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sábado, janeiro 26, 2008

Paranoid Park


Só para confirmar: Gus Van Sant é um grande esteta. Talvez um dos maiores do cinema contemporâneo. E, ainda por cima, Gus Van Sant é um estilista à maneira oriental: compõe os seus planos de conjunto como se fossem verdadeiras pinturas e os planos mais fechados nos personagens – principalmente os primeiros planos – são fortemente contemplativos, meditativos até. Mas aí ele volta ao Ocidente: no fundo da “alma” que guardam os planos longos (o ritmo é lento e fluido como numa canção melancólica) percebe-se o olhar e a voz nítidos da razão, que é quem comanda de fato a apresentação fria das coisas. O cinema de Van Sant, se em princípio parece meditativo, olhando-se com atenção veremos que não é. A não ser que se pense em uma meditação filosófica comandada por uma mente afiada que dá linha para o subjetivo, mas que sempre mantém a mão da objetividade controlando o carretel, sem perder jamais o juízo e um juízo crítico – que se expressa na forma de uma sutil ironia presente em muitas cenas e planos. Mas antes que eu comece a divagar demais, voltemos ao chão do filme.

Este Paranoid Park (França / EUA, 2007) é muito bem dotado do olhar estudioso e nada condescendente do universo adolescente / jovem que se vê nas duas produções mais recentes do diretor (Last Days – 2005; Elephant – 2003). Van Sant observa o jovem, sua subjetividade, seu comportamento, sua vida e o contexto dela como o cientista o faz em relação a um rato de laboratório. Daí o juízo crítico, e até cruel em alguns casos, que aparece com mais força em alguns momentos. Mas Van Sant não pratica ciências exatas e naturais; o processo de ajuizamento em seus filmes – pelo qual também passa o espectador –, o ajuizamento que vai se ganhando dos personagens progressivamente, à medida em que se vai observando-os em sua vida cotidiana, esse ajuizamento é acima de tudo objetivo, mas sem ser completamente desprovido de uma certa dose (bem forte) de subjetividade. Mas a presença e o tratamento da subjetividade das personagens, o que irá despertar a subjetividade do espectador, não é tão forte a ponto de provocar identificações ou catarses. Eis a questão: Van Sant não faz filmes “de tese”; mas, por outro lado, está longe de qualquer expressão Romântica, digamos assim.

Quanto à forma, o cineasta trabalha com uma arte muito rica esteticamente e muito inspirada. É na inspiração estética que percebemos a paixão, a alma deste diretor. No conteúdo, nos temas, nos personagens, em todo aquele universo representado não sentimos nada do coração de Van Sant; mas vemos claramente o seu cérebro, a sua razão, as suas “idéias”. Enfim, tudo isso está presente nos seus três últimos filmes. Contudo, se formos observar outros aspectos, veremos diferenças entre Paranoid Park e a produção recente de Van Sant. Que aspectos e que diferenças? Muito simples: Paranoid Park, apesar do título e da sinopse, não é tão negativo (no que se refere ao próprio discurso do filme e às suas idéias) ou pessimista (embora esta palavra não se aplique adequadamente à discussão) quanto Os Últimos Dias e Elephant. Para o espectador, “O Parque da Paranóia” não é tão angustiante ou desesperador quanto os filmes precedentes; embora, como eles, seja carregado de melancolia e de tédio (o velho spleen, o velho blasé românticos).

Não que esta fita seja positiva, mas tem-se aqui uma afirmação maior do espírito, do espírito daquele jovem que é sempre o foco central em Van Sant (ao passo que nas “biografias” de Kurt Cobain e dos jovens psico/sociopatas de Columbine o que mais ocorre é uma negação do espírito – o suicídio de “Cobain” estaria mais para uma afirmação negativa do espírito, ou afirmação de um espírito negativo, como faziam os jovens escritores românticos suicidas). Desse modo, pela afirmação positiva do espírito de um jovem e, melhor ainda, pela afirmação e consolidação do processo e do resultado de um aprendizado por parte de tal jovem, um aprendizado doloroso, traumático, mas com conseqüências positivas no final, este Paranoid Park pode ser comparado a filmes mais “meigos” de Gus Van Sant, como Encontrando Forrester (2000) e Gênio Indomável (1997). Mas tenho certeza de que os fãs mais sorumbáticos hão de preferir as películas mais sombrias do diretor. Eles podem ficar tranqüilos: o novo filme também tem o seu lado sombrio.

Uma característica bem interessante do estilo de Van Sant, muito presente em Last Days e também neste Paranoid Park é a maneira como o próprio discurso do filme (o enquadramento fixo em primeiro plano no rosto do personagem, longo e meditativo, a câmera que acompanha o caminhar desse personagem, pela frente e pelas costas, a trilha sonora nesses momentos) incorpora, encarna e transmite com isso de uma maneira bastante especial o estado de espírito, o estado de alma do jovem foco do filme. É quase como que um monólogo interior usando os recursos cinematográficos. O espectador chega quase a adivinhar os pensamentos do personagem. É um poder muito forte de sugestão (no filme, há também um monólogo interior propriamente verbal, fazendo uma montagem sonora muito estimulante entre a voz “em off” do jovem Alex – o protagonista – com a sua própria voz “diegética”, conforme ele vai caminhando pelas ruas e falando consigo mesmo).

Se o poder de Last Days (e também de Elephant) era fazer o espectador mergulhar fundo e não sair mais do poço de angústia claustrofóbica que dominava aqueles personagens, em Paranoid Park mergulhamos em todo o tédio, a dúvida, o medo, a ansiedade do moleque Alex. Infelizmente, em outros momentos a tessitura do filme parece sugerir uma ironia muito sarcástica por parte do seu autor. Isto, para mim, é algo que me incomoda muito em Van Sant e que eu já assinalei a respeito de Last Days. Tal ironia, como já disse, está ligada àquele muito claro distanciamento objetivo que caracteriza a visão racional do diretor sobre o assunto, sobre o objeto do seu “estudo”. Paranoid Park não seria de forma alguma um filme feito por um adolescente, apesar da voz em off de Alex que narra a história. É um filme feito demasiadamente sobre um adolescente. É como, na Literatura, aqueles escritores que falam sobre pessoas “miseráveis” usando uma linguagem muito “rica” – que é, evidentemente, a linguagem do escritor que não faz parte daquele universo.

Os melhores escritores incorporam à sua própria a linguagem das personagens e também a visão de mundo das personagens. Van Sant incorpora ao seu discurso e transmite de uma maneira muito adequada o estado de alma das personagens em alguns momentos (como eu já falei), mas lhe falta incorporar a sua linguagem. Não estou dizendo que Paranoid Park devesse se parecer com um videoclipe da MTV, mas o estilo do filme é “cabeça” demais. Acredito que um adolescente como Alex dormiria durante a maior parte da exibição. Incomoda-me muito a distância entre a expressão do artista e o universo expressado. Também não estou dizendo que um filme como este deveria ser necessariamente feito por um adolescente propriamente dito, mas todo cinema (assim como toda literatura) deveria ter mais um caráter de “por” do que de “sobre” algo ou alguém. Eu preferiria que Van Sant se abrisse um pouco mais, com empatia e identificação, ao universo adolescente. Assim como está, fica muito um filme que algum professor adoraria mostrar aos seus alunos, sendo que estes odiariam ver.

Há uma cena que é o maior exemplo da ironia cruel, sarcástica, de Gus Van Sant. O jovem Alex – que se envolvera num homicídio, mas ninguém sabe ainda da sua participação – é chamado pelo alto-falante da escola, durante a aula. Ele caminha até a sala designada e, ao entrar nela, dá de cara – ao fundo, no canto esquerdo – com a mesa onde se senta o representante da universidade, toda decorada com propagandas universitária, até a parede. A câmera subjetiva fixa o olhar nesta mesa e adivinhamos o pensamento do pobre Alex: “Será que o cara da universidade está interessado em mim, e quer falar comigo, fazer alguma proposta?” Ledo engano. Logo em seguida, Alex olha para o canto direito da sala e vê uma outra mesa, na qual está sentado o detetive de polícia que irá lhe interrogar sobre o assassinato. Quase ouvimos a voz do diretor a dizer: “Olha como é miserável a vida desses jovens e como são vãos quaisquer sonhos que eles possam ter...” Contudo, para Alex, a “creative writing” será uma espécie de saída, assim como para Jamal (de Encontrando Forrester).

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