Aqueles que leram as três últimas postagens deste BLOG devem estar achando que eu transformei o SOMBRAS ELÉTRICAS num bestiário. Juro que não foi essa a intenção. Não estou me dedicando particularmente a um “cinema animal”. Coincidências são isso mesmo: apenas coincidências. Agora, vamos ao filme. Eu tinha uns nove ou dez anos na primeira vez em que vi esta fita (no velho videocassete). Adorava filmes de terror “trash”: era particularmente fã de Dia dos Mortos (“Day of The Dead”, EUA, 1986, dir.: George A. Romero), Nasce Um Monstro (“It’s Alive”, EUA, 1974, dir.: Larry Cohen) e, naturalmente, Cão Branco (“White Dog”, EUA, 1982, dir.: Samuel Fuller).
Lembro-me de que a história do pastor alemão albino que era treinado para atacar e matar somente a “black people” impressionou-me bastante (a cena da igreja é especialmente aterradora). Eu já tinha lá os meus medos e traumas de cachorros bravos – nada muito grave, mas que criança não tem? Contudo, na época – logicamente – eu não sabia que este era a film by SAMUEL FULLER (!). Para mim, era nada mais do que um filme B, um daqueles telefilmes sem qualquer referência que as TVs gostam de passar no “Supercine” ou no “Corujão”. E não foi até bem pouco tempo atrás que eu descobri a autoria desta pepita, quando pesquisava para escrever sobre o Capacete de Aço (do mesmo diretor).
Vendo White Dog mais uma vez, vinte e cinco anos depois, depreendo claramente todos os detalhes e profundeza do tema desta alegoria macabra. Samuel Fuller, utilizando-se das formas – e fórmulas – mais banais do melodrama e dos “horror movies”, constrói um contundente manifesto anti-racismo. O filme tem a força e a paixão de uma militância. Cabe lembrar a famosa fala do cineasta, em sua pequena participação no Demônio das Onze Horas (“Pierrot Le Fou”, França, 1965), de Jean-Luc Godard. Trata-se de um breve diálogo entre ele (que se apresenta com o seu próprio nome, como um diretor norte-americano filmando em Paris) e o personagem de Jean-Paul Belmondo, protagonista.
BELMONDO: “Eu sempre quis saber o que é o cinema.” FULLER: “Um filme é como um campo de batalha: como o amor, o ódio, a ação, a violência, a morte. Em uma palavra: as emoções.” White Dog é baseado em fatos reais. Uma jovem atriz de cinema, Julie Sawyer (Kristy McNichol), atropela acidentalmente um pastor alemão branco e o leva para casa. O cão não possui qualquer identificação; mesmo assim, a moça tenta maneiras de achar o seu verdadeiro dono, antes de acabar entregando-o à “carrocinha”. No entanto, quando o cachorro a salva bravamente de um estuprador que invade a sua casa, ela desenvolve grande afeto pelo animal e decide ficar com ele.
Pouco tempo depois, após fugir e voltar coberto de sangue, e após atacar uma atriz amiga sua (negra, por sinal), Julie deduz que o seu bicho de estimação é um “cão de ataque” (treinado para matar). Ela, então, procura um famoso domador e treinador de animais (que trabalha para Hollywood), Mr. Carruthers (Burl Ives), para que ele “descondicione” o cachorro. O homem logo descobrirá que se trata de um “cão branco”: condicionado desde filhote – e da maneira mais traumática, através de constantes e sistemáticos maus-tratos – a perseguir, atacar e assassinar afro-descendentes. A tarefa de “curar” o animal – inocente, afinal de contas – será assumida com grande paixão e paciência pelo sócio de Carruthers, o Sr. Keys (Paul Winfield), ele mesmo afro-americano.
O cineasta originalmente contratado para dirigir essa história era ninguém menos que Roman Polanski. Entretanto (!), este se envolve naquele seu famoso caso de pedofilia e acaba deixando os EUA. Com baixo orçamento e pouco tempo para filmagens, o nome de Samuel Fuller surge como o mais apto. Logicamente, o subversivo diretor de Paixões Que Alucinam (“Shock Corridor”, 1963) não fará pouco caso da temática de racismo presente no roteiro, transformando Cão Branco numa espécie de Tubarão (o do Spielberg) “com patas” (“jaws with paws”), como queria o estúdio da Paramont. Com isso, o filme deixa de ser lançado comercialmente em território norte-americano, temendo uma “publicidade negativa”.
White Dog é solto na França e no Reino Unido no mesmo ano de 1982. Nos EUA, será transmitido na TV a cabo e lançado oficialmente apenas em 2008, com a edição em DVD. Samuel Fuller, após o aborto de seu filme, muda-se para a França e nunca mais dirige uma película nos EUA. É claro que White Dog não é racista, mas a maneira violenta e pessimista com que Fuller cutuca as chagas abertas do seu país não está lá muito de acordo com o que queriam os estúdios de Hollywood e nem algumas associações de defesa dos direitos de afro-descendentes. Fuller arregaça as contradições dos Estados Unidos sem a menor preocupação com as sensibilidades que poderão se sentir ofendidas no meio do caminho.
Sam Fuller faz um cinema político sem ligar a mínima para as “frescuras” do politicamente correto. Acusá-lo de racista é a pior forma de cegueira ideológica. Fuller é integracionista – como Martin Luther King ou Nelson Mandela –, modificando a história que tem em mãos: no romance em que se baseia o roteiro do filme, o treinador negro que tenta “curar” o cão faz o seu trabalho condicionando-o propositalmente a atacar pessoas brancas. Já na visão do cineasta, o comportamento e o discurso do treinador (Sr. Keys) possuem a força e a beleza da convicção de quem sabe que luta contra uma idéia. E ele sabe também que se trata de uma luta inglória, quixotesca aos olhos do mundo, com pouca ou nenhuma chance de sucesso.
Mesmo assim, o Sr. Keys não arreda do “campo de batalha”: a metafórica arena / jaula usada para domar animais selvagens, que representa o próprio espaço social e também o espaço simbólico do cinema (lembremos a fala de Fuller no filme de Godard). O cão da Srta. Sawyer é o terceiro “cão branco” que o Sr. Keys toma em mãos para tentar provar e legitimar uma idéia (a igualdade), desmontando e desmoralizando outra (o ódio racial). Como ele mesmo diz com grande paixão e intensidade, é muito mais fácil atirar em animais assim, mas isso não extirparia a raiz do problema. E Samuel Fuller usa com grande intensidade os recursos do cinema na construção de sua parábola revolucionária.
São de grande significação as cenas que mostram, sempre dentro do mesmo plano, a “batalha” entre Keys e o cachorro, verdadeira coreografia do ódio. Sentimos o calor dos acontecimentos: a agressividade dos movimentos corporais corresponde aos movimentos contundentes das paixões na retórica do debate social racismo / anti-racismo. É também de grande impacto icônico a imagem do cão branco coberto do vermelho vivo do sangue de suas vítimas. O choque também se faz presente no contraste entre o comportamento e o olhar carinhosos que o cão dedica à sua dona e aqueles que ele lança aos alvos de seus ataques. A idéia é: a barbárie se infiltra disfarçadamente no seio de qualquer lar, em quaisquer relações, conquistando os cidadãos mais “mansos”.
Mas o momento alto deste filme é a sequência que mostra a segunda fuga do cão branco. Vemos na tela uma esquina: do lado direito (em uma rua), está o cachorro fuçando umas latas de lixo; do lado esquerdo (na outra rua), vê-se uma criança pequena (negra) enchendo um balão. Então, o cão continua andando, em direção à esquina, e no momento exato em que ele a cruza, a mãe do menino sai de uma loja, pega-o no colo e volta para dentro, tudo muito naturalmente, sem dar pela presença do cão (nem este os percebe). Mais à frente, o pastor alemão se deparará com um homem (da etnia-alvo) e começará imediatamente a perseguição. O homem corre para dentro de uma igreja (católica), mas em vão.
O cachorro o estraçalha na frente do altar – enquanto a câmera mostra em travelling as imagens santas e ouvimos os gritos do homem misturados aos rosnados do bicho. Após, num jogo de campo / contra-campo, vemos um primeiro plano do cão (a mandíbula ofegante repleta de sangue) a olhar para algo por cima do altar, que é (mudança de plano) um vitral com a imagem de São Francisco de Assis cercado de animais (!); volta-se ao cachorro, e vemo-lo virar com desprezo a cabeça e continuar o seu caminho. Com esta grande ironia, não é de todo incompreensível que o filme seja censurado. E já que falamos em ironia, é interessante analisar o como Samuel Fuller direciona as suas provocações ao próprio cinema.
Na cena em que o cachorro ataca a parceira de Julie, durante uma filmagem em que ambas contracenam, tem-se primeiramente um plano-sequência que acompanha – pela frente – o diretor do filme chegando ao set. Ele caminha alguns metros em linha reta, e vemo-lo ofuscado pela luz de um projetor que está por trás. Quando chega ao centro da ação (ainda no mesmo plano, com leves movimentos de câmera buscando o reenquadramento), o cameraman vigorosamente o repreende, dizendo que não dá para trabalhar com o telão em que está sendo projetada a paisagem que servirá de fundo à ação representada (em Veneza), pois está “fora de sincronia” e fica “piscando” o tempo todo.
À impaciência e nervosismo do operador, o sereno cineasta responde, não sem alguma dose de gracejo, que aquilo é na verdade algo “artístico”, como se diz na França, e “formidable”, como diz Truffaut. Na cova do leão do cinema industrial norte-americano (mesmo se tratando de uma fita de baixo orçamento), Sam Fuller brinca com as oposições de linguagem entre a decupagem tradicional dos EUA – que busca sempre a verossimilhança, o efeito de realidade –, e o estilo cinematográfico mais “europeu” (particularmente em Godard) – no qual o cinema se afirma como discurso, construído artificialmente, revelando ao espectador as suas entranhas e procurando criticar, através da não-obediência, a gramática dominante do cinema industrial.
Woody Allen fará a mesma brincadeira em Dirigindo no Escuro (“Hollywood Ending”, EUA, 2002), colocando-a de modo central no enredo do filme. Agora, a provocação metalingüística mais deliciosa em Cão Branco está na inflamada reclamação do Sr. Carruthers (o qual, como vimos, é um prestigioso treinador de animais para filmes), que lamenta inconsolável o fato de um “robô” ter ocupado o lugar de um animal no cinema. Lugar que se trata, mais exatamente, de uma função: o elemento com o qual as crianças vão se identificar, que disparará toda uma série de merchandising e que fará a arte e os lucros dos treinadores e domadores.
O robô do qual o velho fala é nada menos do que o fofo R2-D2, da série Star Wars (1977-2005, dir.: George Lucas). O Sr. Carruthers mantém, em seu escritório, um pôster de R2-D2, que ele usa como alvo para dardos, descarregando toda a sua raiva impotente. É extremamente tentador admitir que tal discurso venha do romantismo incondicional do próprio Fuller. O mais curioso é tomar para pensar um trecho da fala do velho treinador, dizendo à jovem Julie que dali a vinte e cinco anos já não se veria mais animal nenhum nos filmes, coroando a decadência do cinema (de um estilo, de uma tradição de cinema, entenda-se bem). Vejamos: 1982 + 25 = 2007.
Do nascimento dos “blockbusters” (justamente com o Lucas de Guerra nas Estrelas) até o caso muito especial de Avatar (2010, dir.: James Cameron), parece relativamente confirmada a profecia do Sr. Carruthres, não? É com nostalgia que nos lembramos de filmes como As Aventuras de Chatran (“Koneko Monogatari”, Japão, 1986, dir.: Masanori Hata) e A Incrível Jornada (“Homeward Bound: The Incredible Journey”, EUA, 1993, dir.: Duwayne Dunham), que parecem ter-se enfiado debaixo da mesa com o rabo por entre as pernas, hoje em dia. Enfim, White Dog existia no Brasil em VHS, lá pelos idos perdidos dos anos 80. Em DVD, não há qualquer sinal. Mas, com o lançamento de Capacete de Aço e o relançamento de Paixões Que Alucinam, quem sabe?
Lembro-me de que a história do pastor alemão albino que era treinado para atacar e matar somente a “black people” impressionou-me bastante (a cena da igreja é especialmente aterradora). Eu já tinha lá os meus medos e traumas de cachorros bravos – nada muito grave, mas que criança não tem? Contudo, na época – logicamente – eu não sabia que este era a film by SAMUEL FULLER (!). Para mim, era nada mais do que um filme B, um daqueles telefilmes sem qualquer referência que as TVs gostam de passar no “Supercine” ou no “Corujão”. E não foi até bem pouco tempo atrás que eu descobri a autoria desta pepita, quando pesquisava para escrever sobre o Capacete de Aço (do mesmo diretor).
Vendo White Dog mais uma vez, vinte e cinco anos depois, depreendo claramente todos os detalhes e profundeza do tema desta alegoria macabra. Samuel Fuller, utilizando-se das formas – e fórmulas – mais banais do melodrama e dos “horror movies”, constrói um contundente manifesto anti-racismo. O filme tem a força e a paixão de uma militância. Cabe lembrar a famosa fala do cineasta, em sua pequena participação no Demônio das Onze Horas (“Pierrot Le Fou”, França, 1965), de Jean-Luc Godard. Trata-se de um breve diálogo entre ele (que se apresenta com o seu próprio nome, como um diretor norte-americano filmando em Paris) e o personagem de Jean-Paul Belmondo, protagonista.
BELMONDO: “Eu sempre quis saber o que é o cinema.” FULLER: “Um filme é como um campo de batalha: como o amor, o ódio, a ação, a violência, a morte. Em uma palavra: as emoções.” White Dog é baseado em fatos reais. Uma jovem atriz de cinema, Julie Sawyer (Kristy McNichol), atropela acidentalmente um pastor alemão branco e o leva para casa. O cão não possui qualquer identificação; mesmo assim, a moça tenta maneiras de achar o seu verdadeiro dono, antes de acabar entregando-o à “carrocinha”. No entanto, quando o cachorro a salva bravamente de um estuprador que invade a sua casa, ela desenvolve grande afeto pelo animal e decide ficar com ele.
Pouco tempo depois, após fugir e voltar coberto de sangue, e após atacar uma atriz amiga sua (negra, por sinal), Julie deduz que o seu bicho de estimação é um “cão de ataque” (treinado para matar). Ela, então, procura um famoso domador e treinador de animais (que trabalha para Hollywood), Mr. Carruthers (Burl Ives), para que ele “descondicione” o cachorro. O homem logo descobrirá que se trata de um “cão branco”: condicionado desde filhote – e da maneira mais traumática, através de constantes e sistemáticos maus-tratos – a perseguir, atacar e assassinar afro-descendentes. A tarefa de “curar” o animal – inocente, afinal de contas – será assumida com grande paixão e paciência pelo sócio de Carruthers, o Sr. Keys (Paul Winfield), ele mesmo afro-americano.
O cineasta originalmente contratado para dirigir essa história era ninguém menos que Roman Polanski. Entretanto (!), este se envolve naquele seu famoso caso de pedofilia e acaba deixando os EUA. Com baixo orçamento e pouco tempo para filmagens, o nome de Samuel Fuller surge como o mais apto. Logicamente, o subversivo diretor de Paixões Que Alucinam (“Shock Corridor”, 1963) não fará pouco caso da temática de racismo presente no roteiro, transformando Cão Branco numa espécie de Tubarão (o do Spielberg) “com patas” (“jaws with paws”), como queria o estúdio da Paramont. Com isso, o filme deixa de ser lançado comercialmente em território norte-americano, temendo uma “publicidade negativa”.
White Dog é solto na França e no Reino Unido no mesmo ano de 1982. Nos EUA, será transmitido na TV a cabo e lançado oficialmente apenas em 2008, com a edição em DVD. Samuel Fuller, após o aborto de seu filme, muda-se para a França e nunca mais dirige uma película nos EUA. É claro que White Dog não é racista, mas a maneira violenta e pessimista com que Fuller cutuca as chagas abertas do seu país não está lá muito de acordo com o que queriam os estúdios de Hollywood e nem algumas associações de defesa dos direitos de afro-descendentes. Fuller arregaça as contradições dos Estados Unidos sem a menor preocupação com as sensibilidades que poderão se sentir ofendidas no meio do caminho.
Sam Fuller faz um cinema político sem ligar a mínima para as “frescuras” do politicamente correto. Acusá-lo de racista é a pior forma de cegueira ideológica. Fuller é integracionista – como Martin Luther King ou Nelson Mandela –, modificando a história que tem em mãos: no romance em que se baseia o roteiro do filme, o treinador negro que tenta “curar” o cão faz o seu trabalho condicionando-o propositalmente a atacar pessoas brancas. Já na visão do cineasta, o comportamento e o discurso do treinador (Sr. Keys) possuem a força e a beleza da convicção de quem sabe que luta contra uma idéia. E ele sabe também que se trata de uma luta inglória, quixotesca aos olhos do mundo, com pouca ou nenhuma chance de sucesso.
Mesmo assim, o Sr. Keys não arreda do “campo de batalha”: a metafórica arena / jaula usada para domar animais selvagens, que representa o próprio espaço social e também o espaço simbólico do cinema (lembremos a fala de Fuller no filme de Godard). O cão da Srta. Sawyer é o terceiro “cão branco” que o Sr. Keys toma em mãos para tentar provar e legitimar uma idéia (a igualdade), desmontando e desmoralizando outra (o ódio racial). Como ele mesmo diz com grande paixão e intensidade, é muito mais fácil atirar em animais assim, mas isso não extirparia a raiz do problema. E Samuel Fuller usa com grande intensidade os recursos do cinema na construção de sua parábola revolucionária.
São de grande significação as cenas que mostram, sempre dentro do mesmo plano, a “batalha” entre Keys e o cachorro, verdadeira coreografia do ódio. Sentimos o calor dos acontecimentos: a agressividade dos movimentos corporais corresponde aos movimentos contundentes das paixões na retórica do debate social racismo / anti-racismo. É também de grande impacto icônico a imagem do cão branco coberto do vermelho vivo do sangue de suas vítimas. O choque também se faz presente no contraste entre o comportamento e o olhar carinhosos que o cão dedica à sua dona e aqueles que ele lança aos alvos de seus ataques. A idéia é: a barbárie se infiltra disfarçadamente no seio de qualquer lar, em quaisquer relações, conquistando os cidadãos mais “mansos”.
Mas o momento alto deste filme é a sequência que mostra a segunda fuga do cão branco. Vemos na tela uma esquina: do lado direito (em uma rua), está o cachorro fuçando umas latas de lixo; do lado esquerdo (na outra rua), vê-se uma criança pequena (negra) enchendo um balão. Então, o cão continua andando, em direção à esquina, e no momento exato em que ele a cruza, a mãe do menino sai de uma loja, pega-o no colo e volta para dentro, tudo muito naturalmente, sem dar pela presença do cão (nem este os percebe). Mais à frente, o pastor alemão se deparará com um homem (da etnia-alvo) e começará imediatamente a perseguição. O homem corre para dentro de uma igreja (católica), mas em vão.
O cachorro o estraçalha na frente do altar – enquanto a câmera mostra em travelling as imagens santas e ouvimos os gritos do homem misturados aos rosnados do bicho. Após, num jogo de campo / contra-campo, vemos um primeiro plano do cão (a mandíbula ofegante repleta de sangue) a olhar para algo por cima do altar, que é (mudança de plano) um vitral com a imagem de São Francisco de Assis cercado de animais (!); volta-se ao cachorro, e vemo-lo virar com desprezo a cabeça e continuar o seu caminho. Com esta grande ironia, não é de todo incompreensível que o filme seja censurado. E já que falamos em ironia, é interessante analisar o como Samuel Fuller direciona as suas provocações ao próprio cinema.
Na cena em que o cachorro ataca a parceira de Julie, durante uma filmagem em que ambas contracenam, tem-se primeiramente um plano-sequência que acompanha – pela frente – o diretor do filme chegando ao set. Ele caminha alguns metros em linha reta, e vemo-lo ofuscado pela luz de um projetor que está por trás. Quando chega ao centro da ação (ainda no mesmo plano, com leves movimentos de câmera buscando o reenquadramento), o cameraman vigorosamente o repreende, dizendo que não dá para trabalhar com o telão em que está sendo projetada a paisagem que servirá de fundo à ação representada (em Veneza), pois está “fora de sincronia” e fica “piscando” o tempo todo.
À impaciência e nervosismo do operador, o sereno cineasta responde, não sem alguma dose de gracejo, que aquilo é na verdade algo “artístico”, como se diz na França, e “formidable”, como diz Truffaut. Na cova do leão do cinema industrial norte-americano (mesmo se tratando de uma fita de baixo orçamento), Sam Fuller brinca com as oposições de linguagem entre a decupagem tradicional dos EUA – que busca sempre a verossimilhança, o efeito de realidade –, e o estilo cinematográfico mais “europeu” (particularmente em Godard) – no qual o cinema se afirma como discurso, construído artificialmente, revelando ao espectador as suas entranhas e procurando criticar, através da não-obediência, a gramática dominante do cinema industrial.
Woody Allen fará a mesma brincadeira em Dirigindo no Escuro (“Hollywood Ending”, EUA, 2002), colocando-a de modo central no enredo do filme. Agora, a provocação metalingüística mais deliciosa em Cão Branco está na inflamada reclamação do Sr. Carruthers (o qual, como vimos, é um prestigioso treinador de animais para filmes), que lamenta inconsolável o fato de um “robô” ter ocupado o lugar de um animal no cinema. Lugar que se trata, mais exatamente, de uma função: o elemento com o qual as crianças vão se identificar, que disparará toda uma série de merchandising e que fará a arte e os lucros dos treinadores e domadores.
O robô do qual o velho fala é nada menos do que o fofo R2-D2, da série Star Wars (1977-2005, dir.: George Lucas). O Sr. Carruthers mantém, em seu escritório, um pôster de R2-D2, que ele usa como alvo para dardos, descarregando toda a sua raiva impotente. É extremamente tentador admitir que tal discurso venha do romantismo incondicional do próprio Fuller. O mais curioso é tomar para pensar um trecho da fala do velho treinador, dizendo à jovem Julie que dali a vinte e cinco anos já não se veria mais animal nenhum nos filmes, coroando a decadência do cinema (de um estilo, de uma tradição de cinema, entenda-se bem). Vejamos: 1982 + 25 = 2007.
Do nascimento dos “blockbusters” (justamente com o Lucas de Guerra nas Estrelas) até o caso muito especial de Avatar (2010, dir.: James Cameron), parece relativamente confirmada a profecia do Sr. Carruthres, não? É com nostalgia que nos lembramos de filmes como As Aventuras de Chatran (“Koneko Monogatari”, Japão, 1986, dir.: Masanori Hata) e A Incrível Jornada (“Homeward Bound: The Incredible Journey”, EUA, 1993, dir.: Duwayne Dunham), que parecem ter-se enfiado debaixo da mesa com o rabo por entre as pernas, hoje em dia. Enfim, White Dog existia no Brasil em VHS, lá pelos idos perdidos dos anos 80. Em DVD, não há qualquer sinal. Mas, com o lançamento de Capacete de Aço e o relançamento de Paixões Que Alucinam, quem sabe?