interesse. Esse interesse não pode ser o fato de Quentin Tarantino criar uma bem trançada colcha de retalhos de referências e intertextualidades fílmicas e culturais (tudo dentro da cultura pop). Isso funciona apenas como purpurina jogada nos olhos de espectadores mais inexperientes, visto que temos aqui uma “colcha”, mas uma colcha, lembremos, de “retalhos”. Por maior que seja o seu talento “emulador”, Tarantino não atinge, no que podemos considerar a parte “original” de seus filmes (salvo a idéia-tema que consideraremos a seguir), a profundidade e densidade de um Kurosawa, de um Coppola ou de um Ford. Além do mais, já existem outros “emuladores” de filmes e gêneros mais clássicos e densos, como Sérgio Leone em Era Uma Vez no Oeste.

Kill Bill é um caso emblemático: as múltiplas e variadas referências e citações a filmes específicos, gêneros de filmes e outras coisas do gosto do cineasta (como o seu fetiche por pés femininos, confirmado recentemente por Uma Thurman e que também aparece em outros filmes do diretor) se trombam umas contra as outras e se esfacelam, perdem-se no ritmo ágil de uma narrativa que coloca o espectador como que em uma montanha-russa. Isso poderia ser interessante como releitura satírica dessas fontes, como acontece – na nossa Literatura – com o Macunaíma, de Mário de Andrade.

Mas não acho que seja esse o caso de Quentin Tarantino. Kill Bill pretende ser sério. O fato é que o gênero principal no qual se inspira (artes marciais) não é sério. Por isso, a evidente falta de seriedade (e até mesmo o humor) em cenas como a luta solitária da “Noiva” contra um verdadeiro exército de capangas no bar japonês (Volume 1) não deve ser vista como uma revisão irônica dos filmes de luta, mas sim como uma tentativa de homenagem e de mímese exata e pormenorizada do espetáculo pictórico de violência abundante e gratuita (e irreal) comum nos filmes B dos quais Tarantino é fã.

Essa “seriedade” de Kill Bill só fica atrás daquela que vemos na série The Matrix (1999 e 2003, Irmãos Wachowski), outra “colcha de retalhos”; mas é da mesma natureza. Em ambos os casos, as narrativas perdem muito em densidade. São tantas citações e idéias que esses filmes querem trazer, que acaba sendo deixado de lado o conteúdo humano: o aprofundamento de questões psicológicas e das relações de causa e conseqüência nas ações. Isso, é claro, pode ser um problema na fonte (os filmes de luta); nesse caso, o emulador Kill Bill estaria apenas se reportando fielmente a um gênero historicamente ingênuo. Mesmo assim, em termos de “densidade” e de oferecer interesse a espectadores que não são fãs iniciados nos mesmos gêneros específicos e que, por isso, buscam outras coisas, Kill Bill não chega aos pés de Era Uma Vez no Oeste (1968), de Sérgio Leone, essa sim uma “colcha de retalhos” bem mais interessante.

Por tudo isso, o aspecto da citação não é o melhor em Tarantino. Devemos procurar um “outro” Tarantino, para além da erudição pop e do virtuosismo pueril. Lá sim descobriremos algo profundamente interessante. O realizador de Pulp Fiction não deve ser engrandecido pelos aspectos que explicamos nos parágrafos anteriores, mas creditado e valorizado por uma idéia-tema que se faz presente em (quase) todos os seus filmes. É isso que faria dele um autor de fato.

Essa idéia é, sucintamente, a da redenção do bandido, que pode ser estendida a todo indivíduo comprometido com um passado do qual quer se libertar. É um grande tema, de fundo mítico-filosófico, já trabalhado por obras-primas da Literatura universal e que diz respeito a todos nós. Em todas as narrativas tarantinescas temos um (ex) criminoso que busca uma evolução e uma redenção pessoal, uma mudança-de-vida, mas tem que lidar com o seu “karma”, ou seja, com as conseqüências de seus atos anteriores.

Essa mudança de vida envolve (dentre várias atitudes e escolhas difíceis a serem tomadas) a traição necessária de antigos amigos e parceiros (e aqui a coisa se complica); contudo, após terríveis mas firmes peripécias, o indivíduo que busca consegue a redenção almejada. Quem busca a ética e a justiça, e se esforça suficientemente para tanto, não ficará de mãos abanando. Temos isso em Pulp Fiction (com os personagens de Bruce Willis e de Samuel L. Jackson), em Jackie Brown e, de maneira particular, em Kill Bill (no Volume 2, quando há o diálogo onde Bill e “a Noiva” explicam suas motivações). Não acontece em Cães de Aluguel (o filme de estréia), mas, mesmo ali, temos a comoção provocada pela traição (a última cena, muito bela e forte, entre o fora-da-lei Harvey Keitel e o policial disfarçado Tim Roth).

A cena acima referida de Kill Bill, Volume 2 é de uma força dramática realmente comovente, mas, no conjunto, o melhor e mais maduro filme de Tarantino – no qual mais e melhor aparece a idéia-tema aqui tratada – continua sendo Pulp Fiction.

Apesar de tudo, essa idéia-tema, se for tratada sem maiores variações, acredito que dará só para mais um filme ou dois. Vamos esperar e ver.

terça-feira, setembro 12, 2006

"Ramboville"


Reproduzo um texto que me fez dar muitas risadas, da autoria de Ivan Finotti, editor do Folhateen – caderno da Folha de S. Paulo dirigido a adolescentes – e publicado ontem no mesmo jornal. O artigo se refere ao lançamento em DVD da série de filmes Rambo.

“As três missões de Rambo

1. Uma pessoa chega a uma cidadezinha de caipiras americanos. A pessoa só quer paz, mas os pacatos cidadãos insistem em maltratá-la. No final, de saco cheio, a pessoa destrói a cidade. Esse é o argumento do ultracabeça “Dogville” (2003), primeiro filme da sofisticada trilogia americana do dinamarquês Lars Von Trier.
Mas é também a sinopse do sensacional “Rambo: Programado para Matar” (1982). Trata-se de um filmaço: Rambo usa táticas selvagens contra os policiais nas sinistras e gélidas florestas americanas. Tem política: ele é rechaçado pela sociedade porque perdeu a guerra do Vietnã. Tem crítica social: ele não arruma emprego, apesar de ser herói de guerra. Tem ecologia: ele mata um porco do mato, assa na fogueira e come para sobreviver. Tem ação: isso nem precisava dizer.

2. Uma pessoa chega a um local onde não deveria haver mais ninguém preso, mas há. Ora, mas que repetitivo! Grace Mulligan, em “Manderlay” (2005), segunda parte da trilogia de Trier, vai lutar contra a escravidão (que já havia sido abolida) em uma fazenda nos anos 30.
Rambo, por sua vez, vai soltar os prisioneiros de guerra (que já havia terminado) em um campo vietnamita em 1985. Esse filme não é bom como o primeiro; é muito Américo-patriótico, mas é o que colocou Rambo no alto do panteão da cultura pop. E também tem o inesquecível título em português, que virou sinônimo para qualquer coisa que se vá fazer duas vezes: “Rambo 2 – A Missão” (1985).

3. A ida do supersoldado ao Afeganistão em “Rambo 3” (1988) é chata. Mas do jeito que as coisas vão na alta cultura, Lars Von Trier vai copiar o roteiro de novo e depois revelar que sua trilogia chique foi inspirada no Rambo. Isso, sim, seria legal.”

Concordo. Isso seria genial. Lars Von Trier passaria a ser meu diretor predileto. Seria algo machadiano ele revelar que seus ambiciosos “filmes de tese”, tão adorados pela “Inteligentzia”, não são nada mais que releituras de “Rambo”.

Preciso confessar que não vi Manderlay; por isso, falo apenas de Dogville. Este último apresenta de maneira paradigmática os vícios em que se perdem alguns filmes por demais “inteligentes”. É o estado patológico de quando as idéias (ou ideologias) discursam mais alto do que a arte. Se o autor quer, única ou majoritariamente, transmitir uma “mensagem”, ele que vá discursar em outro código, que não o artístico; publique uma tese, logo.

A visão “crítica” de Lars Von Trier em Dogville me invade com tanta violência quanto as tentativas diárias de aliciamento que eu recebia na universidade por partidos de extrema esquerda. Considero isso uma ofensa à minha inteligência e à minha liberdade. Henri Agel, em um dos seus escritos, falou sobre “cineastas que apresentam apenas a visão mais abjeta das coisas com a desculpa de serem realistas”. Vou verificar exatamente a fonte e a citação, pois pretendo fazer disso assunto para um próximo post, ao qual será muito pertinente a análise de Amarelo Manga – outro filme “abjeto”.

Acredito que os mecanismos de identificação (catarse, etc) são essenciais para os efeitos da arte narrativa, por mais que possam ser chamados de mecanismos de ilusão ou manipulação. O ser humano aprende muito melhor com o exemplo concreto, com a experiência individual. Assim, um filme que quisesse persuadir a respeito de certas idéias mais abstratas deveria envolvê-las:
1. em uma representação que faça o espectador “experimentar” o melhor possível – para isso, os elementos que compõem a representação precisariam ser o mais “realistas” que puderem (os cenários, por exemplo);
2. em uma narrativa que “envolva” emocionalmente o espectador; a catarse aristotélica ainda é uma pedagogia muito eficiente.

A representação “brechtiana” em Dogville está muito longe desses parâmetros. O “distanciamento crítico” do “teatro épico” só funciona com aquele espectador tão culto e “esclarecido”, que tenha se apagado nele qualquer sinal de sensibilidade. O cérebro sobrepujou o coração. De novo, isso me lembra a “Inteligentzia” politizada que conheci na universidade.

O paradoxo irônico é que esse “distanciamento crítico” pretende ser anti-manipulatório. Todavia, Dogville – à sua própria maneira – me parece tão manipulatório quanto Pearl Harbor (EUA, 2001, dir.: Michael Bay).
Que Cecil B. de Mille me defenda de filmes “de arte” assim!

domingo, setembro 10, 2006

Metáfora: Fotografia e Montagem


Mais um post sobre metáforas. Acredito piamente, como já disse, que a conotação é o que, muitas vezes, dá o sublime para uma obra de arte.

Roma, Cidade Aberta (“Roma, Città Aperta”, Itália, 1945, dir.: Roberto Rosselini) apresenta uma bela simbologia, particularmente em uma cena. Tem-se o grupo de resistência à ocupação nazista reunido secretamente em um restaurante. É um momento de vacilo e tensão, os rebeldes não estão muito esperançosos. Então, dois soldados alemães trazem para o dono do estabelecimento dois carneiros vivos. O dono reclama, pois ali não é matadouro, e manda os militares levarem os animais para o pátio dos fundos. Voltamos às discussões dos rebeldes, quando, de repente, ouve-se um tiro de revólver, vindo do lado de fora. Os personagens se levantam, abrem a janela e testemunham os soldados eliminando os carneiros com tiros na nuca. Lamentam por eles.

Após um corte seco, é mostrado a nós o Cristo na cruz, no alto do altar de uma igreja. A câmera, então, faz um movimento para baixo e encontra o padre rezando a missa, o mesmo padre que será executado no final do filme.

Agora, vejamos o percurso retroativo das metáforas, encadeadas e evidentes, em cada plano e na junção entre eles. O padre é a vítima que se entrega num ato de sacrifício e compaixão, tal como o Cristo que o filme nos mostra na cruz; esse Cristo é o “cordeiro de Deus”, tal como os cordeiros executados pelos dois nazistas; por fim, esses cordeiros correspondem aos “heróis da resistência” ali no restaurante, que também serão imolados em favor da justiça. É um ótimo exemplo dos ideais cristãos presentes no Neo-Realismo italiano.

Pode-se criticar o excesso de clareza, a banalidade e a pieguice dessas conotações. De fato, a simbologia estética deve procurar ser mais sutil. Ainda assim, o exemplo citado tem valor por seu didatismo.

sábado, setembro 09, 2006

Discurso Indireto Livre no Cinema

Umberto D. Itália, 1952, dir.: Vittorio de Sica
O discurso indireto livre é a técnica literária na qual o discurso do pensamento da personagem se mistura e se confunde com o discurso narrativo do autor. É uma maneira especial que este tem de expressar o interior daquela. Esse amálgama entre personagem e narrador causa grande efeito estético, e ajuda melhor o leitor a compreender e se identificar com a personagem de maneira mais profunda. A alma dela aparece, assim, mais viva e direta ao leitor; as palavras do seu espírito são “vomitadas” cruamente no papel, como se este tivesse possuído o “corpo” do narrador. A técnica é característica fundamental e freqüente das narrativas literárias modernas, a partir do início do século XX. O discurso indireto livre é usado de maneira programática pelo grande romancista Graciliano Ramos, particularmente em Vidas Secas, do qual reproduzimos um trecho exemplar:

(O narrador mostra o personagem Fabiano em um momento de reflexão)
“Coçou o queixo cabeludo, parou, reacendeu o cigarro. Não, provavelmente não seria homem: seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma rês na fazenda alheia.
Mas depois? Fabiano tinha a certeza de que não se acabaria tão cedo. Passaria dias sem comer, apertando o cinturão, encolhendo o estômago. Viveria muitos anos, viveria um século. Mas se morresse de fome ou nas pontas de um touro, deixaria filhos robustos, que gerariam outros filhos.
Tudo seco em redor. E o patrão era seco também, arreliado, exigente e ladrão, espinhoso como um pé de mandacaru.
Indispensável os meninos entrarem no bom caminho, saberem cortar mandacaru para o gado, consertar cercas, amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se não calejassem, teriam o fim de seu Tomás da bolandeira. Coitado. Para que lhe servira tanto livro, tanto jornal? Morrera por causa do estômago doente e das pernas fracas.
Um dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito... Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andar certo? Não sabia. Seu Tomás da bolandeira é que devia ter lido isso. Livres daquele perigo, os meninos poderiam falar, perguntar, encher-se de caprichos. Agora tinham obrigação de comportar-se como gente da laia deles.”
É nos pensamentos mais carregados de conteúdo emocional que percebemos mais claramente o discurso indireto livre.

E o Cinema, será que possui maturidade narrativa para utilizar um estilo sutil como esse? Acredito que sim. O Cinema é arte visual, mais do que literária ou qualquer outra. Muitas vezes se criticam os aspectos excessivamente literários ou teatrais de um filme. Alfred Hitchcock (na famosa entrevista dada a François Truffaut), dentre outros grandes realizadores, defende com unhas e dentes a narrativa e a descrição empreendidas com meios puramente cinematográficos. Desse modo, melhor do que fazer o ator dizer em voz alta o pensamento de sua personagem (o que é, geralmente, tolo e ridículo), ou ainda, reproduzir o discurso interior pela voz em “off” (isso não fica tão ingênuo, mas já é muito banal), seria encontrar alguma maneira de mostrar – com imagens – o que se passa na cabeça de alguém.

Não estou falando do velho recurso do corte esfumaçado, da fusão encadeada, ou outros artifícios básicos da gramática cinematográfica que deixam claro, consensualmente, que o que virá depois trata-se de conteúdo do devaneio interior. Isso poderia ser equivalente apenas ao discurso indireto na Literatura, no qual as vozes do narrador e da personagem estão razoavelmente separadas e distintas. Quero propor uma maneira mais sutil de a câmera expressar um determinado pensamento da personagem, de forma que este invada, mais ou menos perceptível (sub-reptciamente) e por um rápido momento, o trabalho narrativo-descritivo da câmera-caneta.

Isso, a meu ver, é o que mais se aproximaria de um discurso indireto livre. Nos filmes de Hitchcock temos alguns momentos assim; mas o exemplo mais belo e evidente acredito que encontra-se em Umberto D, obra-prima do Neo-Realismo italiano dirigida por Vittorio de Sica, com roteiro de Cesare Zavattini. A cena em questão mostra, essencialmente, o seguinte:

Umberto D é um aposentado semi-miserável e sozinho. O elemento mais importante em sua vida é o cãozinho vira-lata que cria, ao qual ele é extremamente apegado. A vida vai ficando cada vez mais difícil e o Sr. Umberto está prestes a ser despejado da pensão onde vive. Uma noite, em seu quarto, o personagem vai até a janela e a abre: a câmera faz um “travelling” frontal e fecha em cima do seu rosto. Ele olha para o pavimento (em paralelepípedos) da rua, alguns andares abaixo: a câmera, subjetiva, mostra o que ele vê: o pavimento, só que em um plano mais próximo, não-correspondente à altura que o Sr. Umberto se encontra (representando, naturalmente, a atenção maior que sua visão dirige ao pavimento). Voltamos ao rosto, preocupado, da personagem. Então, a câmera (mais uma vez naquela visão subjetiva) faz um “travelling” veloz para baixo e fecha quase em primeiríssimo plano nos paralelepípedos do pavimento. Voltamos, mais uma vez, para o rosto de Umberto (de uma intensa gravidade): ele, então, volta-o para trás e contempla o seu cãozinho, que dorme tranqüilamente em cima da cama. Fica a contemplá-lo por alguns instantes. O Sr. Umberto, então, olha para os próprios pés, olha rapidamente para a rua abaixo e fecha a janela. Volta para a cama, senta-se e acaricia o cãozinho.

É um crime contra a Arte descrever com palavras uma cena dessas, uma das mais cinematográficas e comoventes que já vi no Cinema. Mas quero destacar que nela, sem que seja pronunciada uma palavra sequer, é comunicado a nós o pensamento de suicídio do personagem, o dilema em que fica ao contemplar o seu cão, e a decisão de abortar a própria morte, em favor do cão, que é a única criatura neste mundo que realmente depende do Sr. Umberto.

Isso que é Cinema!

sexta-feira, setembro 08, 2006

Cinefilia e Cinéfilos

O Dia Depois de Amanhã ("The Day After Tomorrow") EUA, 2004, dir.: Roland Emmerich
O amante de cinema é normalmente definido como cinéfilo. Mas que amante é esse? O que diferencia um cinéfilo de uma pessoa que “apenas” gosta de Cinema? Serão os cinéfilos todos iguais? Para começar a tentar responder essas perguntas, empresto a voz a Jacques Aumont:

“O termo “cinéfilo” aparece nos escritos de Riccioto Canudo no início dos anos 20: designa o amante informado de cinema. Há muitas gerações de cinéfilos com suas revistas e seus autores preferidos. A cinefilia teve um desenvolvimento considerável na França do pós-guerra (1945). Exerce-se por meio das revistas especializadas, das atividades de muitos cineclubes e da sua assiduidade às programações dos filmes de arte, a freqüência ritual a uma cinemateca, etc. O “cinéfilo” constitui um tipo social que caracteriza a vida cultural francesa em virtude do contexto cultural particular oferecido pela riqueza da exploração parisiense dos filmes, em particular: é fácil reconhecê-lo a partir de condutas miméticas; organiza-se em confrarias, jamais se senta no fundo de uma sala de cinema, desenvolve em qualquer circunstância um discurso apaixonado sobre seus filmes prediletos...
Convém distinguir essa acepção restritiva do “cinéfilo” em seu aspecto maníaco de apaixonado por cinema propriamente dito. (in A Estética do Filme, São Paulo, Papirus, 2006)

É uma acepção bem restritiva mesmo. Eu prefiro considerar “cinéfilo” – no sentido profundo que tem o radical grego filo (amigo) – o sujeito com uma paixão forte e abrangente pelo Cinema: ele assiste aos mais variados tipos de filmes e, como diz Aumont, procura manter-se o mais informado que puder sobre o universo da Sétima Arte, em todos os seus aspectos: estética, história, contextos (econômicos e sociais), personalidades (diretores, atores, etc).

Será que podemos encaixar nesses termos todas as pessoas que se consideram – ou são consideradas – cinéfilas? Eu mesmo, certamente, não me enquadro. Por isso, quero me apegar a apenas um dos atributos “cinelíficos” acima enumerados: o cinéfilo é aquele que assiste aos mais variados tipos de filmes. Discutir essa atitude é importante, porque ela é carregada de princípios éticos que podem se estender a qualquer pessoa que busque contato com obras artístico-culturais.

O cinéfilo, assim como qualquer apreciador de qualquer outra forma de arte ou cultura, deve se despir o máximo que puder dos seus preconceitos. Concordo que isso é difícil: certas atitudes mentais mesquinhas estão enraizadas em nós além de nossa percepção consciente. Mas façamos o esforço, pelo bem das artes.

Vamos entender bem: não estou falando de gosto. Cada um é perfeitamente livre para ter em mente e no coração seus cineastas amados e também os odiados. Pode-se gostar ou não do cinema iraniano, assistir ou não a filmes de Hollywood, por exemplo. Em uma conversa, não há problema algum em expressar juízos de valor subjetivos; entretanto, alguns desses “juízos” são tão carregados de certas emoções e infectados de certas idéias sutis, que beiram o limite da intolerância cega e taxativa. Muitas vezes ultrapassam. Em outros casos, a apreciação subjetiva mal se disfarça em uma análise que se pretende “objetiva”. É claro que a leitura 100% objetiva de um texto é uma utopia; estamos sempre condicionados, em maior ou menor grau, pela visão e experiência individuais. Mesmo assim, quando se quer fazer uma interpretação ou crítica “objetiva” de uma obra, devemos manter represado o oceano da nossa subjetividade o máximo que for possível.

Por isso, causa-me tristeza quando vejo um cinéfilo caindo em tais armadilhas. Faz-me acreditar que o indivíduo não gosta mesmo de cinema, de verdade. Já passei por algumas situações que podem servir de exemplo. Aqui vai uma:

Estava eu olhando o quadro que contém as críticas dos filmes, no Unibanco Arteplex (um dos guetos dos cinéfilos em São Paulo). Ao meu lado, há um casal decidindo que filme assistir. Então, testemunho o seguinte diálogo:

Ele (meio irônico): Olha, tá passando “O Dia Depois de Amanhã!” (Para vocês verem como isso já faz uns dois anos).

Ela (ríspida): Tsc! Mais um filme-catástrofe americano! Quero mais é que eles morram mesmo!

(Ele ri)

Entrei na sala para ver o meu filme (não lembro qual era), sem ter a coragem de olhar para os dois tipos que estavam ao lado, autores desse pequeno diálogo digno de Beckett.

Não conheço esse casal, não sei o tipo de relação que eles têm um com o outro. Mas esse diálogo me lembra de uma atitude que já testemunhei bastante: o preconceito cultural, particularmente aquele das pessoas “esclarecidas” contra a “indústria cultural”. Não é assunto deste post defender os valores artísticos e culturais que podem haver nas obras da indústria para entretenimento de massas; e lembro, de novo, que gosto cada um tem o seu. Quero apenas chamar a atenção para a “estupidez” de certas pessoas que, sem dúvida nenhuma, se julgam “inteligentes”.

Por isso, em uma conversa entre “cinéfilos”, é bom testar os interlocutores: no calor da discussão dos assuntos, tente encaixar na pauta a defesa de um filme ótimo da “indústria”, como Tropas Estelares (“Starship Troopers” - EUA, 1997, dir.: Paul Verhoeven). Simplesmente diga: “E Tropas Estelares, hein? Que filmão!” É delicioso analisar as reações nas pessoas que uma frase dessas pode provocar; elas darão fortes indícios de quem gosta de cinema de verdade, de quem não tem a mente tão amarrada – pela “indústria” das ideologias – quanto a massa manipulada pela outra indústria que se adora criticar.

quinta-feira, setembro 07, 2006

A imagem metafórica no Cinema

No livro O Discurso Cinematográfico: Opacidade e Transparência, Ismail Xavier discute a ontologia da imagem cinematográfica (capítulo I: “A Janela do Cinema e a Identificação”). Para tanto, ele cita as formulações de Maya Deren, cineasta importante na vanguarda norte-americana entre 1947 e 1961, que reproduzimos aqui como ponto de partida para as nossas discussões.

“O termo imagem (originalmente baseado em imitação) significa, em sua primeira acepção, algo visualmente semelhante a um objeto ou pessoa real; no próprio ato de especificar a semelhança, tal termo distingue e estabelece um tipo de experiência visual que não é a experiência de um objeto ou pessoa real. Neste sentido, especificamente negativo – no sentido de que a fotografia de um cavalo não é o próprio cavalo – a fotografia é uma imagem”. (in Cinema: o uso criativo da realidade).

Ismail Xavier, baseado no lingüista Pierce, compreende essa formulação como definidora do signo que é ícone. O “ícone” é a imagem que se assemelha à coisa representada, independentemente do processo de representação. A outra citação de Maya Deren diz o seguinte:

“Uma pintura não é, fundamentalmente, algo semelhante ou a imagem de um cavalo; ela é algo semelhante a um conceito mental, o qual pode parecer um cavalo ou pode, como no caso da pintura abstrata, não carregar nenhuma relação visível com um objeto real. A fotografia, entretanto, é um processo pelo qual um objeto cria sua própria imagem pela ação da luz sobre o material sensível. Ela, portanto, apresenta um circuito fechado precisamente no ponto em que, nas formas tradicionais de arte, ocorre o processo criativo uma vez que a realidade passa através do artista”.

Para Ismail Xavier, ela está falando do tipo de signo denominado índice. O “índice” é semelhante ao objeto a que se refere, porque foi diretamente afetado por ele – a imagem do cavalo que se imprime no filme. É a representação direta das coisas, e não a sua interpretação (mais ou menos exata) mediada pela visão de mundo do artista.
Assim, a imagem fotográfica, e também a cinematográfica, são ícones e índices ao mesmo tempo. Daí vem o poder singular de realidade do cinema, que afeta profundamente o artista e o estudioso crítico tanto quanto o público geral. Dessa mesma característica ontológica da imagem cinematográfica também decorrem as teorias fenomenológicas da arte do filme, como as de André Bazin, Henri Agel, Marcel Martin.
Entretanto, a mediação do artista também se faz presente no Cinema; um filme não é a realidade pura e crua (como muitos gostariam que fosse). Podemos afirmar que o Cinema é a mais “realista” dentre as outras artes, sem esquecer que nele também encontramos elementos da visão subjetiva e criativa – caso contrário, o Cinema não seria uma arte. Essa concepção se faz presente em Jean Mitry, historiador e teórico de cinema que encontrou um ponto de equilíbrio entre as linhas estruturalista e fenomenológica, entre as teorias idealistas e as realistas da sétima arte.
A vocação de ícone-índice do Cinema é algo inquestionável, e deve ser explorada pelos artistas e estudiosos em todo o seu potencial. Não obstante, o filme também deve servir de veículo de comunicação para a alma do autor, que transforma a realidade mostrada, recriando-a ou criando novas que expressem a subjetividade única que define o valor do artista.
Desse modo, é perfeitamente possível e – em alguns casos – necessário que a imagem cinematográfica signifique algo que vá além de seu caráter icônico essencial, além do objeto que denota. A imagem não pode se relacionar apenas consigo mesma, ela deve conotar algo que se esconde em sua aparência, mas que ao mesmo tempo dá indícios que podem nos levar à revelação. Essa é a natureza da metáfora. A imagem que transcende. Aristóteles já dizia, a respeito da estética artística, que o momento mais belo da arte é aquele em que ela revela (trata-se da epifania) algo que está além de si própria.
São vários os grandes momentos metafóricos do Cinema. Vamos falar aqui de apenas um deles, que foi muito mal interpretado pelos críticos fenomenológicos: O Gabinete do Dr. Caligari (“Das Kabinett des Dr. Caligari”), obra capital do Expressionismo Alemão, filmada em 1919 por Robert Wiene.
O filme narra a história de um artista de feiras circenses (o Dr. Caligari, interpretado por Werner Krauss) cujo show é a apresentação e as “profecias” de um sonâmbulo (Cesare, vivido por Conrad Veidt) sob o seu total controle. Esse sonâmbulo começa, então, a cometer assassinatos noturnos. Após uma investigação de muitos percalços, descobre-se que Caligari é um médico, diretor de um hospício, que está usando o sonâmbulo num estudo extremamente ambicioso, no qual os homicídios apenas fazem parte do experimento. O Dr. é amarrado como louco em uma camisa-de-força.
Entretanto, toda essa história é contada por um homem a seu colega, que aparecem no início do filme, os dois num jardim. No final, volta-se a eles e revela-se que ambos estão em um hospício, que os personagens da história contada (Caligari, Cesare e outros) apenas correspondem a pessoas reais ali presentes (o “Caligari” é de fato o diretor do hospital), e que toda a narrativa não passa de fruto da imaginação doentia do narrador.
Bem, a crítica fenomenológica usa esse filme como exemplo máximo do vício da estetização anti-realista, pois os cenários são todos construídos em linhas tortas e inquietantes, os volumes são de tamanho e perspectiva absurdos, a interpretação dos atores é pra lá de exagerada, e também são exagerados os contrastes entre luz e sombra. Todas essas são características básicas do Expressionismo Alemão no cinema, mas os fenomenólogos as desprezam, pois emulam excessivamente o universo artificial do teatro.
Porém, eles não percebem que o filme de Robert Wiene é uma narrativa, uma representação do real em duas camadas: a primeira mostra a realidade do louco contador de histórias, trancado num hospício; a segunda camada, mais profunda, representa ao espectador a realidade da história narrada da maneira como o louco a imaginou. Sendo assim, tem perfeita lógica o absurdo anti-realista dos cenários, da iluminação e da atuação dos atores, pois tudo faz parte da visão de mundo de uma mente perturbada.
A deformação proposital da realidade nesse filme é uma alegoria: ela metaforiza a subjetividade do personagem que, nesse ponto, é como o artista: cria um mundo fantástico de acordo com seu estado interior. O Gabinete do Dr. Caligari não mostra a realidade objetiva, por isso, reclamam que ele não é “realista”. Mas, sob outro ponto de vista, o filme só pode ser elogiado por ser extremamente “realista”, já que mostra com pormenor a visão de mundo deformada por alguém. Nesse caso particular, a cinematografia é realista na medida em que foge do “realismo” tradicional.
A crítica não tem do que reclamar. Ainda que se considere apenas o lugar comum de que não se pode reclamar de uma obra de arte aquilo que ela não pretendeu dar. Na análise de uma obra, devemos ter em mente o objetivo particular do artista com ela, julgando se ele conseguiu ou não atingi-lo; e deixar de lado o que nós queremos que ele faça. Essa lição é óbvia, aprende-se isso na escola; no entanto, algumas vezes até grandes críticos e teóricos, movidos certamente por altas ideologias, parecem esquecer-se dela.

quarta-feira, setembro 06, 2006

A realeza de Fred Astaire

Arte é encanto. Ainda que se acredite radicalmente em uma estética realista, é necessária e natural a transformação mínima da realidade ao ser transposta para o plano das artes. A sublimação do real, operada pelo fazer artístico, contribui enormemente para deixar uma marca indelével no espectador; de modo que, quando ele voltar à “realidade”, vai prestar atenção nela com olhos diferentes, conforme a visão sugerida pelo artista. É evidente que essa sugestão pode não ser algo louvável, dependendo do objetivo do autor; mas, por outro lado, não se pode exigir que a obra se desnude de quaisquer princípios estéticos: nesse caso, teremos qualquer outro tipo de discurso, menos o artístico.
A arte que busca o Belo (qualquer que seja a noção de “belo”), a arte-espetáculo ou arte-ilusão, de fato coloca o espectador em uma posição passiva, porém, longe de ser alienante. O espectador não deixa de sair enriquecido com uma nova visão de mundo, renovado em seu interior pelo poder único da beleza que contempla, estimulado a ver, ouvir, sentir e pensar diferente.
Dentro dessa concepção, o Cinema é a mais completa das artes. Ele empresta de todas as outras: Literatura, Teatro, Pintura, Música e Dança, para compor o seu estilo próprio. No Cinema, o amálgama de todos os componentes da realidade, e de todas as artes ao representá-la em filme, ocupa toda a alma do espectador com o poder de uma invasão orquestrada.
O prazer não é de “ver”, mas de experimentar um filme. A experiência de uma obra fílmica tem mais força do que qualquer outra. Pode não ter poder maior que a música, mas é uma experiência mais completa, porque também inclui a música. Se o Cinema é a arte que capta mais diretamente o real, e sendo o Cinema um amálgama das outras artes, então o Cinema é a arte que traz as outras mais próximo do real do que elas poderiam fazer por si próprias. Se o valor da arte mede-se pela sua relação pertinente com a vida, temos que afirmar, logo, que o Cinema mostra de uma maneira única e especial o valor da Literatura, do Teatro, da Pintura, da Música e da Dança.
Os melhores filmes almejam a totalização da experiência audiovisual. Assim, o gênero de filmes musicais pode se considerar particularmente privilegiado. É evidente que um filme cuja estrutura essencial seja a apresentação de números de música e de dança não é a única nem melhor maneira de se relacionar imagem e som. Contudo, tem-se nos musicais algumas das mais antológicas “pérolas” audiovisuais.
São muitos os filmes e muitas as cenas; portanto, vamos nos ater, aqui, a uma fita que parece ser um musical menor; não é tão conhecido nem exibido quanto, por exemplo, Cantando na Chuva (“Singing in the Rain”, EUA, 1952) que é, não obstante, do mesmo diretor (Stanley Donen). Estamos falando de Núpcias Reais (“Royal Wedding”), nascido um ano antes do seu irmão mais famoso (1951), com o genial Fred Astaire. Nesses dois filmes, Stanley Donen teve a graça de ter extraído as mais antológicas apresentações dos dois mais antológicos dançarinos de Hollywood (Gene Kelly estrela Cantando na Chuva).
O roteiro de Núpcias Reais envolve um casal de irmãos dançarinos (Tom e Ellen Bowen, vividos por Fred Astaire e Jane Powell) cujo show em Nova York é tirado de cartaz. Seu agente, então, arruma-lhes apresentações em Londres, na mesma época em que será celebrado o casamento real. No navio a caminho da Inglaterra, Ellen se apaixona por um aristocrata britânico e se envolve com ele; com isso, ela acaba deixando em segundo plano o trabalho com o irmão, que fica descontente. Mas ele logo conhecerá também o seu amor e, após cultivarem por um tempo o dilema de abandonar ou não a carreira artística pelo casamento, Tom e Ellen decidem que seu tempo de dançarinos já passou e que está na hora de casar. Ambos optam pelo matrimônio, cada um acompanhado de seu par, no meio da multidão que assiste ao casamento real.
É um enredo bastante convencional, coisa que não é rara em musicais norte-americanos. Núpcias Reais não é o melhor filme estrelado por Fred Astaire. Mas é o que contém os seus melhores números de dança. Particularmente, duas cenas, que são daquelas que fazem o orgulho do Cinema; nelas, o Audiovisual se manifesta nas suas melhores potencialidades artísticas.
No primeiro número, Tom Bowen, abandonado pela irmã que faltara ao ensaio, dança com um porta-casacos e outros aparelhos da sala de ginástica do navio. A imagem é epifânica: a alegria do artista em seu fazer, em seu meio, quase como uma criança a brincar nos aparelhos de um playground. Um dos atributos do artista é a sua interação peculiar com o meio. Fred Astaire mostra que é mestre em relacionar-se harmoniosa e criativamente com o meio (cenário), assimilando-o e deixando-se assimilar por ele, domando-o e liberando-o alternadamente, extraindo dele todo o seu potencial artístico e, o que é mais interessante: ensinando o espectador a enxergar os objetos da realidade mais banal de maneira sublime, fazendo sua beleza única, escondida no interior de um cotidiano cego, vir à tona e dialogar com o artista e com o público. Só os grandes poetas conseguem fazer isso, gente como Manuel Bandeira e João Guimarães Rosa, para ficar na nossa Literatura.
Fred Astaire, assim, pertence à mais alta categoria de artista-mago, aquele que nos leva a transcender a aparência material das coisas, dando vida a elas. Ver um número de dança como esse é hipnotizar-se, entrar em um estado de contemplação espiritual só comparável com a leitura de certos poemas, a audição de certas músicas, ou com a meditação.
A “dança com o porta-casacos” foi magnificamente montada em paralelo com dribles de Mané Garrincha, no documentário brasileiro Nós que aqui estamos por vós esperamos (1998), dirigido por Marcelo Masagão. Essa cena, de montagem ritmada como uma música, nos faz apreciar de uma maneira ainda mais especial o balé de Fred Astaire (e também o de Garrincha).
O segundo número mostra o mesmo Tom Bowen dançando pelo teto e paredes de um quarto de hotel, após contemplar o retrato da sua amada. É interessante saber como esse número foi filmado. Montou-se o cenário do quarto, em tamanho natural, dentro de uma caixa enorme, conectada a eixos a que faziam girar verticalmente. A câmera estava fixa em uma janela lateral, de modo que o espectador tinha a impressão de que era Fred Astaire quem se movimentava. Isso mostra o talento do dançarino, que baila ao movimento giratório do set sem perder o passo.
Em termos de narrativa, antes que se reclame da inverossimilhança, é preciso atentar que essa cena é a expressão metafórica do devaneio amoroso do Sr. Bowen. Em um outro momento do filme, anterior a esse, Tom Bowen e sua amada confessavam um ao outro os efeitos maravilhosos que o amor lhes provocava: ela diz que o amor a fazia ter vontade de subir pelas paredes a dançar. Eis a ligação.
Como metáfora cinematográfica, a cena já revela seu caráter estético. Mas o principal é testemunhar Fred Astaire bailando alegremente (de novo nos vem a imagem da pureza e da ingenuidade infantis), manifestando a sua arte e o seu amor, passando por cima (literalmente) da lei da gravidade, a maior de todas as leis. Eis o artista. Ele supera qualquer obstáculo ao agir, faz pouco caso das “camisas-de-força” que se lhe apresentam; ele ri delas. No seu trabalho divino de criação, o artista é quem domina todas as forças e circunstâncias. Não exclui nada nem se exclui de nada; ele toma tudo e tudo transforma, procurando sempre o novo, o inusitado, chamativo, o belo. Assim é o espetáculo. E Fred Astaire é mestre nele.

Links:

http://www.youtube.com/watch?v=ac6o8PXthzQ Assista à famosa “Ceiling Dance” (Dançando no Teto) de Fred Astaire em Núpcias Reais. Pena que o vídeo não a mostra até o final. Para ver o número completo, acesse esta opção: http://www.youtube.com/watch?v=5Yw4_mafblk&mode=related&search=, mas a qualidade da imagem é pior.

http://www.youtube.com/watch?v=RDnmR4EVde0&mode=related&search= Assista à famosa “Coat Hanger Dancing” (Dançando com o Porta-Casacos) de Fred Astaire em Núpcias Reais. Este vídeo é completo.

http://www.youtube.com/watch?v=tap1sPd4LyI Aqui temos a “dança” paralela de Fred Astaire e Mané Garrincha, retirada de Nós que aqui estamos por vós esperamos.

http://themave.com/Astaire/ Um bonito site de homenagem a Fred Astaire, com biografia, filmografia e fotos. Em Inglês.

http://www.reelclassics.com/Actors/Astaire/astaire.htm Informações detalhadas sobre Fred Astaire. Biografia, filmografia, fotos e vídeos. Em Inglês.
Filmografia de Fred Astaire:
1981 - História de fantasmas (Ghost story);
1979 - O homem vestido de Papai Noel (Man in the Santa Claus suit, The) (TV);
1978 - A family upside down (TV);
1977 - Un taxi mauve;
1977 - Easter Bunny is comin' to town, The (TV) (voz - narrador);
1976 - Amazing dobermans, The;
1974 - Inferno na torre (Towering inferno, The);
1970 - Santa Claus is comin' to town (TV) (voz - narrador);
1970 - Over-the-hill gang rides again, The (TV);
1969 - Midas run;
1968 - O caminho do arco-íris (Finian's rainbow);
1962 - Aconteceu num apartamento (Notorious landlady, The);
1961 - Papai playboy (Pleasure of his company, The);
1959 - A hora final (On the beach);
1957 - Meias de seda (Silk stockings);
1957 - Cinderela em Paris (Funny face);
1955 - Papai pernilongo (Daddy long legs);
1953 - A roda da fortuna (Band wagon, The);
1952 - Ver, gostar e amar (Belle of New York, The);
1951 - Núpcias reais (Royal wedding);
1950 - Nasci para bailar (Let's dance);
1950 - Três palavrinhas (Three little words);
1949 - Ciúme, sinal de amor (Barkleys of Broadway, The);
1948 - Desfile de Páscoa (Easter parade);
1946 - Romance inacabado (Blue skies);
1946 - Ziegfeld follies (Ziegfeld follies);
1945 - Yolanda e o ladrão (Yolanda and the thief);
1943 - Tudo por ti (Sky's the limit, The);
1942 - Bonita como nunca (You were never lovelier);
1942 - Duas semanas de prazer (Holiday inn);
1941 - Ao compasso do amor (You'll never get rich);
1940 - Amor da minha vida (Second chorus);
1940 - Melodia da Broadway (Broadway melody of 1940);
1939 - A história de Vernon e Irene Castle (Story of Vernon and Irene Castle, The);
1938 - Dança comigo (Carefree);
1937 - Cativa e cativante (A damsell in distress);
1937 - Vamos dançar? (Shall we dance);
1936 - Ritmo louco (Swing time);
1936 - Nas águas da esquadra (Follow the fleet);
1935 - O picolino (Top hat);
1935 - Roberta (Roberta);
1934 - A alegre divorciada (Gay divorcee, The);
1933 - Voando para o Rio (Flying down to Rio);
1915 - Fanchon, the cricket.

Obrigado por Fumar


“Disponha!”
É o que deveria dizer o espectador para entrar no espírito da brincadeira desse filme. Brincadeira sim, pois o que se vê na tela não é, quase absolutamente, sério (exceto por uma única ação responsável que o protagonista toma no final – mostrando que ainda há esperanças para ele). Chama muito a atenção o largo abismo que há entre a gravidade do assunto (o lobby e as campanhas de manipulação pública promovidas pela indústria tabagista) e o tom jocoso da apresentação fílmica. Mas isso não é uma contradição.
A produção de estréia do diretor Jason Reitman (filho de Ivan Reitman, de Os Caça-Fantasmas) ocupa-se em mostrar com minúcias o trabalho de um porta-voz das indústrias de cigarro, Nick Naylor (interpretado por Aaron Eckhart). Dotado de talento retórico e carisma imensos, o Sr. Naylor luta para convencer governo e população de que o tabaco não faz mal à saúde – ele mostra que, em algumas ocasiões, fumar até faz bem (!).
Ele é o foco narrativo. A narração em 1ª pessoa (através da sua voz em off) nos revela que o mundo apresentado é o mundo visto por seus olhos. O que nós vemos é filtrado pela visão de mundo do Sr. Naylor. Assim, o tom do filme é leve e jocoso, pois o seu protagonista é um homem que adora o seu trabalho; um profissional fascinado é um profissional que se diverte no seu fazer. Nick Naylor abraça com prazer a tarefa que, no fundo, faz por manter e até aumentar as mortes causadas pelo cigarro. E ele se orgulha disso: a cena que mostra o protagonista competindo com seus colegas que possuem papéis equivalentes na indústria do álcool e das armas, para descobrir quem “mata mais”, escancara ao espectador a personalidade, a ideologia e o caráter do Sr. Naylor.
Afora o seu cinismo, ele só vai assumir uma expressão facial realmente grave quando, participando de um programa de entrevistas, é ameaçado de morte; a câmera de TV (que ali se confunde com a do filme) capta sua mudança repentina de “cara” em um plano magnífico.
A representação facial de Aaron Eckhart dá vida e características muito particulares ao personagem. Nick Naylor sabe que o seu trabalho é maléfico, mas, como bom spokesman, a expressão dele não é a de um cínico, que demonstra o fingir falar a verdade; pelo contrário, é uma expressão em que transparece o entusiasmo ingênuo de quem realmente acredita que o que diz é bom, importante e verdadeiro. Sua expressão lembra, em alguns momentos, a de George Bush em aparições públicas e discursos.
Obrigado por Fumar lembra o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Neste, temos também um narrador-protagonista de caráter ambíguo mas com grande talento para a retórica, que busca “justificar-se” o tempo todo para o leitor e ganhar as suas graças. Sendo assim, podemos aplicar ao Sr. Naylor a atitude de uma desfaçatez muito próxima daquela que o crítico Roberto Schwarz atribuiu a Brás Cubas (a “desfaçatez de classe”). Talvez maior, pois o personagem do romance (escrito pelo norte-americano Christopher Buckley, autor de sátiras políticas) que deu origem a este filme não precisou morrer – ou fingir-se de morto – para mostrar livremente sua desfaçatez.
Desse modo, o que vemos na tela não é sério pois é a expressão e representação de um homem ridículo (da mesma maneira, não devemos levar a sério o discurso de Brás Cubas). Todavia, não se pode afirmar que o filme (o discurso do filme no plano do realizador) não seja sério. O humor de Obrigado por Fumar serve à visão de mundo cínica de Nick Naylor e serve também à ironia, à sátira que Jason Reitman faz de seu personagem e seu universo. Temos aqui a mesma sutileza que Machado de Assis promove nas “meias-tintas” de seu grande romance e bem melhor do que o sarcasmo grosseiro de Michael Moore.
Sente-se no filme um tom de absurdo, tal qual em um universo paralelo bizarro, onde todos os fatos, informações e valores estão às avessas. Em um mundo “positivo”, dominado por valores, quem nós vamos eleger como modelo a ser apreciado e seguido? É claro que é aquele que encarna mais a fundo tais valores. Agora, em um mundo “negativo”, regido por anti-valores, é natural que nos apeguemos àquele que melhor obedece esses anti-valores. Eis o carismático Nick Naylor. Todos no filme possuem defeitos de caráter: o próprio diretor confirma, em entrevista dada à Folha de S. Paulo (18/08/2006):

“Acho que todos os personagens do filme são desprezíveis, em certo sentido. Eu tentei dar pelo menos um porrada em cada profissão polêmica. E, para mim, jornalismo está no mesmo ambiente da política e das corporações...”

Esses personagens, como (além do protagonista) a jornalista interpretada por Katie Holmes e o senador anti-tabaco vivido por William H. Macy, usam e abusam de estratégias anti-éticas para conseguir seus desígnios profissionais (que consideram altamente justos, ao contrário do seu inimigo – o protagonista –, que não se dá ao trabalho de enganar a si próprio; isso é um agravante para eles). No entanto, quem melhor consegue aplicar essas técnicas “maldosas” e atingir seus objetivos, sofrendo o menor dos danos, é o Sr. Naylor. Ele se transforma, assim, em uma figura bastante admirável para o espectador.
Por tudo isso, Obrigado por Fumar parece uma piada de humor negro. O filme não é a crítica de um herói da indústria tabagista. É o anti-elogio de um anti-herói.