Fascinação
A assinatura
estética de Malick nos faz lembrar o velho debate entre o cinema “puro” e o
cinema narrativo, em uma época na qual a sétima arte ainda lutava para se
autoafirmar. Procurando libertar-se das perigosas influências literárias e
teatrais, muitos vanguardistas defendiam um cinema feito apenas de fotogenia,
de encanto visual, eliminando-se completamente os elementos de narração – ou,
pelo menos, reduzindo-os ao mínimo. Abel Gance dizia que o cinema é a “música
da luz”. Desse modo, a escolha e disposição das imagens na tela obedeceria não
à pertinência lógica de uma estrutura narrativa (ou dissertativa, tratando-se
do cinema de ideias soviético), mas à sua força sinfônica: o tom, o ritmo, a
harmonia, que nascem de um caráter intrínseco às próprias imagens, de qualidade
sensorial acima de tudo. A montagem cinematográfica deve ser encarada como uma
composição musical.
Eis que nasce o
cinema de poesia, o cinema feito a partir de analogias poéticas (pensando mais na
força estético-sensorial das imagens, do que no seu conteúdo simbólico-metafórico),
muito antes de Pasolini e Tarkovski. O filme enquanto “poema sinfônico de
imagens” (Germaine Dulac, cineasta e teórica que também cunhou a expressão “sinfonia
visual”). Nem todos os cineastas levaram a ferro e a fogo essas ideias;
reservou-se espaço para uma história ou mensagem a ser transmitida, mas estas
tinham que estar subordinadas ao “específico cinematográfico”: mais uma vez, o
fotogênico (veja-se o épico Napoleão,
realizado por Abel Gance em 1927). Um gênero particular desse cinema “musical”
é o das “sinfonias urbanas”: seus grandes mestres são Dziga Vertov (O Homem com A Câmera, 1927) e Walter Ruttmann (Berlim, Sinfonia de Uma Metrópole, 1929).
Terrence Malick
é um tipo raro de cineasta, pois suas fontes de inspiração não são imediatas,
contrariando 99,9% dos diretores que sofrem de muito “hype” e repertório míope.
Quer entender um filme como A Árvore da
Vida (2011)? Vá ver filmes dos anos 1920 para trás. Poucos cinéfilos (ou
críticos) terão a paciência... A conexão mais próxima com o cinema de Malick
talvez seja o de Stanley Kubrick: ambos procuram resgatar um encanto
primordial, a fascinação pelas imagens em movimento, um cinema que pensa – e se
pensa – como os sonhos, sem restrições, sem lógica: o “cinema do diabo” (Jean
Epstein). Amor Pleno (“To The Wonder”,
2012) é o último rebento nessa empreitada (sem contar a produção atualíssima do
cineasta-compositor-poeta tailandês Apichatpong Weerasethakul). Sua missão é
difícil: ser o filme seguinte à A Árvore
da Vida, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes e é, até o momento, o projeto
mais ambicioso de Malick, na estética e nos temas.
Amor Pleno, nessas circunstâncias, representa uma baixada de tom. Talvez passe à
história como um filme menor na obra do diretor, sem que isso signifique perda
de inspiração ou qualidade. A metafísica, as analogias entre o individual e o
cósmico apenas se fazem aqui de um modo mais intimista, em uma escala menor do
que no longa anterior. Se A Árvore da
Vida é composição para orquestra sinfônica, Amor Pleno é para quarteto de cordas. O “wonder” do título
representa o caráter paradoxal e transcendente da experiência amorosa: como
seres amados, nós reconhecemos nossa plena identidade no olhar carinhoso de
quem nos ama; como seres que amam, nós nos dissolvemos completamente na
criatura amada para a qual nos doamos plenamente. Entre concentração
(identidade) e dissolução (doação), existe um lampejo de eternidade – também presente
no orgasmo – que faz com que o amor seja a (única) vitória que possuímos contra
o tempo, contra a morte. Mas não passará de um lampejo; as vicissitudes do
ser-estar no mundo e no tempo haverão de prevalecer.