Filme exibido na 32ª Mostra de Cinema de São Paulo.
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Isto não é um filme. Isto é uma experiência. Pouquíssimas vezes eu sentira antes o poder do cinema, nos recônditos mais profundos de meu corpo e de minha alma, alterando meu estado de consciência e minhas sensações físicas (visão, audição, etc) de muitas maneiras, sutis e maliciosas ao mesmo tempo, maneiras um tanto quanto vagas, mas com a certeza de algo que está lá, de fato. É difícil descrever o fenômeno, mas garanto que se trata de algo transformador, transfigurador, epifânico. Bioscópio (Índia, 2008, dir.: K. M. Madhusudhanan) é uma experiência estética, lisérgica e mística – a um só tempo. Eu nunca tinha visto antes um filme indiano (será que todos são assim?), tampouco sei de quem se trata Madhusudhanan; mas a sua câmera, o seu olhar...
São dotados de um entusiasmo, no sentido etimológico (grego antigo) da palavra: o artista aqui é possuído por alguma divindade, que lhe revela e o faz revelar a nós realidades escondidas por trás do véu da nossa própria realidade – que, no entanto, trata-se dela mesma. Assim como o poeta-profeta das épocas em que os velhos mitos ainda recebiam alguma credibilidade. Bioscópio é um filme raríssimo. Pode-se dar valor a ele ou não, mas deve-se saber reconhecer esse fato. Se for para tentar estabelecer a genética de Bioscópio, teremos de colocar à mesa a linha cinematográfica que se inicia com Georges Méliès, conquista suas obras-primas em Carl T. Dreyer e Jean Vigo, e segue com grande força por Píer Paolo Pasolini, Andrei Tarkovski, Stanley Kubrick, Francis Ford Coppola e David Lynch.
Trata-se do cinema de poesia. Um cinema que se utiliza do surreal, do bizarro, do processo de estranhamento (no sentido freudiano) apenas para desvendar melhor as realidades interiores (subjetivas), unindo-as dialeticamente com as realidades exteriores e, com isso, alcançando absolutos e totalizações transcendentes. Para boa parte do público contemporâneo (inclusive os mais “críticos”), isso tudo parecerá besteira ou perda de tempo. Mas, para quem estuda (e valoriza) as bases mitológicas da cultura humana, este filme ganhará a aura de uma relíquia sagrada, um objeto de culto, uma obra de arte no sentido mais puro da palavra. É um cinema meditativo, de ritmo lento e com uma incrível volúpia do olhar, uma curiosidade do olhar, um olhar de libido e fé ao mesmo tempo: no plano mítico em que o filme trabalha, todas essas oposições se desfazem.
A cosmo-visão, que carrega e expressa uma espécie de “materialismo religioso” (Alfredo Bosi sobre a literatura de Guimarães Rosa), panteísta: trata-se de um filme ambicioso, mas no sentido de uma cultura que já desapareceu – pelo menos, do nosso ocidente “iluminista”. Quanto ao caráter meditativo, o filme de Madhusudhanan lembra bastante o cinema do russo Tarkovski (Andrei Rublev, Solaris, O Espelho): inclusive na temática metafísica e na das “questões de família”. Filmes assim são sempre difíceis de serem compreendidos e apreciados, ainda mais à nossa sensibilidade pós-moderna pouco afeita a questões “metafísicas”. Um exemplo disso são as (poucas) sinopses de Bioscópio que circulam por aí. É um daqueles filmes praticamente impossíveis de se resumir – sem que se deixem de lado aspectos importantíssimos da experiência que eles proporcionam ao espectador.
A história é mais ou menos o seguinte. Um homem simples (mas de uma família com boa estabilidade financeira), chamado Diwakaran, assiste a uma exibição do “bioscópio” (o próprio nome já é sugestivo: olhar a vida), empreendida por um francês chamado Dupont, em viagem pela Índia. Isso nos anos de 1920. O bioscópio não passa de um velho projetor de filmes, à manivela. Diwakaran fica tão impressionado que compra o aparelho e passa a exibir os filmes ele mesmo, armando e desarmando a sua tenda itinerante. As reações que o cinema provoca naquelas pessoas, que vêem pela primeira vez as imagens em movimento, é incrível. Reside aí o poder mágico do primeiro cinema, principalmente quando se trata das primeiras produções indianas, focalizadas nos mitos religiosos. É impagável ver as pessoas testemunhando na tela a “verdade” de suas crenças. Eis o cinema da epifania.
De resto, o bioscópio exibe velhos clássicos como Intolerância (1916), de D. W. Griffith, e O Gabinete do Dr. Caligari (1919), de Robert Wiene. Eis uma das formas como este filme revela sua paixão pelo cinema, meditando em cima de suas primeiras obras-primas. O bioscópio logo vira assunto (e polêmica) popular: as pessoas enxergam-no como algo sobrenatural – ou divino ou demoníaco. Enquanto isso, a irmã de Diwakaran definha em casa lentamente, presa a uma cama por doença que não se consegue descobrir ou curar; apenas se sabe que ela a teria adquirido após ver o cadáver de um europeu na praia, dez anos antes – aliás, a imagem desse cadáver é um refrão visual de grande impacto no filme. O pai passa a acreditar que o mal misterioso é uma maldição causada pelo bioscópio e exige que o filho se livre da máquina diabólica.
Diwakaran se encontrará, então, em um terrível dilema. Tanto quanto – ou mais importante do que – esta história é o modo como ela é filmada. A mise em scène, a fotografia, são de um rigor pictórico como poucas vezes se vê na Sétima Arte. Falar em fotogenia é pouco. Cada imagem do filme parece que é pintada à mão: o senso de composição, de equilíbrio, de linhas de força e tensão, a perspectiva (lembrando o valor que a profundidade de campo possui para a arte do cinema), a harmonia das cores, do claro-escuro, das atmosferas. Tudo aqui é um apelo quase psicodélico à visão. Até mesmo os contornos do alfabeto sânscrito em faixas e cartazes ganham uma aura impressionista, dotados que são de uma vida, de uma alma. A alma das coisas: poucos pintores a captaram. Decididamente, não é à toa que o filme usa como epígrafe uma frase dita por Paul Cezánne: “Olhem para esta montanha, um dia isto foi fogo?”
Madhusudhanan filma com a fascinação dos pioneiros nas imagens em movimento. E transmite ao espectador essa fascinação de coração aberto: nada se perde pelo caminho. Querendo ou não, a reação do espectador de Bioscópio, hoje, será inacreditavelmente análoga à reação das platéias dos primeiros filmes, dos próprios filmes mostrados dentro de Bioscópio. Poucos filmes nos fazem olhar para a tela como da primeira vez (seja da primeira vez em nossas vidas individuais, seja da primeira vez que o ser humano tomou contato com o fenômeno do cinematógrafo). Bioscópio promove o resgate do cinema em seu estado mais essencial. Faz-nos lembrar e sentir o entusiasmo com que os primeiros teóricos da Sétima Arte discutiam o “cinema puro”: se os filmes deveriam contar uma história dramaticamente – e com isso prestar tributos à literatura e ao teatro – ou se deveriam investir no “específico” da linguagem cinematográfica e trabalhar apenas com as impressões causadas pelas imagens, per si, no público. O dilema continua pertinente.
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Isto não é um filme. Isto é uma experiência. Pouquíssimas vezes eu sentira antes o poder do cinema, nos recônditos mais profundos de meu corpo e de minha alma, alterando meu estado de consciência e minhas sensações físicas (visão, audição, etc) de muitas maneiras, sutis e maliciosas ao mesmo tempo, maneiras um tanto quanto vagas, mas com a certeza de algo que está lá, de fato. É difícil descrever o fenômeno, mas garanto que se trata de algo transformador, transfigurador, epifânico. Bioscópio (Índia, 2008, dir.: K. M. Madhusudhanan) é uma experiência estética, lisérgica e mística – a um só tempo. Eu nunca tinha visto antes um filme indiano (será que todos são assim?), tampouco sei de quem se trata Madhusudhanan; mas a sua câmera, o seu olhar...
São dotados de um entusiasmo, no sentido etimológico (grego antigo) da palavra: o artista aqui é possuído por alguma divindade, que lhe revela e o faz revelar a nós realidades escondidas por trás do véu da nossa própria realidade – que, no entanto, trata-se dela mesma. Assim como o poeta-profeta das épocas em que os velhos mitos ainda recebiam alguma credibilidade. Bioscópio é um filme raríssimo. Pode-se dar valor a ele ou não, mas deve-se saber reconhecer esse fato. Se for para tentar estabelecer a genética de Bioscópio, teremos de colocar à mesa a linha cinematográfica que se inicia com Georges Méliès, conquista suas obras-primas em Carl T. Dreyer e Jean Vigo, e segue com grande força por Píer Paolo Pasolini, Andrei Tarkovski, Stanley Kubrick, Francis Ford Coppola e David Lynch.
Trata-se do cinema de poesia. Um cinema que se utiliza do surreal, do bizarro, do processo de estranhamento (no sentido freudiano) apenas para desvendar melhor as realidades interiores (subjetivas), unindo-as dialeticamente com as realidades exteriores e, com isso, alcançando absolutos e totalizações transcendentes. Para boa parte do público contemporâneo (inclusive os mais “críticos”), isso tudo parecerá besteira ou perda de tempo. Mas, para quem estuda (e valoriza) as bases mitológicas da cultura humana, este filme ganhará a aura de uma relíquia sagrada, um objeto de culto, uma obra de arte no sentido mais puro da palavra. É um cinema meditativo, de ritmo lento e com uma incrível volúpia do olhar, uma curiosidade do olhar, um olhar de libido e fé ao mesmo tempo: no plano mítico em que o filme trabalha, todas essas oposições se desfazem.
A cosmo-visão, que carrega e expressa uma espécie de “materialismo religioso” (Alfredo Bosi sobre a literatura de Guimarães Rosa), panteísta: trata-se de um filme ambicioso, mas no sentido de uma cultura que já desapareceu – pelo menos, do nosso ocidente “iluminista”. Quanto ao caráter meditativo, o filme de Madhusudhanan lembra bastante o cinema do russo Tarkovski (Andrei Rublev, Solaris, O Espelho): inclusive na temática metafísica e na das “questões de família”. Filmes assim são sempre difíceis de serem compreendidos e apreciados, ainda mais à nossa sensibilidade pós-moderna pouco afeita a questões “metafísicas”. Um exemplo disso são as (poucas) sinopses de Bioscópio que circulam por aí. É um daqueles filmes praticamente impossíveis de se resumir – sem que se deixem de lado aspectos importantíssimos da experiência que eles proporcionam ao espectador.
A história é mais ou menos o seguinte. Um homem simples (mas de uma família com boa estabilidade financeira), chamado Diwakaran, assiste a uma exibição do “bioscópio” (o próprio nome já é sugestivo: olhar a vida), empreendida por um francês chamado Dupont, em viagem pela Índia. Isso nos anos de 1920. O bioscópio não passa de um velho projetor de filmes, à manivela. Diwakaran fica tão impressionado que compra o aparelho e passa a exibir os filmes ele mesmo, armando e desarmando a sua tenda itinerante. As reações que o cinema provoca naquelas pessoas, que vêem pela primeira vez as imagens em movimento, é incrível. Reside aí o poder mágico do primeiro cinema, principalmente quando se trata das primeiras produções indianas, focalizadas nos mitos religiosos. É impagável ver as pessoas testemunhando na tela a “verdade” de suas crenças. Eis o cinema da epifania.
De resto, o bioscópio exibe velhos clássicos como Intolerância (1916), de D. W. Griffith, e O Gabinete do Dr. Caligari (1919), de Robert Wiene. Eis uma das formas como este filme revela sua paixão pelo cinema, meditando em cima de suas primeiras obras-primas. O bioscópio logo vira assunto (e polêmica) popular: as pessoas enxergam-no como algo sobrenatural – ou divino ou demoníaco. Enquanto isso, a irmã de Diwakaran definha em casa lentamente, presa a uma cama por doença que não se consegue descobrir ou curar; apenas se sabe que ela a teria adquirido após ver o cadáver de um europeu na praia, dez anos antes – aliás, a imagem desse cadáver é um refrão visual de grande impacto no filme. O pai passa a acreditar que o mal misterioso é uma maldição causada pelo bioscópio e exige que o filho se livre da máquina diabólica.
Diwakaran se encontrará, então, em um terrível dilema. Tanto quanto – ou mais importante do que – esta história é o modo como ela é filmada. A mise em scène, a fotografia, são de um rigor pictórico como poucas vezes se vê na Sétima Arte. Falar em fotogenia é pouco. Cada imagem do filme parece que é pintada à mão: o senso de composição, de equilíbrio, de linhas de força e tensão, a perspectiva (lembrando o valor que a profundidade de campo possui para a arte do cinema), a harmonia das cores, do claro-escuro, das atmosferas. Tudo aqui é um apelo quase psicodélico à visão. Até mesmo os contornos do alfabeto sânscrito em faixas e cartazes ganham uma aura impressionista, dotados que são de uma vida, de uma alma. A alma das coisas: poucos pintores a captaram. Decididamente, não é à toa que o filme usa como epígrafe uma frase dita por Paul Cezánne: “Olhem para esta montanha, um dia isto foi fogo?”
Madhusudhanan filma com a fascinação dos pioneiros nas imagens em movimento. E transmite ao espectador essa fascinação de coração aberto: nada se perde pelo caminho. Querendo ou não, a reação do espectador de Bioscópio, hoje, será inacreditavelmente análoga à reação das platéias dos primeiros filmes, dos próprios filmes mostrados dentro de Bioscópio. Poucos filmes nos fazem olhar para a tela como da primeira vez (seja da primeira vez em nossas vidas individuais, seja da primeira vez que o ser humano tomou contato com o fenômeno do cinematógrafo). Bioscópio promove o resgate do cinema em seu estado mais essencial. Faz-nos lembrar e sentir o entusiasmo com que os primeiros teóricos da Sétima Arte discutiam o “cinema puro”: se os filmes deveriam contar uma história dramaticamente – e com isso prestar tributos à literatura e ao teatro – ou se deveriam investir no “específico” da linguagem cinematográfica e trabalhar apenas com as impressões causadas pelas imagens, per si, no público. O dilema continua pertinente.
Um comentário:
Evohé, André!
É uma pena eu não ter visto esse filme... lembro até que passou ano Olido, 50 centavos. Parece ótimo. Já teu texto, não sei se porque gostou mesmo do filme, está mais do que ótimo. Parabéns. Li outros textos daqui agora; você está acertando mesmo a mão e, principalmente, o olho.
Abreijos textuais
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