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quinta-feira, janeiro 31, 2008

4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias


Uma imagem forte num mundo fraco, frágil; uma imagem tépida, esfriando vagarosamente num mundo gelado; uma imagem de pura cor num mundo descolorido, acinzentado; uma imagem do novo num mundo velho e desgastado; uma imagem tão pequena nesta “terra de ferocidades excepcionais” (no dizer do poeta Manuel Bandeira); uma imagem de infância num mundo demais adulto; uma imagem de inocência (a única) num mundo culpado; uma imagem do ingênuo no mundo da malícia; uma imagem de promessa, de esperança, num mundo descrente e desacreditado. A imagem de um feto abortado, no chão de um banheiro de hotel.

Um feto vomitado, defecado, mijado, sangrado; um corpo estranho, uma doença, um fluido corporal, não mais que o sub-produto de uma necessidade fisiológica da mulher. Não, não é nem de longe o bendito fruto do vosso ventre. A imagem do futuro, mas de um futuro do pretérito. Hipotético. Quando muito, condicional. A imagem do imaculado, indescritivelmente violentado. A imagem da vida, mas de uma vida natimorta. Nati-morta... Que palavra forte, não?

A imagem deste feto, demorada como todas as imagens do filme, é a imagem arquetípica do corpo estranho. Tal imagem se destaca tanto do resto das imagens do filme, que é como se fosse expelida – abortada por ele. Tal como o bebê que é despejado do corpo de sua mãe. Uma imagem assim, despejada na tela dessa maneira, é um grito no meio de um filme de resto calado. O grito que aquele projeto inacabado de ser humano jamais dará. Este feto e a sua imagem são o único ponto de “maximalismo” num universo de infinito minimalismo, num filme tão esteticamente minimalista que provoca sono no espectador. Muito sono. Mas ele acorda com a imagem do feto. Quanto a este, não se pode dizer o mesmo.

O filme inteiro é a imagem do cotidiano. Ele começa e termina com o cotidiano, com o banal. Mas este banal foi, é e continuará a ser corroído por um elemento de bizarro (um medo? Uma dúvida? Um erro? Um remorso? – uma gravidez indesejada?), por mais que o cotidiano se esforce em ser e parecer cotidiano. Algo muda. E muda para sempre. De onde vem esta mudança? De um erro. Apenas um único e simples erro. Mas um erro do qual nascerão outros e mais complicados erros – um deles será abortado, numa tentativa precária e desesperada de se corrigir, desfazer e esquecer o erro original. Ah, se isso desse certo...

quarta-feira, janeiro 30, 2008

Shaft


“Who's the black private dick
That's a sex machine to all the chicks?
SHAFT!
Ya damn right!

Who is the man that would risk his neck
For his brother man?
SHAFT!
Can you dig it?

Who's the cat that won't cop out
When there's danger all about?
SHAFT!
Right On!

They say this cat Shaft is a bad mother
SHUT YOUR MOUTH!
I'm talkin' 'bout Shaft.
THEN WE CAN DIG IT!

He's a complicated man
But no one understands him but his woman
JOHN SHAFT!”

Isaac Hayes

SHAFT opening scene (1971)

"Respeito é pra quem tem, pra quem tem, pra quem tem..." Sabotage

terça-feira, janeiro 29, 2008

O Hospedeiro


A despeito de todo o recheio do filme que é muito, muito interessante, O Hospedeiro (“Gwoemul”, Coréia do Sul, 2006, dir.: Joon-ho Bong) pode ser perfeitamente resumido à cena de abertura e à de encerramento. Estão ali o verdadeiro tema e a mensagem real desta obra surpreendente em muitos, muitos aspectos. Principalmente na cena final, que é deliciosa, a chave de ouro do soneto. Só ficou faltando aquela imagem se metamorfosear numa voz a murmurar desdenhosamente: “Fuck USA!” Sim, eis a verdadeira ameaça. Não que a fera à lá Godzilla que faz os seus tantos estragos no filme seja uma “metáfora” para o monstro da “mão peluda” (no dizer do arlequim atualmente a ocupar o trono da Venezuela). Este filme, graças a Deus, não é tão idiota assim. As relações simbólicas aqui são mais elaboradas (e mais de acordo com a realidade dos fatos) e sutis, e ainda assim a fábula mantém uma clareza e coerência admiráveis.

Como sugestão a um início de interpretação, aí vai: Gwoemul é uma ameaça real, que vale por si mesma – a não ser que lhe atribuamos a velha simbologia do poder da natureza, maculada pelo homem, que se volta contra ele, numa encarnação teriomórfica (com forma animalesca). No entanto, independente de qualquer coisa, o monstro é um mal (repare que eu não estou dizendo que ele seja “o” mal). Existem muitos males neste mundo, que são males de verdade – e fodam-se os intelectualóides pueris ou assanhados que querem relativizar todos os valores o tempo todo. Osama Bin Laden é mau, suas ações são más, não se esqueçam disso, crianças. Mas, apesar de tudo, de onde é que vêm certos males muito maldosos? Eles são conseqüência do quê? Quem é que os cria, querendo ou não? (Na verdade, sem querer querendo). E, principalmente, quem é que só faz cagadas nas tentativas de “consertar” esses males? Alguém aí disse “USA”? Bom menino! (Ou boa menina!)

Gwoemul nasce das mesmas forças desdenhosas que também com muito desdém atropelarão as vítimas mais imediatas deste monstro (fuck Corea!) na tentativa incompetente e desastrada de destruí-lo (e também destruir uma outra ameaça ligada ao monstro, ameaça esta invisível – em mais de um sentido e com mais de uma causa). Nada mais coerente, então, do que o grande “idiota” coreano desdenhar dessas mesmas “forças” (fuck USA!). Quem é que se parece mais com um idiota: o coreano loiro ou o americano estrábico? Este filme é muito, muito escarnecedor. Nem Michael Moore, nem Sacha Baron Cohen (com o seu Borat) conseguiram zuar, aloprar os EUA de uma maneira tão contundente e ao mesmo tempo tão sutil, tão sublime. Esta é a inteligência de O Hospedeiro, uma crítica do cenário geopolítico e da política externa estadudinense pós-11 de Setembro que possui um QI muito, mas muito mais alto do que os manjados críticos de plantão.

E como se não bastasse, é um grande filme de monstro. Com efeitos especiais de ponta (devem ter custado muito caro) que são muito bem aproveitados em cenas filmadas de acordo com o melhor da arte cinematográfica. Só a seqüência do ataque inicial do monstro já vale por muitos e muitos filmes hollywoodianos inteiros do mesmo gênero. O monstro, aliás, é sempre filmado do ponto de vista humano, do ponto de vista das testemunhas e vítimas dos ataques. E filmar uma catástrofe do ponto de vista das pessoas não significa apenas colocar uma câmera trepidante como se estivesse no ombro de alguém que corresse perdido e em pânico no meio da merda toda, juntando os planos-relâmpago captados numa montagem também histérica na qual não se vê ou se distingue coisa alguma (ufa!). É precisamente isto o que muitos diretores de Hollywood não percebem.

Já o nosso grande amigo Joon-ho Bong mostra as coisas com uma clarividência quase zen. Por exemplo, são maravilhosos os planos gerais que captam – do alto – o monstro gigante no meio de um parque, com todas as pessoas correndo pra lá e pra cá em volta. Isto também é filmar do ponto de vista das pessoas, pois tal imagem está identificada ao olhar dos passageiros de um trem de metrô que passa pelo “elevado” em frente ao parque justamente naquele momento. Enfim, misturando humor e drama de um modo que muitos ocidentais não vão compreender (os coreanos podem parecer meio tolos, meio “naïf” – ingênuos, infantis – tanto no rir quanto no chorar), numa história de ficção científica e de terror muito séria, que utiliza os melhores clichês do gênero (a sátira do filme não incide sobre o próprio cinema), e ainda por cima, com uma mensagem política interessante e transmitida de uma maneira também muito interessante (com fina ironia), O Hospedeiro é uma fita única, com um frescor que atualmente só poderia vir do Oriente mesmo.

segunda-feira, janeiro 28, 2008

O Gângster


O Gângster (“American Gangster”, EUA, 2007) segue muito bem a linha das melhores fitas “de gângster” dos Estados Unidos. Esta é a riqueza (pois não é todo mundo que tem um talento tão maneirista) e o limite de Ridley Scott (pois não vai além do maneirismo: ou seja, da ótima – mas banal repetição – de velhas – mas interessantes fórmulas). Não obstante, é a melhor produção do diretor desde Os Vigaristas (2003). O filme acompanha a ascensão e queda do chefão do tráfico Frank Lucas (o ótimo Denzel Washington), que, com muito talento e “visão”, domina “a parada” nos violentos subúrbios de Nova Iorque (Harlem, Bronx, Brooklin, Nova Jersey) na passagem dos anos 60 para os 70. Trata-se de uma história real. A trajetória de Frank é narrada em paralelo com a do policial e aspirante a advogado Richie Roberts (Russel Crowe), um dos raros tiras honestos da cidade (e ele é muito honesto mesmo).

Ambos representam as duas faces da moeda do famoso “sonho americano”. Mas essas faces não são simplesmente opostas; elas se relacionam de uma maneira mais dialética, como no símbolo do “yin” e do “yang”. Lucas é um homem que não faz mais do que seguir à risca os velhos ideais “americanos”: família, espírito empreendedor, pioneirismo, livre iniciativa, integridade, honestidade. É o autêntico “self-made man”. Sua mentalidade e seu discurso não entram em contradição com suas atitudes ou com seu modo de vida; pelo menos, não mais do que a mentalidade e o discurso de um grande empresário entraria em contradição com o papel efetivo que ele representa neste mundo. Assim, o “criminoso” não é um corpo estranho, um agente patológico que “corrompe” a sociedade; os “bandidos” são apenas um dos seus muitos produtos e sub-produtos.

A relação do gângster com a sociedade está mais para uma simbiose (ambos dependem um do outro) do que para o velho e manjado parasitismo. Ridley Scott procura deixar todas essas idéias bem claras, com muita didática e o entusiasmo daquele que acredita estar revelando a verdade da “caverna de Platão” para os seus habitantes. Mesmo não “puxando a sardinha” exatamente para lado nenhum (nem polícia nem bandido), este filme é, sociológica e ideologicamente (e também psicologicamente), tão primário quanto aquela “aula” que vemos em Tropa de Elite. Em termos de cinema, são interessantes os planos que mostram as ruas e as habitações do “povão” da Nova Iorque daquela época (e o próprio “povão”): Scott enfatiza aquelas imagens com o mesmo destaque que algum documentário ou alguns longas de ficção mostram as condições de vida em países de “terceiro mundo”.

Ainda na questão da simbiose, o mais interessante é o como a carreira de Frank Lucas se desenvolve em paralelo com a Guerra do Vietnã... Aqui é que vemos que os dois “lados” da América estão mais juntinhos do que muitos gostariam de admitir. Dentro disso, é curioso e significativo o destino (ou falta de destino, para sermos mais exatos) que a participação militar nesta história vai ter no final do filme. Na outra face, o policial Roberts também não é nenhum “santo”, mas faz com muita força de vontade e caráter aquilo que ele tem que fazer. Assim como Lucas. Logo, mal podemos esperar para ver o encontro destas duas forças. Para resumir, no conteúdo este filme não faz nada do que as melhores películas do gênero já não fizeram. Mas faz bem. Ridley Scott afirma mais uma vez seu caráter publicitário. “American Gangster” tem todos os elementos para vender bem.

Na forma, o comercial também é muito bem feito. Este filme segue muito de perto a linguagem do cinema que gosta de transmitir “idéias”. O elemento mais clássico desta linguagem é lógico que é a montagem. E a montagem de O Gângster é muito gostosa de se ver. Faz jus à tradição hollywoodiana de Griffith à Scorsese. O filme inteiro se constrói à base de diversos paralelos (não só os dentre Lucas e Roberts), cada um carregado de assuntos e idéias suficientes para preencher o tempo de umas duas aulas-debate completas. Como a montagem, nesta forma de cinema, estabelece a relação lógica entre planos específicos, é evidente que os planos também tenham que ser prenhes, por sua vez, de assunto e de idéia. E a realização deste fato, no filme, também é evidente.

Mas evidente até demais. O enquadramento e a montagem semanticamente pensados e praticados assumem, infelizmente, uma forma direta e clara demais. Didática, até mesmo (como já disse). O filme é de um didatismo que pode agradar e impressionar bastante adolescentes engajados ou jovens calouros universitários, mas para mim já não funciona mais. Mas, afinal, a Academia de Hollywood não adora filmes pedagógicos? Não são eles que concorrem e ganham “oscars” muitas vezes? (Este O Gângster está concorrendo este ano a melhor direção de arte e melhor atriz coadjuvante para Ruby Dee – que faz a matriarca da família Lucas, a “Mama” Lucas). Tudo neste filme fica demasiadamente claro, simples e inequívoco. Na fotografia, na montagem e no roteiro, tudo se encaixa e se resolve, cada coisa caindo como uma luva em seu devido lugar.

Não há acasos, inesperados, coisas que dão errado na história (a não ser, é lógico, aquilo que todo mundo já espera que dê errado – coisa que o filme procura deixar muito, muito claro). Também não há sublimes, não há sutilezas, não há o desconhecido, o mistério. Neste aspecto, O Gângster é praticamente uma dissertação – não por acaso, o roteiro foi baseado num artigo jornalístico (“The Return of Superfly”, escrito por Marc Jacobson – o link para o texto é http://nymag.com/nymetro/news/people/features/3649/). Este filme não tem a sutileza e a transcendência (que não precisa ser necessariamente religiosa) que vemos em Martin Scorsese (basta pegar Os Infiltrados como exemplo). Enfim, é uma obra competente e interessante, mas com um vôo um pouco baixo. My man...

sábado, janeiro 26, 2008

Paranoid Park


Só para confirmar: Gus Van Sant é um grande esteta. Talvez um dos maiores do cinema contemporâneo. E, ainda por cima, Gus Van Sant é um estilista à maneira oriental: compõe os seus planos de conjunto como se fossem verdadeiras pinturas e os planos mais fechados nos personagens – principalmente os primeiros planos – são fortemente contemplativos, meditativos até. Mas aí ele volta ao Ocidente: no fundo da “alma” que guardam os planos longos (o ritmo é lento e fluido como numa canção melancólica) percebe-se o olhar e a voz nítidos da razão, que é quem comanda de fato a apresentação fria das coisas. O cinema de Van Sant, se em princípio parece meditativo, olhando-se com atenção veremos que não é. A não ser que se pense em uma meditação filosófica comandada por uma mente afiada que dá linha para o subjetivo, mas que sempre mantém a mão da objetividade controlando o carretel, sem perder jamais o juízo e um juízo crítico – que se expressa na forma de uma sutil ironia presente em muitas cenas e planos. Mas antes que eu comece a divagar demais, voltemos ao chão do filme.

Este Paranoid Park (França / EUA, 2007) é muito bem dotado do olhar estudioso e nada condescendente do universo adolescente / jovem que se vê nas duas produções mais recentes do diretor (Last Days – 2005; Elephant – 2003). Van Sant observa o jovem, sua subjetividade, seu comportamento, sua vida e o contexto dela como o cientista o faz em relação a um rato de laboratório. Daí o juízo crítico, e até cruel em alguns casos, que aparece com mais força em alguns momentos. Mas Van Sant não pratica ciências exatas e naturais; o processo de ajuizamento em seus filmes – pelo qual também passa o espectador –, o ajuizamento que vai se ganhando dos personagens progressivamente, à medida em que se vai observando-os em sua vida cotidiana, esse ajuizamento é acima de tudo objetivo, mas sem ser completamente desprovido de uma certa dose (bem forte) de subjetividade. Mas a presença e o tratamento da subjetividade das personagens, o que irá despertar a subjetividade do espectador, não é tão forte a ponto de provocar identificações ou catarses. Eis a questão: Van Sant não faz filmes “de tese”; mas, por outro lado, está longe de qualquer expressão Romântica, digamos assim.

Quanto à forma, o cineasta trabalha com uma arte muito rica esteticamente e muito inspirada. É na inspiração estética que percebemos a paixão, a alma deste diretor. No conteúdo, nos temas, nos personagens, em todo aquele universo representado não sentimos nada do coração de Van Sant; mas vemos claramente o seu cérebro, a sua razão, as suas “idéias”. Enfim, tudo isso está presente nos seus três últimos filmes. Contudo, se formos observar outros aspectos, veremos diferenças entre Paranoid Park e a produção recente de Van Sant. Que aspectos e que diferenças? Muito simples: Paranoid Park, apesar do título e da sinopse, não é tão negativo (no que se refere ao próprio discurso do filme e às suas idéias) ou pessimista (embora esta palavra não se aplique adequadamente à discussão) quanto Os Últimos Dias e Elephant. Para o espectador, “O Parque da Paranóia” não é tão angustiante ou desesperador quanto os filmes precedentes; embora, como eles, seja carregado de melancolia e de tédio (o velho spleen, o velho blasé românticos).

Não que esta fita seja positiva, mas tem-se aqui uma afirmação maior do espírito, do espírito daquele jovem que é sempre o foco central em Van Sant (ao passo que nas “biografias” de Kurt Cobain e dos jovens psico/sociopatas de Columbine o que mais ocorre é uma negação do espírito – o suicídio de “Cobain” estaria mais para uma afirmação negativa do espírito, ou afirmação de um espírito negativo, como faziam os jovens escritores românticos suicidas). Desse modo, pela afirmação positiva do espírito de um jovem e, melhor ainda, pela afirmação e consolidação do processo e do resultado de um aprendizado por parte de tal jovem, um aprendizado doloroso, traumático, mas com conseqüências positivas no final, este Paranoid Park pode ser comparado a filmes mais “meigos” de Gus Van Sant, como Encontrando Forrester (2000) e Gênio Indomável (1997). Mas tenho certeza de que os fãs mais sorumbáticos hão de preferir as películas mais sombrias do diretor. Eles podem ficar tranqüilos: o novo filme também tem o seu lado sombrio.

Uma característica bem interessante do estilo de Van Sant, muito presente em Last Days e também neste Paranoid Park é a maneira como o próprio discurso do filme (o enquadramento fixo em primeiro plano no rosto do personagem, longo e meditativo, a câmera que acompanha o caminhar desse personagem, pela frente e pelas costas, a trilha sonora nesses momentos) incorpora, encarna e transmite com isso de uma maneira bastante especial o estado de espírito, o estado de alma do jovem foco do filme. É quase como que um monólogo interior usando os recursos cinematográficos. O espectador chega quase a adivinhar os pensamentos do personagem. É um poder muito forte de sugestão (no filme, há também um monólogo interior propriamente verbal, fazendo uma montagem sonora muito estimulante entre a voz “em off” do jovem Alex – o protagonista – com a sua própria voz “diegética”, conforme ele vai caminhando pelas ruas e falando consigo mesmo).

Se o poder de Last Days (e também de Elephant) era fazer o espectador mergulhar fundo e não sair mais do poço de angústia claustrofóbica que dominava aqueles personagens, em Paranoid Park mergulhamos em todo o tédio, a dúvida, o medo, a ansiedade do moleque Alex. Infelizmente, em outros momentos a tessitura do filme parece sugerir uma ironia muito sarcástica por parte do seu autor. Isto, para mim, é algo que me incomoda muito em Van Sant e que eu já assinalei a respeito de Last Days. Tal ironia, como já disse, está ligada àquele muito claro distanciamento objetivo que caracteriza a visão racional do diretor sobre o assunto, sobre o objeto do seu “estudo”. Paranoid Park não seria de forma alguma um filme feito por um adolescente, apesar da voz em off de Alex que narra a história. É um filme feito demasiadamente sobre um adolescente. É como, na Literatura, aqueles escritores que falam sobre pessoas “miseráveis” usando uma linguagem muito “rica” – que é, evidentemente, a linguagem do escritor que não faz parte daquele universo.

Os melhores escritores incorporam à sua própria a linguagem das personagens e também a visão de mundo das personagens. Van Sant incorpora ao seu discurso e transmite de uma maneira muito adequada o estado de alma das personagens em alguns momentos (como eu já falei), mas lhe falta incorporar a sua linguagem. Não estou dizendo que Paranoid Park devesse se parecer com um videoclipe da MTV, mas o estilo do filme é “cabeça” demais. Acredito que um adolescente como Alex dormiria durante a maior parte da exibição. Incomoda-me muito a distância entre a expressão do artista e o universo expressado. Também não estou dizendo que um filme como este deveria ser necessariamente feito por um adolescente propriamente dito, mas todo cinema (assim como toda literatura) deveria ter mais um caráter de “por” do que de “sobre” algo ou alguém. Eu preferiria que Van Sant se abrisse um pouco mais, com empatia e identificação, ao universo adolescente. Assim como está, fica muito um filme que algum professor adoraria mostrar aos seus alunos, sendo que estes odiariam ver.

Há uma cena que é o maior exemplo da ironia cruel, sarcástica, de Gus Van Sant. O jovem Alex – que se envolvera num homicídio, mas ninguém sabe ainda da sua participação – é chamado pelo alto-falante da escola, durante a aula. Ele caminha até a sala designada e, ao entrar nela, dá de cara – ao fundo, no canto esquerdo – com a mesa onde se senta o representante da universidade, toda decorada com propagandas universitária, até a parede. A câmera subjetiva fixa o olhar nesta mesa e adivinhamos o pensamento do pobre Alex: “Será que o cara da universidade está interessado em mim, e quer falar comigo, fazer alguma proposta?” Ledo engano. Logo em seguida, Alex olha para o canto direito da sala e vê uma outra mesa, na qual está sentado o detetive de polícia que irá lhe interrogar sobre o assassinato. Quase ouvimos a voz do diretor a dizer: “Olha como é miserável a vida desses jovens e como são vãos quaisquer sonhos que eles possam ter...” Contudo, para Alex, a “creative writing” será uma espécie de saída, assim como para Jamal (de Encontrando Forrester).

sexta-feira, janeiro 25, 2008

A Dama de Shangai


Cinemão noir da melhor extirpe. Pena que o gênero hoje já está desacreditado, pelo menos nas formas mais características e que acabaram virando lugar-comum. Assim, um filme como A Dama de Shangai (1947) está em nossos tempos mais para paródias no estilo de “Os Simpsons” do que para uma expressão a ser levada a sério. Falo apenas da expressão, da forma, pois em relação ao conteúdo, é lógico que os enredos “noir” jamais tenham recebido algum crédito em termos de realidade. São, por excelência, narrativas folhetinescos para o público masculino. E, como tais, são muito empolgantes. Esta pérola de Orson Welles é uma das mais interessantes realizações do gênero.

Mas ainda cabe dizer que o gênero “noir” parece dotado de uma espécie de ingenuidade – algo naïf – que se revela na simplicidade dos conteúdos e dos questionamentos morais (ou amorais, ou imorais) veiculados nessas obras. A complexidade psicológica das personagens é apenas aparente, pois, no final, tudo e todos se reduzem e se encaixam em algum lugar bem determinado. O ingênuo também se encontra nas formas de expressão, na estilística bem única dos filmes “escuros” – daí as constantes paródias. No fundo, parodia-se este gênero da mesma maneira e pelas mesmas razões com que a arte moderna muito parodiou e continua parodiando a arte romântica (basta ler as inúmeras sátiras da nossa famosa “Canção do Exílio”, do grande e puro Gonçalves Dias).

Paródia ou não, o legado de A Dama de Shangai está presente no brasileiro A Dama do Cine Shangai (Guilherme de Almeida Prado, 1988). O ultra-incensado realizador chinês Wong Kar Wai (de 2046 – Os Segredos do Amor, Amores Expressos e Amor à Flor da Pele) está preparando um “remake” do original de Welles para 2009. Parte da ingenuidade romântica desta velha fita vem do próprio diretor-gênio de Cidadão Kane. As assinaturas estilísticas de Orson Welles já constam de todas as cartilhas cinematográficas, mas isso não arranca a beleza, o efeito, a força da impressão que a criação original nos provoca, a cada vez que assistimos e assistimos novamente.

A metáfora da “crazy house” do parque de diversões abandonado, na qual foi escondido e preso o protagonista Michael O’Hara (o próprio Welles), com seus espelhos distorcidos, suas paredes e pisos que mais lembram um cenário de O Gabinete do Dr. Caligari (Welles nunca deixa de prestar tributo ao expressionismo), como simbologia do estado de confusão e atordoamento mental em que se encontra o próprio personagem – enquanto a sua voz em “off” nos explica as causas de tal confusão – pode ser simplista, explícita ou direta demais, mas precisamos dar crédito à beleza e a força significativa das imagens.

Tão simples quanto, mas com ainda mais força imagética é a famosa cena no labirinto dos espelhos (que retoma e potencializa o motif de um plano muito curto de Cidadão Kane. Aqueles espelhos, colocados uns diante dos outros, refletem até o infinito não só as imagens corporais das pessoas ali presentes, mas também os seus dramas e conflitos. Também de maneira “significativa”, os espelhos fazem com que a figura real da pessoa se perca entre as múltiplas imagens de seus reflexos. Tentando-se atirar no sujeito, acerta-se apenas um de seus muitos reflexos. De qualquer maneira, é um daqueles pedaços de filme que é legal se levar para uma sala de aula e discutir, debater, analisar coletivamente.

Orson Welles é um dos maiores diretores de todos os tempos e um dos mais didáticos, tal qual um outro grande mestre e professor da sétima arte: Alfred Hitchcock. Aliás, A Dama de Shangai é mesmo, em vários aspectos, um filme hitchcockiano. Ou será que alguns filmes do “mestre do suspense” não seriam na verdade wellesianos? O fato é que, ao se assistir a qualquer obra desses dois, percebe-se com muita clareza e ímpeto as marcas da autoria. Mas não são marcas quaisquer de autorias quaisquer (há muitos e muito diferentes autores no cinema). Orson Welles e Alfred Hitchcock se parecem mais com autores do Romantismo, os quais se colocam com toda a força do seu espírito (e também com a força da sua presença corporal) dentro de e em cada plano de seus filmes.

Se há casos em que eu (quase) consiga identificar o diretor de um filme (ao qual eu nunca assisti) apenas por ver uns trinta segundos de fita (Maestro, qual é a música?), esses casos são os do “enfant” e do “monsieur” terribles da sétima arte. A força e a ingenuidade do espírito romântico, que é ingênuo não por acreditar em valores “ingênuos” como a paz, o amor, a bondade; mas por acreditar acima de tudo em si mesmo e em suas idéias – quaisquer que sejam elas (e elas podem variar bastante, e serem bem pouco “ingênuas”). Mas ainda há um outro grande mérito para A Dama de Shangai: que é a própria “dama” em questão: Rita Hayworth. Não há Nicole Kidman ou Rachel Weisz (segundo os boatos em relação à refilmagem de Kar Wai) que se lhe compare. Mas veremos.

quinta-feira, janeiro 24, 2008

As Damas do Bois du Bologne


Não há que subestimar o poder de uma mulher desprezada. Principalmente depois que alguém disse a ela que “não há amor, apenas provas de amor”. É justamente dessas provas que trata As Damas do Bois du Bologne. Hélène é a femme fatale das mais venenosas. A maneira como ela usa tudo e todos em suas maquinações de sentimento e de ressentimento é de dar medo. Especialmente, a maneira como ela usa a pobre da Agnes. No entanto, não podemos esquecer que Hélène é uma mulher desprezada. Suas lágrimas, que só o espectador vê numa cena maravilhosamente filmada, logo no começo do filme, testemunham na defesa desta linda mulher. Falando em lágrimas, isso nos lembra de uma das marcas mais impressionantes desta fita de Robert Bresson: o olhar feminino. Da primeira à última cena, a câmera procura e fixa o olhar das mulheres, particularmente os olhares de Hélène e Agnes. E são olhares que expressam toda a complexidade das almas que há por detrás deles, todo o prazer e o sofrimento, a esperança e o desespero, a crença e a dúvida, a coragem e o medo; nem sempre ao mesmo tempo, mas em momentos variados o aspecto luminoso e o escuro da alma feminina transparecem na tela em todo o seu esplendor. Hélène e Agnes são como Salomé e Maria, Lady Macbeth e Julieta, os pólos positivo e negativo do arquétipo da anima (a figura feminina aos olhos do homem, que corresponde ao “lado feminino” da alma masculina).

Uma outra marca da grande arte deste filme são os diálogos, escritos pelo poeta e cineasta Jean Cocteau. Através deles, percebemos a rica inversão que se faz da velha e manjada simbologia das flores dadas a uma dama por seu pretendente. Aqui, as flores são acima de tudo grilhões – frágeis e fortes, sutis e violentos ao mesmo tempo – que prendem a coitada da Agnes a uma vida da qual luta tanto para se libertar e superar. Como ela mesma diz, por trás daquelas flores há “o rosto de um homem que ameaça”. O irônico é que a verdadeira ameaça está, por sua vez, por detrás desse homem – na figura de Hélène com o seu sorriso de Mona Lisa. E por trás de tal cena, vemos que tudo no filme – objetos e pessoas – é carregado de memória, de história e de intenção. As tais flores serão vistas por quem as recebe de acordo com a intenção que o receptor (Agnes) supõe que tenha o emissor (Jean); para Agnes, aquelas flores têm uma história que ela apenas imagina. Para Jean, o presente terá uma outra história, pois sua intenção é outra; e ele ainda supõe (erradamente) qual seja a intenção e a história da própria Agnes. Não há comunicação eficiente que esclareça todos os mal-entendidos que advirão daí. Pelo menos, não até que seja tarde demais (enquanto isso, Hélène sorri). Dessa forma, acaba havendo muito da história e da intenção de objetos e de pessoas (inclusive a história e a intenção de Hélène) que se furtará à percepção e ao conhecimento dos próprios personagens. O conseqüente engano é inevitável (engano que nasce, no fundo, de um engodo), daí vêm a frustração, a raiva, as atitudes agressivas, o remorso... Hélène é mais (e também menos) do que aparenta. Assim como Agnes. Assim como Jean. Assim como as flores.

terça-feira, janeiro 22, 2008

O Caçador de Pipas


“O Caçador de Pipas” é um romance simplório construído em cima das fórmulas mais descaradas do best-seller, sendo inteiramente subserviente a elas – o que é pior. No entanto, uma literatura pobre como esta pode dar filmes razoáveis, senão até mesmo bons. Por um acaso, alguém já procurou ler “D’entre les morts” antes ou depois de ver Um Corpo Que Cai? De qualquer maneira, o caso é que os sub-romances folhetinescos da contemporaneidade parecem já terem sido concebidos para (ou buscando) uma adaptação cinematográfica. Quando este “O Caçador...” ainda estava em sua primeira edição norte-americana, muito antes de se tornar um fenômeno mundial, o atual roteirista desta sua versão fílmica (David Benioff) já tinha sido contratado para a tarefa (segundo matéria da “Folha de S. Paulo”). Vemos que é bem apurado o olfato dos lobos que vivem a farejar o mercado; e eles não perdem tempo para dar o bote.

“Romances” como este orientam toda a sua técnica narrativa em vista do... visual. Mas não pense que se trata aqui dos grandes retratos impressionistas de um Marcel Proust. Muito pelo contrário. A imagética nos empreendimentos do tipo “O Caçador de Pipas” envolve apenas a apresentação dos personagens, ambientes e fatos de uma maneira precisamente cinematográfica – e com muita precisão nisto. São descrições ao mesmo tempo detalhadas e sumárias, pois se, por um lado a leitura não pode ficar “cansativa”, por outro é preciso facilitar ao máximo a imaginação do leitor: ele deve enxergar, da maneira mais clara, direta e completa possível, o que acontece e como acontece. Assim é que se faz uma leitura “cativante”. Desse modo, essa literatura “fácil” não se preocupa nem um pouco com a pertinência estética ou dramática – tampouco com a coerência – das imagens e, conseqüentemente, com a da estrutura narrativa como um todo. Tudo o que importa é a “rica” elaboração de cenas que causem um forte “efeito” no leitor.

Nas mãos de um bom diretor (ou de um diretor pelo menos competente), um filme de cinema pode fazer bom proveito disso tudo. Pode transformar a desvantagem em vantagem (seria forçar demais a barra usar os termos “defeitos” e “qualidades”). O filme O Caçador de Pipas (“The Kite Runner”, EUA, 2007) não chega a ser bom. Mas é razoável. Mais do que o livro. Esta adaptação, dirigida por Marc Forster (que vem – ou vinha – numa carreira notável, com A Última Ceia, Em Busca da Terra do Nunca, Mais Estranho do que A Ficção), enxuga muito bem o conteúdo do livro – o que não é difícil, mesmo com as suas 365 páginas. Forster e o roteirista Benioff (de Tróia) concentraram-se justamente nas passagens mais pertinentes da obra, as mais interessantes dramática e cinematograficamente – ao mesmo tempo (o escritor é bem esperto). É claro que os fãs mais fanáticos quererão ver muito mais, ou tudo; mas convenhamos...

Manteve-se a cena-mote do estupro (mas amenizada, é lógico), eliminou-se uma outra cena – assim como todos os acontecimentos subseqüentes a ela – que não era lá muito coerente (e, ainda por cima, poderia fazer com que o filme fosse menos ainda “de família”; vendo a fita como um todo, parece que a escolha maior foi em tornar a coisa o mais palatável possível para todos os gostos). Mas a melhor das escolhas parece ter sido modificar, num detalhe bem específico, os rumos de um acontecimento, que no livro não tem a menor coerência (é mais uma daquelas construções que servem mais para causar efeito e suspense do que para qualquer outra coisa). No filme, a coisa fica mais “engolível”. Falemos agora do lado ruim. Por que é que não trouxeram o grande vilão Assef, na sua aparência original de loiro e de olhos azuis, para este filme? Eu detesto esse tipo de análise “extra-textual” (que vai além da obra em si), viciada em ideologias viciadas, em paranóias, preconceitos e teorias da conspiração.

É no mínimo uma preguiça mental o crítico basear totalmente sua reflexão apenas no velho discurso de que O Caçador de Pipas seria apenas uma propaganda da doutrina Bush. Isso não é crítica de verdade. Pelo menos, não crítica de cinema. Mas há algumas coisas no filme que nos deixam com a pulga atrás da orelha. E é apenas delas que podemos falar. E falar com muito cuidado (segurança e responsabilidade são fundamentais em qualquer discurso). Quase fui embora quando vi um Assef moreno. Por que não um “sociopata” (como o autor o chama no livro) neo-nazista da velha “raça” ariana? Será que todos os muçulmanos têm que ter a mesma cara? (No livro, a mãe de Assef é alemã, daí a sua aparência). Falando em cara, e compensando este defeito de caracterização, o menino que interpreta Hassan foi muito bem escolhido. Sua aparência corresponde muito bem à descrição e o garoto ainda é um ótimo ator. Mas, como neste filme (tal o livro), nada é sem algum problema, o Hassan cinematográfico é muito mais alegre e comunicativo do que o rapaz tímido e servil do romance. Azar da coerência.

Eu tinha dito que esta película enxugava bem a história do livro. Mesmo assim, ficou muita coisa dentro do filme – o que talvez seja inevitável, uma vez que se pensa na natureza bem tradicional dos romances folhetinescos: repletos de acontecimentos e reviravoltas mirabolantes que não deixam o leitor largar o livro, às custas do aprofundamento dramático dos mesmos e do aprofundamento psicológico das personagens; o que não impede, mesmo assim, que se tente injetar na narrativa o máximo de melodrama e emotividade tendenciosa e superficial, dando um resultado desajeitado e grotesco que saltará aos olhos do leitor mais experiente. É tudo isso o que justamente acontece no filme. Não se dá tempo ou espaço para que o espectador se envolva efetivamente com aquelas pessoas e com a sua história. O que mais importa são os acontecimentos “de efeito”. A catarse não é algo que simplesmente se injete, como uma droga.

Não basta o escritor arremessar até nós uma cena com conteúdo emocional e esperar que choremos todas as lágrimas. Um autor de verdade deve construir tal cena específica em uma forma que ajude a transmitir, ela mesma, o “conteúdo”. E essa construção leva algum tempo, ocupando o quanto da narrativa for necessário para que se atinja um “efeito” de verdade. Tudo isso está nos famosos ensaios teóricos de Edgar Allan Poe. Mas parece que Khaled Housseini não os leu, e o filme também não foi capaz de resolver o problema (ainda mais que a duração “possível” de um filme é bem menor). Assim, O Caçador de Pipas (filme e livro) acaba ganhando um caráter de relato muito demasiado. Trata-se justamente daquela narrativa por demais literal que eu discuti ontem a respeito de Eu Sou A Lenda). O filme é bem dirigido, mas pouco cinematográfico (seria possível fazer mais do que isso?). Assim como o romance, este filme torna-se cansativo. É reconstituição demais, como se fosse um relatório, para pouca arte, arte sublime e gratuita.

Isso talvez revele que não adianta uma grande produtora (Paramount) contratar um bom diretor e um bom roteirista para trabalhar com um material infelizmente bastante limitado. Ninguém pode fazer milagre. Prefiro acreditar que Marc Forster continua sendo um bom e promissor cineasta. Mas que aceitou fazer O Caçador de Pipas pela grana ou pela fama. Como já disse, o filme é bem feito, é competente. Mas lhe falta alma. Justamente a alma do artista que acredita no trabalho que está fazendo.

segunda-feira, janeiro 21, 2008

Eu Sou A Lenda


Por que Eu Sou A Lenda (“I Am Legend”, EUA, 2007) é um filme que vale a pena ver? Porque, ao contrário de muitos filmes-catástrofe, a nova aventura estrelada por Will Smith é mais cinematográfica do que literal. Eu disse literal, e não “literária”. Mas o que é que isso significa? Significa que a narrativa não perde tempo explicando, seja através de imagens demasiadamente auto-explicativas, seja através do discurso de algum personagem ou narrador, tudo o que está acontecendo nos menores detalhes. O filme não se preocupa tanto com os detalhes factuais da história, quanto ele se preocupa com os detalhes dramáticos. Isso sim é uma narrativa bem construída e eficiente, seja na literatura, seja no cinema. A fita, dirigida por Francis Lawrence (de Constantine), eleva-se dessa maneira a um nível um pouco superior à da média das produções do gênero. Nela temos a descoberta da cura para o câncer, na forma de um vírus geneticamente modificado, que acaba se transformando numa praga que transforma as pessoas numa mistura dos zumbis de “Extermínio” com as criaturas de “Abismo do Medo”. Perde-se mais de 90% da humanidade. O tenente-coronel e médico Dr. Robert Neville (Will Smith) é um dos poucos sobreviventes e imunes ao contágio. No entanto, crendo-se o único homem consciente a ainda caminhar sobre a Terra, ele continua na luta para encontrar a cura, numa Nova Iorque em ruínas. Também tem um papel muito interessante nesta história a jovem Anna (a brasileira Alice Braga, vista recentemente em “Via Láctea”).

Este enredo é uma adaptação do romance sci-fi “Eu Sou A Lenda”, de Richard Matheson (publicado pela primeira vez no Brasil ano passado, graças ao iminente filme, pela Editora Novo Século). Matheson escreveu, além de romances e contos, episódios da série de TV “Além da Imaginação” e o roteiro de “O Duelo” (adaptação de um conto seu dirigida por Steven Spielberg). “I Am Legend” já ganhou duas versões para o cinema: a primeira em 1964, chamada Mortos Que Matam (“The Last Man on Earth”), com Vincent Price no papel principal; a segunda em 1971, intitulada A Última Esperança da Terra (“The Omega Man”), com Charlton Heston. Não vi nenhuma das duas e nem li o livro (mas fiquei bastante curioso e interessado em fazer tudo isso). O fato é que a epidemia dos “vampiros” (segundo a concepção de Matheson) destas obras seguramente são uma das fontes para os zumbis de George Romero, os quais, por sua vez, são fonte para todos os outros zumbis, incluindo os mais recentes de “Extermínio” (1 e 2).

O que é interessante na versão de Lawrence é que os detalhes dramáticos não são exagerados e banalizados ao nível de um melodrama barato – o que é comum em filmes-catástrofe. Eu Sou A Lenda mantém-se inteiro dentro de uma tonalidade mais sutil, com muitas coisas sendo deixadas implícitas ou apenas sugeridas. O filme não mastiga todo o alimento antes, colocando-o depois cuidadosamente na boca do espectador e ajudando-o a engolir de todos os modos possíveis. Também está longe de ser uma obra exigente, é claro, mas para o gênero já está muito bom. Os primeiros dez minutos de projeção já mostram todo esse valor. A maneira como são apresentados o protagonista, a sua vida presente (e passada) e o contexto em que tudo isso está inserido, através de elipses e de metonímias muito sábias (uma capa de revista aqui, um cartaz ali, um programa de TV gravado), aliadas a imagens de muito impacto e curiosidade (como a Nova Iorque devastada; curiosidade, no entanto, que não será completamente respondida inteiramente naquele momento, nem mesmo nos momentos subseqüentes – o que quebra a cartilha “literal” do cinemão), tudo isso já vai estimulando o espectador de um jeito especial. Aquilo que tem que ser explicado, o filme o faz usando majoritariamente imagens, as quais são sempre diegéticas (fazendo parte do universo retratado, como objetos no cenário, que é o caso aqui). Esse é o diferencial do cinema (como bem nos ensina o seu maior meste: Alfred Hitchcock) que já deveria ser mais do que banalizado, mas ainda não é.

E o filme todo vai se fazendo à base de elipses bem significativas, embora a maior delas já esteja logo no começo: saltamos da descoberta da cura do câncer para uma Nova Iorque abandonada. É juntando esses detalhes que percebemos que, como um todo, a estrutura narrativa é interessante, porque sabe escolher muito bem o que mostrar e o que esconder, o que revelar e o que manter na sombra da dúvida e da especulação, equilibrando tudo acertadamente numa balança onde o ponto de equilíbrio é o personagem e o seu drama. Afinal de contas, o foco da história não é a catástrofe em si, mas o “day after” e o como que o protagonista lidará com ele. Além disso, como não podia deixar de ser, os efeitos especiais são impressionantes, principalmente ao mostrar uma Manhattan abandonada como se todas as pessoas tivessem simplesmente desaparecido. Em tal ambiente, a solidão perturbadora de um Will Smith amigo de manequins (aqui, o filme lembra o “Náufrago” de Zemeckis), perambulando pelas ruas tomadas de mato que vai crescendo por entre as fissuras do asfalto, por bandos de veados que correm soltos, por leões e quem sabe o que mais lá houver numa situação daquelas – o que nos faz voltar ao ponto de maior interesse do filme: o fato de, mesmo sendo um “blockbuster” do cinema de Hollywood, ele ainda deixa muita coisa para a imaginação do espectador, e o melhor disso está, como já disse, nos primeiros dez minutos de fita (sem que o resto seja necessariamente decepcionante).

Enfim, Eu Sou A Lenda é interessante porque é um “blockbuster” mais sutil (o paradoxo é possível). Nem tudo é explícito, mastigado, empurrado e exagerado para “chocar” e impressionar o espectador, contrariando a tendência – quase pornográfica, à sua própria maneira – dominante nos filmes de ação / aventura / catástrofe / terror / ficção científica / policial da indústria contemporânea. Tendência essa que mostra e explica tudo e tudo às claras, diretamente, principalmente a violência. Já no novo filme de Will Smith, o enquadramento e o foco estão em outro lugar; veja a cena em que o personagem de Smith mata o... Enfim, veja o enquadramento dessa cena e entenderá o que é interessante na visão desse filme. Suspense e drama, eis a chave. Veja também o como que a câmera e a montagem são bastante estáveis ao longo de toda a fita (sem descair para a estética “24 Horas” que domina o cinemão de hoje em dia). Para um diretor que começou fazendo vídeo-clipes de Jennifer Lopez, não é nada mal; Francis Lawrence é um diretor com paciência, o que é uma ótima e rara qualidade em nossos dias. Só pra comparar, pegue-se uma determinada cena de “Duro de Matar 4”, na qual temos um curto diálogo entre dois personagens (parados de pé um diante do outro) que é filmado em uns 20 planos-relâmpago diferentes, na maioria dos quais a câmera rodando e girando e dançando... Quanto a esta “Lenda” aqui, particularmente, eu não via um “blockbuster” contemporâneo que se apegasse mais às técnicas e aos tons de um cinema mais “clássico” desde “A Guerra dos Mundos” de Spielberg. Vale a pena. Quero mais.

domingo, janeiro 20, 2008

O Enigma de Kaspar Hauser


“Em Herzog, assistimos a um extraordinário esforço para apresentar à vista imagens propriamente tácteis que caracterizem a situação dos seres “sem defesa”, e se combinem com a grande visão dos alucinados.” Gilles Deleuze, A Imagem-Tempo

Na nota de rodapé ao trecho acima, o autor cita um estudo da obra de Herzog que afirma que, em O Enigma de Kaspar Hauser, coexistem “as grandes visões oníricas e os pequenos gestos tácteis”. Essa dupla dimensão está presente em praticamente todos os planos do filme. Há, não apenas nesta, mas em todas as obras de Werner Herzog, um misticismo meditativo que se expressa na forma de um olhar demorado sobre a paisagem da Natureza (mostrada em todo o sublime de sua grandeza, o que é bem romântico) e sobre a “paisagem” do Homem: no caso de Kaspar Hauser, a cidadezinha idílica – e os seus arredores – do interior da Alemanha no começo do século XIX e os seus habitantes. O ser humano é colocado como mais um elemento que compõe o quadro da paisagem. Eis o caráter mais próprio do estilo pictórico e “táctil” de Herzog.

O Enigma de Kaspar Hauser, cuja tradução literal do título em alemão seria “Cada um por si e Deus contra todos”, é a história real de um rapaz que tinha vivido sua vida inteira, até aquele momento, trancado em um calabouço, sem contato algum com o mundo exterior ou com outros seres humanos. De repente, ele aparece numa praça pública de Nuremberg, sem saber falar e mal sabendo caminhar, carregando uma carta que seria de seu “pai” (na verdade, o homem que o criou) e que pedia que ele fosse “adotado” e incluído na sociedade civilizada. Um personagem assim, uma história dessas – real, ainda por cima – e a época em que se passa (começo do século XIX) mostram bem as preferências do diretor e o seu caráter Romântico, presentes em mais de uma de suas obras. Temos aqui o indivíduo (foco central da arte e da cultura românticas) tão isolado de tudo e de todos, e por isso mesmo tão único e diferente em sua individualidade, em sua identidade exótica, que ele acaba por chegar, paradoxalmente, aos limites da caracterização como indivíduo humano e criativo (originalidade é tudo para o espírito romântico).

Kaspar Hauser é mesmo um homem? Um animal? Ou algum tipo de vegetal ambulante? O olhar próximo e táctil de Herzog segue à risca a tradição do Romantismo alemão: um mergulho tão grande no Gênio (o indivíduo) e no Sublime (a natureza) que vai além de qualquer expressão emotiva em particular, tocando as esferas do filosófico, do mítico, do místico e do universal. Herzog vai do gesto táctil à grande visão onírica dos alucinados; e volta; e vai de novo, num constante movimento dialético. Mas o alucinado aqui não é o caso do louco patológico; para Herzog, o que interessa é o louco-iluminado, o louco-gênio do Romantismo; o “clown” no dizer do poeta Manuel Bandeira, que, sem querer querendo, tem muito a ensinar sobre nós mesmos e sobre as coisas.

Esse “clown”, enquanto enigma irresolúvel, inevitavelmente cairá no circo. O circo dos enigmas cujas tentativas de compreensão já foram abandonadas. O circo dos párias. Se já havia algo de O Gabinete do Dr. Caligari (obra fundamental do cinema alemão) na relação entre Kaspar Hauser e o seu “pai”, há mais ainda neste circo de “variedades”. Como é que se chega a este circo? Em princípio, as pessoas tentam compreender o jovem Kaspar Hauser e ensiná-lo a civilizar-se, recrutando para isso todo o desajeitado e patético esforço da Ciência e da Razão. Mas os trabalhos são vãos. Kaspar sempre lhes escorrega por entre os dedos – a cena em que ele responde ao desafio lógico do professor de matemática é magnífica. Os esforços são inúteis não porque Kaspar não fosse civilizável, mas porque o pensamento e os conceitos de todos estão por demais compartimentados em categorias muito estreitas. E Kaspar Hauser é uma afronta inconsciente a essas categorias. Nesse sentido, há um humor muito sutil, algo de ridículo e de circense (o circo também aqui se faz presente) nas “sérias” investigações que as autoridades fazem junto a Kaspar, num primeiro momento. Quer figura mais circense e burlesca do que a do escrivão? Inevitavelmente, todas as investigações falharão.

Então, o que restará a se fazer? Entregar o rapaz-enigma ao circo, que é uma forma bem peculiar de inclusão na exclusão. Ficam assim amortecidos ou mesmo anulados quaisquer impactos incômodos que Kaspar Hauser poderia continuar exercendo no consciente da comunidade. Riremos da coisa que não compreendemos, atribuindo-lhe um caráter e uma função de “clown”, para que assim esta não nos amedronte. O “clown” é extremamente ilógico, mas destituído, esvaziado de qualquer poder ameaçador. E também de qualquer sentido intrínseco. É assim que o enigma estará mais para mistério. Ou cada um por si (e Deus contra todos, o que dificilmente se perceberá). Não obstante, Kaspar Hauser se humanizará em muitos aspectos e aprenderá muitas coisas da civilização. Será adotado por um professor carinhoso e a exclusão não será completa – até mesmo diminuirá com o tempo.

Contudo, no fundo da alma, sempre ficará algo que não será processado, compreendido, adaptado e incluído (lembremos novamente que se trata de um filme Romântico). Assim, o mistério – ou a parte mais essencial dele – persistirá. No final, tal mistério se crerá resolvido, mas de um modo que também não deixa de ser espetacular / circense, na autópsia e na análise do cérebro de Kaspar Hauser. E isso apenas tornará ainda mais evidente a estupidez da matéria, cujo parco conhecimento tenta abarcar soberbamente as questões psicológicas / espirituais. É a ciência que tenta compensar nossa incompetência espiritual, e não o contrário. A imagem, bastante “táctil”, dos doutores apalpando, fatiando e virando o cérebro de Kaspar Hauser em cima da mesa é mostra disso.

sábado, janeiro 19, 2008

A culpa é do Fidel


A culpa é do Fidel? A ironia já está no título, ironia que não poupa nem direita nem esquerda, apontando a pequenez de pensamento que afeta ambos os lados. Tanto “companheiros” quanto “reacionários” são, muitas vezes, cegados por preconceitos, intolerâncias, radicalismos sectários e outras atitudes pouco dignas de orgulho. Os pais que tiram à força a filha das aulas de catecismo na escola não estariam incorrendo na mesma forma de dogmatismo que aqueles outros pais que fazem os filhos passar, queiram estes ou não, pelas sendas dos sacramentos católicos? Mas o filme A culpa é do Fidel (França / Itália, 2006), estréia na direção de Julie Gravas – filha do grande mestre do cinema político, o grego Costa Gravas – não está preocupado em discutir o “macro” contexto político em si, ao contrário dos filmes do pai, como Z (1969).

A sensibilidade da senhorita Gravas está em filtrar toda a loucura político-ideológica da Guerra Fria pelos olhos de uma menina de uns 11 anos de idade. Trata-se de Anna de la Mesa, vivida pela ótima atriz-mirim Nina Kervel-Bey – que carrega com muita competência o filme inteiro nas costas. Os seus pais, em princípio pequenos-burgueses, acabam se engajando na luta e se tornando “comunistas barbudos”. A mãe, francesa, passará a escrever um livro sobre mulheres que fizeram aborto, além de matérias “engajadas” para a revista “Marie Claire”, da qual é articulista. O pai, um espanhol de família nobre, passará a ajudar na ascensão do governo Allende no Chile, e ajudará também a irmã, que perdera o marido (comunista) na ditadura Franco. O arrependimento de não ter feito nada em relação a isso contribuirá muito para que o pai mude de vida e reveja seus conceitos.

As crianças, Anna e o seu irmãozinho François, serão pegos de muita surpresa no meio de todos esse redemoinho. Eis é o tema verdadeiro do filme: a particularidade do olhar e da experiência infantil frente aos “anos de chumbo”. Muitas fitas já trataram dessa oposição entre o universo da criança e o universo adulto em situações-limite (principalmente a guerra). Mas a diferença aqui é que tal embate não é mostrado numa chave trágica – que é o que normalmente acontece. A película tem o seu drama, é claro, mas o que predomina é a ironia. Mas não uma ironia corrosiva, trágica; e sim um humor repleto de condescendência, tanto pela criança quanto pela situação. Uma condescendência que entende que assim é que caminha a humanidade (entre avanços e tropeços por todos os lados) e que tudo faz parte, o que precisamos é entender bem as coisas e aprender a viver com elas de uma maneira saudável.

Nesse sentido, o tom do filme – tanto da narrativa quanto de sua mensagem – é algo carinhoso e reconfortante como um abraço e um bom conselho de avó. Nada fora do comum para uma história centrada na figura da criança. O melhor deste filme, que é o seu bom humor e a beleza com que mostra as situações, está ligado intrinsecamente à pureza do olhar infantil e ao choque (não violento, mas burlesco) entre este e o olhar por demais “impuro” do adulto. No entanto, nada aqui é trágico, como já disse; tudo está a serviço de um aprendizado. Uma das mais altas e difíceis lições ideológicas que um indivíduo tem que aprender em sua caminhada política está na cena em que a menina confunde solidariedade com seguir a opinião e a atitude da maioria. E isso aos 11 anos. Como esta, há muitas outras cenas, cômicas e “edificantes” ao mesmo tempo.

Em seu primeiro filme, Julie Gravas já dá mostras de muita competência cinematográfica. Em enquadramentos simples e demorados, identificando a câmera ao olhar da criança, ela capta e nos transmite o assombro que só uma criança consegue ter em relação a coisas que para nós adultos já são mais do que banais. A cena que mostra – em câmera subjetiva – Nina cercada por um grupo de “vermelhos barbudos” é muito sensibilizante e significativa nesse sentido; ou a cena em que a menina vê, pela primeira vez, o seu pai de barba – aqui temos um violento e “assustado” zoom em cima da barba. Isso nos faz pensar em como o mistério, para a criança, é muito mais misterioso do que qualquer coisa que para nós seja um “mistério”. Mas tais mistérios serão no final desvelados, pois a visão infantil é pura, ingênua, mas é uma visão em formação. E essa dimensão da formação é o que mais acaba por pesar no filme.

Não só a imagem, mas também o som (cujo volume, em algumas cenas, é elevado muito acima do normal) procura transmitir o peso, a força incompreensível, em parte fascinante em parte assustadora, com que a experiência se coloca para a criança. Isto fica patente na cena em que Nina é levada (contra a sua vontade, é lógico) a uma manifestação de rua que termina em confronto com a polícia. Esta cena, vista na tela grande do cinema, possui uma força incrível. Em DVD não será mais nada. A profundidade de campo também é trabalhada com muita consciência e criatividade. Veja a cena do “pescoço de galinha”: o plano em que Anna e sua amiguinha Cecília estão sentadas do lado de fora do gabinete da madre reitora da escola, enquanto suas mães (no plano de fundo, através de uma janela interna de vidro) discutem lá dentro a “travessura” que as meninas fizeram. Muito do espírito e das idéias do filme estão resumidos nesta cena. É isso o que acontece nos bons filmes: cada parte reproduz e consolida, à sua própria maneira, o todo.

A cena no final, em que Anna tenta reconfortar o pai, sabendo do golpe final no Chile, é muito bela e cheia de sentido: a menina finalmente entendeu o que tinha que entender, sem precisar desacreditar o que já acreditava. Entregue aos dogmatismos de direita dos avós e da antiga babá, e aos dogmatismos de esquerda dos pais, Anna acabará aprendendo por conta própria que a maior lição é pensar com a própria cabeça e tomar por si só as próprias decisões, usufruindo para isso de uma liberdade que é o mais importante de tudo. É por isso que ela acaba, no final, desiludindo-se com a escola das freiras, da qual tanto gostava, e abandonando-a. Anna, em sua paciente observação dos adultos ao redor (o “voyerismo” curioso dessa menina é uma das constantes do filme, da primeira à última cena), também aprenderá uma outra grande lição: compreender e ter empatia para com as suas aspirações e crenças, e compadecer-se com as suas frustrações, independentemente do fato de a menina concordar ou não, identificar-se ou não com tais aspirações ou crenças. É isso que dá uma profunda e sutil beleza à cena final, citada logo acima, entre Anna e o pai. São lições que todos nós deveríamos aprender.

sexta-feira, janeiro 18, 2008

A Noiva de Frankenstein


Sem comentários... Assista e aprenda!

quinta-feira, janeiro 17, 2008

Blow Up


Blow Up é um filme de passagem. A transformação interna de um sujeito que olha demais para as coisas em si mesmas – e, com muita soberba, ele crê que controla as coisas com o seu olhar de fotógrafo de modelos femininas – para um sujeito que vai passar a olhar o seu próprio olhar sobre as coisas, dentro de um angustiante processo de questionamento (das coisas) e de auto-questionamento (do seu próprio olhar). Para alguém tão vaidoso quanto este fotógrafo, é difícil abrir mão da segurança do olhar direto e claro. Ele tenta de todas as maneiras descobrir a “verdade”, mas só lhe é concedida a dúvida. Mais tarde, quando ele descobrirá alguma verdade, esta será apenas parcial. E ainda há o fato de que, sabendo ou não dos fatos, as possibilidades que este sujeito tem de agir em relação a eles é praticamente nula. Não há nada a fazer e quase nada a ver. Mas, no fundo, não importa ao filme a verdade dos fatos. O problema colocado aqui não é a incerteza em relação ao que é real e ao que não é. O problema é a insegurança do olhar.

O que interessa é o olhar que “constrói” a realidade, ainda mais na impossibilidade de uma ação concreta que interfira nela e a transforme. Eis a frustração básica do personagem: o fotógrafo que olha com volúpia e age construindo e transformando o pequeno universo de suas fotos (particularmente as fotos de modelos, e mais particularmente ainda as próprias modelos) não poderá ser mais do que testemunha casual e distante do “homicídio” no parque. Em relação a tal acontecimento, o homem com a câmera não poderá interferir, sequer olhar claramente para ele, captando e compreendendo todos os seus elementos factuais. E não haverá tecnologia capaz de ajudá-lo nesta tarefa ingrata. Por isso é que se chega ao absurdo fantástico do pedaço de foto imensamente ampliado que mostra (?) uma figura humana (?) escondida no meio dos arbustos. Mas o “rosto” desse “homem” mais parece uma mistura da granulação da imagem excessivamente ampliada com as folhas da própria vegetação. É como aquele rosto no solo de Marte. Será visto o que se quiser ver. Como num teste de Rorsarch, o sujeito verá o que ele tiver de ver ali, subjetivamente...

Assim sendo, pode-se confiar no olhar? Em que medida? Se não se confia no olhar, não se confia em si mesmo. O indivíduo, enquanto subjetividade, desmorona. E o mais interessante, neste filme de Michelangelo Antonioni, é que todas essas dúvidas e problemáticas vão surgindo e se desenvolvendo vagarosamente, com muita sutileza, “por debaixo dos panos” (para não cair no excesso de erudição de dizer “sub-repticiamente”), como que ao acaso, utilizando os “tempos mortos” da narrativa. Também aqui, temos uma passagem: como se do inconsciente ao consciente, do banal ao extraordinário que, não obstante, já se encontrava intrínseco ao banal. O extraordinário que se revela no banal, eis uma melhor definição. E é isso exatamente o que define o gênero da literatura fantástica e a obra de um dos seus principais representantes: Julio Cortázar – “Blow Up” é um conto de sua autoria, adaptado aqui pelo próprio Antonioni, que se valerá de toda a maestria da sétima arte.

O filme tem pelo menos dois momentos de grande cinema, de um uso muito significativo da estética própria do cinema. Primeiro, a montagem das fotografias que mostrariam o homicídio e que o fotógrafo prega na parede, umas ao lado da outras, para estudá-las. Ocupando todo o plano da tela que o espectador vê, as fotos vão se sucedendo, na ordem em que as colocou o personagem, e formando uma pequena cena narrativa com uma montagem especificamente cinematográfica – variando, inclusive, os diferentes tipos de planos (uns mais próximos, outros mais afastados). Dessa maneira, o olhar do personagem, identificado com o do diretor, forma um filme dentro do filme, uma história dentro da história. Segundo momento memorável: a panorâmica que acompanha, quase que em primeiro plano, a bola de tênis imaginária. Nunca o invisível foi tão visível, nunca o nada foi tanto. Esse mote pode se aplicar ao filme como um todo.

A fenomenologia do olhar, do apenas olhar (e ainda assim não captar totalmente o seu objeto) numa situação em que toda ação “motora”, toda interferência concreta é de todo impossível, é o que marca o cinema de Antonioni – mais do que a já muito discutida questão da incomunicabilidade (faço coro aqui às idéias de Gilles Deleuze em A Imagem-Tempo). Em Depois Daquele Beijo (o ridículo título em português de “Blow Up”), temos uma forte presença da ironia e do olhar distanciado do diretor – como ocorre nos filmes de Jacques Tati, mas sem a complacência humanista dele. A sessão de fotos de modelos, o show de rock dos Yardbirds (o filme é de 1966), a festa regada a drogas... percebe-se em tais cenas uma ironia muito sutil, porém, profundamente sarcástica. Ainda no espírito da ironia, podemos concluir o seguinte: Se a ação concreta é impossível e o olhar verdadeiro também o é, o que é que se pode fazer? Mergulhar numa busca vã e ensandecida mesmo assim? Afastar-se de tudo, caindo no tédio e na melancolia? Nada disso. Vamos brincar, fingir, fazer de conta que... entrando no espírito do jogo de esconde-esconde e de pega-pega que é a vida e o mundo. Vamos virar todos pantomimos.

quarta-feira, janeiro 16, 2008

Frankenstein


Sem querer deixar de lado a forte capacidade de sugestão visual que um bom texto literário possui (ainda mais se for o de uma obra do Romantismo do século XIX) e, mais importante ainda, a liberdade que o signo lingüístico “arbitrário” concede à imaginação do leitor, o fato é que, se compararmos uma obra literária com sua adaptação cinematográfica, entenderemos que ambas as “instâncias” cumprem papéis bem específicos e diferenciados – porém, complementares – na experiência artística do receptor (o leitor ou o expectador). Digamos que tanto a Literatura quanto o Cinema produzem “imprints” específicos no espírito e na memória da gente. São como que marcas que nos acompanham toda vez que pensamos em determinada obra. É claro que essas marcas e suas diferenciações não se aplicam a todo e qualquer livro ou filme. Não dá para generalizar, o que interessa aqui é discutir casos específicos.

E o caso do clássico Frankenstein (1931) é emblemático. Os conceitos visuais do romance original (escrito por Mary Shelley em 1818 e cuja edição definitiva data de 1831) são bastante determinados e fortes, principalmente os relativos à aparência da criatura-“monstro” e aos seus atributos físicos (extrema agilidade). No entanto, o filme de James Whale (que ficou como a adaptação definitiva deste clássico do terror romântico) deixa de lado praticamente todos os aspectos imagéticos do romance e cria os seus próprios. Assim, em relação ao filme, o romance Frankenstein vale “somente” pelo conteúdo ideológico (e ainda assim isso é questionável, pois o filme toma várias liberdades em relação ao roteiro, aos personagens e à própria mensagem original). Por sua vez, a película de Whale criou imagens e conceitos imagéticos que ficaram como definitivos quando se pensa em e se lembra do monstro Frankenstein, além de continuarem influenciando o gênero do terror no cinema até hoje.

No aspecto literário, a história do Dr. Frankenstein é uma grande fábula do mal-estar na civilização industrial: trata do homem que não sabe lidar responsavelmente com a sua própria criação – assim como com todas as suas mais diversas e inesperadas conseqüências (o poder de cálculo da ciência jamais abarcará todas as variantes da experiência factual); desse modo, o “Adão” do homem vira um problema, e um grande problema. Expulsando esse novo e grotesco Adão do jardim do éden industrial (criação também humana), o homem acaba expulsando-se também a si próprio, pois está mais atracado a sua criatura do que gostaria de pensar. Eis a suprema ironia do homem-deus. Um deus cuja soberba só se compara à sua incompetência, tudo nivelado na tabula rasa do ridículo. É a grande comédia humana: trágica, dramática, angustiante, melancólica, etc.

Uma vez que já se cometeu esse pecado original (o que nunca deveria ocorrer em hipótese alguma), qualquer solução que se tente dar às suas conseqüências apenas incorrerá em outras terríveis conseqüências. O problema não pode ser a solução para o próprio problema (ainda que seja um tipo “diferente” de problema). Assim é que se torna absurda e ridícula a “caça às bruxas” que se promove para tentar buscar e punir o “monstro assassino”. E quantas vezes não vimos e continuamos testemunhando situações assim na história humana? Osama Bin Laden talvez seja o maior “Frankenstein” do nosso mundo real e contemporâneo. Ainda no campo semântico da violência, o filme Laranja Mecânica (1971, Stanley Kubrick) também é uma fábula “frankensteiniana”. É trágico, mas não deixa de ser irônico.

No aspecto cinematográfico, o monstro “zumbi”, com cabeça quadrada e pregos no pescoço, é a marca registrada que já entrou para o inconsciente coletivo. Mas não responsabilizemos apenas o diretor. Tal “marca registrada” responde por um nome: Boris Karloff, ator clássico dos clássicos do horror da era de ouro de Hollywood. O design do cenário da torre-laboratório do Dr. Frankenstein também pede uma atenção toda especial. Nesse espaço, predominam linhas de ângulos bastante agudos e assimétricos (paredes e janelas), o que é uma herança do expressionismo alemão – em especial o clássico também “frankensteiniano” de O Gabinete do Dr. Caligari (1919, Robert Wiene). Já virou lugar-comum dizer que a estrutura de tal cenário sugere a estrutura psíquica do personagem que é foco da história. Mas aqui, não é apenas a arquitetura “muito louca” que representa a “loucura” do doutor.

A aguda verticalidade dessa torre e o papel que ela tem no filme transformam-na numa impressionante catedral profana (é redundante aplicar o adjetivo “impressionante” ao substantivo “catedral”). Mais do que profana, a catedral positivista do Dr. Frankenstein é herética. Ela é o farol de toda a soberba pueril da ciência. Ciência, entretanto, submetida aos poderes de um céu que se crê como apenas “fenômeno da natureza” (os raios da tempestade, canalizados pelas máquinas elétricas, que darão “vida” à criatura). O cientista, inflado e cego de vaidade e de orgulho, escarnece de Deus (chame-se aqui de “Deus” o que se quiser: o acaso, a natureza incontrolável e misteriosa, ou o “Criador” mesmo), sem perceber que nunca se escapa aos seus domínios. O resultado dessa história já estamos carecas de saber.

terça-feira, janeiro 15, 2008

Manhattan


Eu também quero viver uma rapsódia - em azul, preto e branco - na Big Apple... Uma rapsódia de amores disfuncionais, só por sacanagem ou por algo a mais... Amores da carne e do espírito, bem ou mal comportados... Uma rapsódia digna de todos os lugares comuns de encontros e desencontros, mas decorados com muita graça...

segunda-feira, janeiro 14, 2008

Woyzeck


Woyzeck é um filme perturbador. Mas não de um jeito aterrador. De maneira alguma. Ele é carregado de um certo tom burlesco, que se percebe desde o comecinho do filme – na apresentação do herói – e no uso predominante da lente em grande angular ao longo de toda a exibição, que dota os movimentos dos personagens pelo cenário de um aspecto meio cômico, meio circense. Essa tonalidade burlesca, mas muito sutil, aparece até mesmo na bizarra cena do assassinato, com aquela câmera lenta, aquela trilha sonora excessivamente melodramática e a atuação também magnificamente excessiva de Klaus Kinski. Toda essa gravidade e seriedade não condiz com o filme como um todo, nem com a sua história, nem com muitos de seus elementos mais específicos. Daí também o burlesco (o tratamento cômico de um assunto sério). É bem conhecida a predileção do diretor Werner Herzog pelos párias sociais, numa visão romântica. Mas em Woyzeck (1979) o meio tom é atingido através de um equilíbrio tão delicado que se torna perturbador. A figura do pobre soldado Franz Woyzeck é ao mesmo tempo ridícula e patética.

A impressão dessas características é ainda aumentada pela escolha predominante da fotografia em planos de conjunto e planos médios – mas quase nunca em primeiros planos. Não vemos de perto o rosto dos personagens. Assim, o que fica é uma sensação de claustrofobia tendo em vista que todos estão como que “presos” naquela cidadezinha pacata e no pequeno ambiente natural (bosques, prados, riachos) dentro do qual ela se instala. Mas não há nada de pacato nos pensamentos, nas atitudes e na vida do soldado Woyzeck. Esse contraste aumenta, gradativamente, ainda mais a perturbação não obstante quieta do espectador. A abertura do espaço na fotografia em belíssimos planos de conjunto que são verdadeiras composições pictóricas opõe-se grandemente ao fechamento psicológico na mente perturbada do protagonista. Ao terminar o filme, nós não desejamos arrancar os próprios cabelos, mas ficamos numa espécie de estupefação dolorosa e serena.

E todos esses efeitos são muito bem construídos e transmitidos em menos de uma hora e meia de fita. O espectador pode estranhar a falta de encadeamentos fortes entre os acontecimentos da narrativa – coisa que, em princípio, contribuiria para mostrar melhor e fazer-nos sentir melhor e entender melhor o processo de enlouquecimento do protagonista. Entretanto, depois que se vê o filme inteiro, compreende-se que a fragmentação da estrutura narrativa não faz nada menos do que contribuir para a sugestão da fragmentação psíquica do próprio “herói”. É tudo fragmentado e isolado. A impressão de isolamento é bem forte e ampla. Woyzeck está isolado no meio das pessoas de sua comunidade (incluindo sua própria mulher). Por sua vez, a comunidade está isolada no meio de um mundo do qual não há quaisquer referências.

Assistimos aos fatos e mergulhamos naquele pequenino universo como que num daqueles pequenos globos de cristal “nevados” por dentro. Talvez esse fechamento espacial centrípeto se deva ao fato de o enredo se basear numa peça teatral (escrita pelo dramaturgo alemão Georg Büchner em 1836, ou seja, em pleno Romantismo). Mas isso não elimina a sugestão poética do fato de que é a psique irremediavelmente abalada e perigosamente instável de Woyzec que age como um buraco negro, arrastando para dentro de si (de uma maneira bem romântica) todo o universo interno da narrativa, quanto a sua dimensão externa (o plano do espectador, que sente claramente a claustrofobia mental que exala da tela). Alguns filmes possuem mesmo esse “efeito buraco negro”, essa força centrípeta altamente perturbadora. Woyzeck pode não ser um grande filme, nem um dos melhores na obra de Werner Herzog. Mas o espectador não sai impune de assistir a ele. Isto basta.

domingo, janeiro 13, 2008

Bullitt


Quando a frente do Ford Mustang do tenente Bullitt aparece no espelho retrovisor central do carro dos suspeitos, damo-nos conta de que os dois veículos viraram verdadeiros personagens, inimigos mortais, predador e presa que não descansarão enquanto um dos dois não estiver fora de ação. Logo em seguida, há um corte da frente do mesmo Mustang para o rosto de Steve McQueen, que o pilota. Homem e máquina tornam-se uma coisa só. A caracterização das personagens, dos espaços e dos objetos que os compõem se dá através dessas incríveis metonímias. E a articulação dialética de tais metonímias vai produzindo outras incríveis figuras de linguagem: a metagoge (os carros que ganham vida sem estarem exatamente “vivos”) e a hipálage (os carros que ganham os atributos de seus ocupantes). Os dois contendores vão acompanhando e estudando vagarosamente os movimentos um do outro, como duas feras cercando-se mutuamente, rosnando, prestes a se engalfinhar. Quem der o primeiro golpe desencadeará a corrida... Esta seqüência é a melhor perseguição automobilística já filmada. É uma das primeiras e até hoje uma das mais influentes (não pude deixar de me lembrar dos jogos de videogame da série Driver).

As ruas de São Francisco transformam-se numa estranha selva castigada pelo sol a pino, por onde dois engenhosos tigres correm descontroladamente e se batem com uma violência calculada. Os rugidos dessas criaturas selvagens produtos da engenharia industrial são os magníficos roncos dos seus motores – principalmente o do “Highland Green” 1968 Ford Mustang G.T. 390 Fastback, de Bullitt / McQueen (que dispensou os dublês nesta seqüência). O outro “carro”, ocupado por dois bandidos, é um “Tuxedo Black” 1968 Dodge Charger R/T 440 Magnum. Não é à toa que são chamados de “muscle cars”. A cena da perseguição em alta velocidade, em si, é silenciosa – ou seja, sem qualquer música incidental (e também sem qualquer fala). Mas música para quê? Os roncos dos motores e os pneus “cantando” já são música suficiente para os ouvidos... A seqüência inteira é um autêntico exemplo do Cinema: todos os seus elementos confluem para a construção de uma estética coerente e para a transmissão de um significado que dá bastante em que pensar. Lembro-me agora da perseguição – também silenciosa – de Cary Grant por um pequeno avião, em Intriga Internacional de Alfred Hitchcock.

Como filme, Bullitt (EUA, 1968, dir.: Peter Yates) estabeleceu diversos parâmetros para o gênero policial: o policial honesto e rebelde, jovem, “cool” e garanhão, vivido por McQueen servirá de modelo para Harry Callahan (interpretado por Clint Eastwood em Dirty Harry – 1971) e para John Shaft (Shaft – 1971), dentre outros. Esse mesmo tipo de policial, associado a carros esporte, servirá de base para as séries de TV Starsky and Hutch (1975-1979) e Miami Vice (1984-1989). “Bullitt” é um painel delicioso da estética dos anos 60, dos figurinos aos automóveis, da ótima trilha sonora composta por Lalo Schifrin (autor do tema de Missão: Impossível) à montagem ganhadora do Oscar. Não consigo deixar de pensar que um remake, hoje, teria uma edição naquele estilão “24 Horas”; mas prefiro muito mais a “cara” dos filmes dos anos 60 mesmo. De resto, é muito interessante no filme a irreparável disjunção entre o sujeito e o seu objeto. Frank Bullitt não conseguirá chegar à resolução do mistério que investiga, mal chegará a pôr as mãos em (apenas alguns) dos responsáveis. Após algumas perseguições implacáveis e apesar delas, o resultado final – quando se chega a algum – não adianta nada. E assim ficamos com a cara de nada de Steve McQueen, na cena final.

O sujeito sempre aquém do objeto que busca. Bullitt está aquém da elucidação do caso, aquém de capturar os criminosos responsáveis, aquém de corresponder às expectativas de sua amante (Cathy, vivida pela belíssima Jacqueline Bisset). O fracasso rege a ação do tenente Bullitt, que já é muito delicada: ele não pode revidar os tiros, pois, se matar os suspeitos, jamais chegará a verdade alguma. No entanto, a placidez objetiva dele é inabalável; o fracasso não leva à frustração. E ele sabe que entre si mesmo e o seu objeto se interpõe uma “máquina” contra a qual ele não pode lutar porque também está aquém dela. Essa máquina pode se disfarçar em aviões ensurdecedores taxeando na pista do aeroporto, enquanto Bullitt persegue mais um suspeito – numa quase paródia, também sem música incidental, da cena da perseguição automobilística: os aviões e o barulho horrível das suas turbinas não têm a beleza, a graça, a proporção antropomórfica dos “muscle cars”; não são tão controláveis, não são a “extensão” do corpo de um indivíduo. Mas a máquina misteriosa e inatingível também pode estar encarnada e “representada” na figura do senador Walter Chalmers (Robert Vaughn). Qual é o papel dele nesta história, afinal?

sábado, janeiro 12, 2008

A Espiã


Alguns filmes revelam a alma do seu discurso logo no começo. Outros, em alguma cena-chave lá pelo meio. É claro que toda obra cinematográfica é, inteiramente, discurso – que ninguém se iluda. Mas sempre há aquele momento especial em que a idéia central desse discurso, em que o espírito da coisa que faz ela ser o que é, fala mais alto – até mesmo grita. No caso de A Espiã (“Zwartboek”, Holanda / Alemanha / Bélgica, 2006), nova película do holandês Paul Verhoeven (Robocop, Instinto Selvagem, Tropas Estelares) que estréia hoje no Brasil, a alma – melhor dizendo – o espírito do discurso aparece só no último plano do filme, enquanto a tela já vai escurecendo (“fade-out”). Essa última imagem está, pelo sentido, intimamente ligada a uma fala da protagonista (Rachel Stein / Ellis de Vries, interpretada por Carice van Houten) em um dos momentos cheios de reviravoltas que a narrativa tem: “Isto nunca termina!” Essa frase é dita num tom de mais absoluto desespero. Considerando que a história do filme é contada em “flashback”, acaba sendo muito interessante relacionar essa linha de diálogo à primeira e à última cena. É assim que o todo da película surge ao nosso entendimento, ganhando uma identidade e – sobretudo, visto se tratar de uma obra de Verhoeven – uma mensagem. Pois sim, todo discurso carrega uma mensagem, e em alguns deles, tal mensagem fala bem alto – a quem tiver ouvidos para ouvi-la.

Em quase duas horas e meia de projeção, testemunhamos as peripécias de fräulein Rachel, uma holandesa judia de família rica que tem de fugir das garras da SS nazista, mas acaba caindo em outras garras – não menos afiadas – que são as da Resistência Holandesa (da qual o líder é um veterano comunista). Repleta de gente anti-semita, a “resistência” não confia plenamente na jovem ex-cantora. Mesmo assim, ela ganha uma missão pra lá de especial: infiltrar-se no escritório, na cama e na vida do comandante da Inteligência alemã em Haia, o capitão Ludwig Müntze (Sebastian Koch). Esta sinopse é propositalmente pobre, pois, como eu disse, a narrativa é construída com base em peripécias e reviravoltas bastante impressionantes, em segredos e revelações, mentiras e verdades encobertas, enganos e desenganos, como faz muito bem a um “thriller” de espionagem – principalmente um da 2ª Guerra Mundial, “inspirado em fatos reais”. O fato é que o roteiro é totalmente ficcional, escrito a quatro mãos por Verhoeven e por Gerard Soeteman – colaborador do diretor no início de sua carreira com Louca Paixão (“Turkish Delight”, 1972) e Soldado de Laranja (“Soldier of Orange”, 1977). No entanto, Paul Verhoeven declara que muitos dos eventos mostrados são verdadeiros: “Os eventos são verdadeiros, a história não.” Beleza, mas que “eventos” são esses? A guerra? Infelizmente, essas informações eu não consegui achar.

Não obstante, além do suspense que empolga muito, A Espiã nota-se pela complexidade moral dos personagens e do enredo. Como diz o próprio realizador: “Neste filme, tudo tem um tom de cinza. Não há pessoas completamente boas, nem completamente más. É como a vida. Não é muito hollywoodiano” (em entrevista ao jornal The Guardian). Parece que o cineasta dos geniais Robocop (1987) e Tropas Estelares (1997) aprendeu a lição com o ridículo O Homem Invisível (“The Hollow Man”, 2000), seu último filme até agora, feito em Hollywood. De volta à terra natal, Verhoeven não deixou, por outro lado, de fazer uma super-produção – para os padrões europeus. É o filme mais caro já produzido nos Países Baixos, mas também o mais rentável. Contudo, voltando à questão moral, A Espiã não tem aquele mesmo otimismo, ou fé nas boas realizações do espírito humano que O Pianista de Roman Polanski; mas, por outro lado, o filme não é nenhuma tese pessimista, niilista, irônica até a corrosão, ou o diabo que o seja, caso de qualquer fita de David Cronenberg. Paul Verhoeven consegue a façanha (!) de ser humanista sem ser condescendente. Isso é muito raro de se encontrar. É em tal chave que devemos entender a ambigüidade moral de que fala o diretor e a maneira que ele escolheu para mostrá-la. Todos ali são vítimas e carrascos. Não há nenhuma desculpa definitiva para ninguém. Mas também não há condenação definitiva. Pelo menos não deveria haver. Mas acaba havendo, em certa maneira. É por aí que se entende aquela fala de Rachel / Ellis que eu citei no começo: “Isto nunca termina!”

Como artista sábio, Paul Verhoeven põe o foco no humano – e não no étnico, ou no religioso, ou no nacional, ou no político-ideológico. E, se observarmos bem o fator humano (universal), veremos que todos são mais inocentes do que culpados. Mas acabam sendo condenados mesmo assim, porque quem é que vai atentar para o fator humano, afinal? Ainda mais naquele contexto, onde pululam e se batem nacionalidades e patriotismos, religiões, ideologias e etnias. É desta batalha de pessoas por sua dignidade (sejam elas judias, nazistas ou comunistas) que o filme retira a sua força. Pois a guerra nunca termina. Quando se acredita, tolamente, que a luta acabou, na verdade ela está apenas começando – conforme se vê num diálogo sensacional entre Rachel / Ellis e o capitão Müntze, além das magníficas cenas de perseguição durante a parada comemorativa que “marcava” justamente o “fim” da guerra. Aliás, a desgraça que nunca termina vai provocar identificações e associações absurdas para quem não adota a ótica humana: assim é que a judia se tornará amante do oficial da SS; ambos perderam suas famílias na guerra (“É difícil viver quando se perde tudo, não?” é o que Müntze pergunta a Ellis) e ambos acabarão perdendo um ao outro e se perdendo a si mesmos. De fato, isto nunca termina.

As pessoas não enxergam a humanidade essencial umas nas outras. Assim é que os holandeses, ao “punirem” os colaboracionistas, acabam se igualando aos seus inimigos nazistas (numa cena que é quase uma paródia escatológica de Carrie, A Estranha, de Brian de Palma). Assim é que traidores são ovacionados como heróis e heróis são perseguidos como traidores. E ambos estão em todos os “lados” da batalha: dentre os holandeses – da população ou da resistência, dentre as forças aliadas “libertadoras”, dentre o exército de ocupação nazista, etc. Essa miopia faz a fraqueza e a força de todos (pois cada um luta incrivelmente pelo que é “seu”: sua pátria, seu povo, sua família, sua dignidade). Este filme é menos positivo do que O Pianista (como eu disse) porque não há aqui gesto algum de redenção, de compaixão desinteressada ou complacente. Talvez haja dentre o improvável casal central (Rachel / Müntze), mas sem tanta força, tampouco eficiência. O trancamento de um homem vivo dentro de um caixão é o que predomina no tom das atitudes morais do filme. No contexto dos acontecimentos, as questões morais se misturam, se distorcem, se transformam, se transferem; mas, no fundo, com um olhar muito cuidadoso nós conseguimos diferenciá-las, coisa que os personagens não conseguem – talvez isso fosse exigir demais deles, naquelas situações-limite. Mas é por isso mesmo que a coisa nunca termina.

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Lista

André Bazin

Eu não gosto de fazer listas. Normalmente, não me acho apto para eleger “os melhores de...” Ainda preciso ver muitos filmes. Mas, se for o caso de listas bem subjetivas e despropositais, aí até pode ser. Um dia eu elejo os meus 5 ou 10 filmes preferidos de todos os tempos. Também já me peguei pensando nos 10 filmes essenciais para quem quer saber o que é a Sétima Arte (segundo, é lógico, a minha – parca – experiência e minhas idéias estéticas); gosto desse negócio de apresentar coisas boas às outras pessoas e discutir com elas. Mas o que me traz aqui hoje é a idéia de uma lista um tanto diferente. E esta será a primeira lista que publico no Sombras Elétricas em mais de um ano de sua existência. Tratam-se dos 5 livros de cinema mais legais que já passaram por minhas mãos.

Ler a respeito da arte cinematográfica tem um gosto todo diferente: sempre dá um gás incrível na minha vontade de ver e conhecer filmes, cineastas e cinematografias. Tá, sou meio cdf mesmo, mas não dá pra desprezar (muito pelo contrário) a bagagem que o estudo traz. E eu acredito que já adquiri a maturidade suficiente para estudar sem virar um bitolado academicista (embora a tentação seja forte às vezes, provocando algumas atitudes desequilibradas, desculpem-me). Teoria, estética, análise e crítica de filmes, história, estudos monográficos de tendências e da obra de realizadores, essas são as áreas que me interessam. Mais particularmente, aprecio muito as associações entre cinema e filosofia, cinema e psicologia, cinema e outras artes (principalmente literatura).

Ainda preciso conhecer e ler muitas, mas muitas obras fundamentais da literatura cinematográfica, mas dentre o que eu já vi e recomendo estão:

1. Hitchcock / Truffaut: entrevistas. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.
A melhor aula de cinema que já tive até agora. O maior gênio da sétima arte dialogando com um dos seus mais apaixonados espectadores, “cria” daquele que é o mais apaixonado: André Bazin. Absolutamente esclarecedor, mesmo para quem não conhece a obra do “mestre do suspense”.

2. O Cinema Ou O Homem Imaginário, de Edgar Morin. Lisboa, Moraes Editores, 1970.
O subtítulo diz: “ensaio de antropologia” e o livro inteiro costura-se na dialética entre o Cinema, a Sociedade e a Psicologia. E ainda é um ensaio – a minha forma predileta de um texto dissertativo – escrito com muita leveza e arte. Morin é, sem dúvida nenhuma, um daqueles magníficos – e raros – ensaístas poetas.

3. A Linguagem Cinematográfica, de Marcel Martin. Belo Horizonte, Itatiaia, 1963.
O primeiro livro de cinema que eu peguei para ler nesta vida. E, até hoje, ainda o considero uma das melhores – senão a melhor – cartilha de introdução à estética básica da sétima arte e aos elementos essenciais da “linguagem” audiovisual. Já coloquei, neste blog, uma postagem em homenagem a esta obra (assim como à obra de Edgar Morin). Quer se alfabetizar? Leia este livro. Se para você um bom filme é uma fotografia bonitinha, uma montagem dinâmica, alguns efeitos especiais e (ou) uma boa história, leia este livro. Você descobrirá um novo mundo.

4. Esculpir O Tempo, de Andrei Tarkovski. São Paulo, Martins Fontes, 2002.
Retrato do artista quando cineasta. O realizador de “Solaris” é um dos meus diretores prediletos e esta obra – tão sensível quanto os seus filmes – mistura autobiografia e ensaio estético / filosófico, no qual o mestre russo explica e analisa sua própria filmografia e a do Cinema como um todo. Para quem é fã, é uma leitura fundamental (mas, infelizmente, para algumas pessoas é difícil engolir os filmes de Tarkovski, o que até se explica – mas num outro momento).

5. O Cinema Tem Alma?, de Henri Agel. Belo Horizonte, Itatiaia, 1963.
Também foi uma das primeiras leituras fílmicas que eu fiz, há alguns anos – já estou precisando reler. Agel põe a postos toda a fenomenologia filosófica na análise da experiência cinematográfica (método que tem como base André Bazin). Considero-o elemento fundamental na formação do meu ponto de vista sobre Cinema. Esse livro me lembra do que, no fundo, nunca podemos nos esquecer ao ver um filme e pensar sobre ele.

É isso aí – por ora. Com o passar dos anos, a lista aí em cima poderá ser modificada ou alterada. Faz parte. Outras obras que também me marcaram e que recomendo: “História do Cinema Mundial”, de Georges Sadoul; “O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência”, de Ismail Xavier; “As Principais Teorias do Cinema”, de Dudley Andrew (também uma ótima cartilha de introdução). Agora, um apelo. Alguém da editora Brasiliense, por favor e pelo bem da cultura em nosso país, REEDITEM (ou pelo menos reimprimam) O Cinema (“Qu`est-ce que le cinema?”), de André Bazin, obra cuja importância é ridículo eu ficar aqui explicando para tentar convencer donos de editora. A última fornada, esgotadíssima, é de 1990. Já procurei em tudo quanto é sebo e livreiro de São Paulo (e, através da Internet, de todo o Brasil) e não se acha esse livro. Nem em bibliotecas. Há anos. Já ganhou para mim o título de livro mais raro que eu já ousei procurar. A biblioteca da USP tem um (!) exemplar, mas não é circulante e eu não vou e não gosto de “xerocar” livros (e depois ainda se diz que isso é crime... safados!) – tampouco tenho tempo ou paciência para ficar dentro da biblioteca lendo o livro inteiro. Pelo amor de Deus, alguém me arrume esse livro! Pago qualquer coisa menor que o preço da edição francesa (por volta de 90 reais – acho que ainda vou acabar comprando mesmo assim).

Hasta!