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quinta-feira, janeiro 17, 2008

Blow Up


Blow Up é um filme de passagem. A transformação interna de um sujeito que olha demais para as coisas em si mesmas – e, com muita soberba, ele crê que controla as coisas com o seu olhar de fotógrafo de modelos femininas – para um sujeito que vai passar a olhar o seu próprio olhar sobre as coisas, dentro de um angustiante processo de questionamento (das coisas) e de auto-questionamento (do seu próprio olhar). Para alguém tão vaidoso quanto este fotógrafo, é difícil abrir mão da segurança do olhar direto e claro. Ele tenta de todas as maneiras descobrir a “verdade”, mas só lhe é concedida a dúvida. Mais tarde, quando ele descobrirá alguma verdade, esta será apenas parcial. E ainda há o fato de que, sabendo ou não dos fatos, as possibilidades que este sujeito tem de agir em relação a eles é praticamente nula. Não há nada a fazer e quase nada a ver. Mas, no fundo, não importa ao filme a verdade dos fatos. O problema colocado aqui não é a incerteza em relação ao que é real e ao que não é. O problema é a insegurança do olhar.

O que interessa é o olhar que “constrói” a realidade, ainda mais na impossibilidade de uma ação concreta que interfira nela e a transforme. Eis a frustração básica do personagem: o fotógrafo que olha com volúpia e age construindo e transformando o pequeno universo de suas fotos (particularmente as fotos de modelos, e mais particularmente ainda as próprias modelos) não poderá ser mais do que testemunha casual e distante do “homicídio” no parque. Em relação a tal acontecimento, o homem com a câmera não poderá interferir, sequer olhar claramente para ele, captando e compreendendo todos os seus elementos factuais. E não haverá tecnologia capaz de ajudá-lo nesta tarefa ingrata. Por isso é que se chega ao absurdo fantástico do pedaço de foto imensamente ampliado que mostra (?) uma figura humana (?) escondida no meio dos arbustos. Mas o “rosto” desse “homem” mais parece uma mistura da granulação da imagem excessivamente ampliada com as folhas da própria vegetação. É como aquele rosto no solo de Marte. Será visto o que se quiser ver. Como num teste de Rorsarch, o sujeito verá o que ele tiver de ver ali, subjetivamente...

Assim sendo, pode-se confiar no olhar? Em que medida? Se não se confia no olhar, não se confia em si mesmo. O indivíduo, enquanto subjetividade, desmorona. E o mais interessante, neste filme de Michelangelo Antonioni, é que todas essas dúvidas e problemáticas vão surgindo e se desenvolvendo vagarosamente, com muita sutileza, “por debaixo dos panos” (para não cair no excesso de erudição de dizer “sub-repticiamente”), como que ao acaso, utilizando os “tempos mortos” da narrativa. Também aqui, temos uma passagem: como se do inconsciente ao consciente, do banal ao extraordinário que, não obstante, já se encontrava intrínseco ao banal. O extraordinário que se revela no banal, eis uma melhor definição. E é isso exatamente o que define o gênero da literatura fantástica e a obra de um dos seus principais representantes: Julio Cortázar – “Blow Up” é um conto de sua autoria, adaptado aqui pelo próprio Antonioni, que se valerá de toda a maestria da sétima arte.

O filme tem pelo menos dois momentos de grande cinema, de um uso muito significativo da estética própria do cinema. Primeiro, a montagem das fotografias que mostrariam o homicídio e que o fotógrafo prega na parede, umas ao lado da outras, para estudá-las. Ocupando todo o plano da tela que o espectador vê, as fotos vão se sucedendo, na ordem em que as colocou o personagem, e formando uma pequena cena narrativa com uma montagem especificamente cinematográfica – variando, inclusive, os diferentes tipos de planos (uns mais próximos, outros mais afastados). Dessa maneira, o olhar do personagem, identificado com o do diretor, forma um filme dentro do filme, uma história dentro da história. Segundo momento memorável: a panorâmica que acompanha, quase que em primeiro plano, a bola de tênis imaginária. Nunca o invisível foi tão visível, nunca o nada foi tanto. Esse mote pode se aplicar ao filme como um todo.

A fenomenologia do olhar, do apenas olhar (e ainda assim não captar totalmente o seu objeto) numa situação em que toda ação “motora”, toda interferência concreta é de todo impossível, é o que marca o cinema de Antonioni – mais do que a já muito discutida questão da incomunicabilidade (faço coro aqui às idéias de Gilles Deleuze em A Imagem-Tempo). Em Depois Daquele Beijo (o ridículo título em português de “Blow Up”), temos uma forte presença da ironia e do olhar distanciado do diretor – como ocorre nos filmes de Jacques Tati, mas sem a complacência humanista dele. A sessão de fotos de modelos, o show de rock dos Yardbirds (o filme é de 1966), a festa regada a drogas... percebe-se em tais cenas uma ironia muito sutil, porém, profundamente sarcástica. Ainda no espírito da ironia, podemos concluir o seguinte: Se a ação concreta é impossível e o olhar verdadeiro também o é, o que é que se pode fazer? Mergulhar numa busca vã e ensandecida mesmo assim? Afastar-se de tudo, caindo no tédio e na melancolia? Nada disso. Vamos brincar, fingir, fazer de conta que... entrando no espírito do jogo de esconde-esconde e de pega-pega que é a vida e o mundo. Vamos virar todos pantomimos.

2 comentários:

  1. Bom texto e um ótimo filme. Vejo uma crítica ao presente (presente da época)e temas atemporais como a arte. Como crítica ao presente, a cena das drogas que como diria o Pink Floyd "Confortably Numb" e o antagonismo presente na Londres moderna, o que é bem sugerido na primeira sequencia de cenas, com os sons, imagens cores... E a arte da fotografia sendo retratada primeiramente só como mercadoria em constrate com a pintura de Bill. Interresante como o personagem sofre uma transformação, começando pelo trauma do assasinato e indo até ao inferno (a cena de rock), como os herois clássicos. E no final a transformação, pela arte e pelo sentimento humano. Genial a cena final do tênis, quando ao jogar a "bola" de volta, ele passa a ouvir o som do jogo, e sua transformação é consumada.

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