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quarta-feira, janeiro 16, 2008

Frankenstein


Sem querer deixar de lado a forte capacidade de sugestão visual que um bom texto literário possui (ainda mais se for o de uma obra do Romantismo do século XIX) e, mais importante ainda, a liberdade que o signo lingüístico “arbitrário” concede à imaginação do leitor, o fato é que, se compararmos uma obra literária com sua adaptação cinematográfica, entenderemos que ambas as “instâncias” cumprem papéis bem específicos e diferenciados – porém, complementares – na experiência artística do receptor (o leitor ou o expectador). Digamos que tanto a Literatura quanto o Cinema produzem “imprints” específicos no espírito e na memória da gente. São como que marcas que nos acompanham toda vez que pensamos em determinada obra. É claro que essas marcas e suas diferenciações não se aplicam a todo e qualquer livro ou filme. Não dá para generalizar, o que interessa aqui é discutir casos específicos.

E o caso do clássico Frankenstein (1931) é emblemático. Os conceitos visuais do romance original (escrito por Mary Shelley em 1818 e cuja edição definitiva data de 1831) são bastante determinados e fortes, principalmente os relativos à aparência da criatura-“monstro” e aos seus atributos físicos (extrema agilidade). No entanto, o filme de James Whale (que ficou como a adaptação definitiva deste clássico do terror romântico) deixa de lado praticamente todos os aspectos imagéticos do romance e cria os seus próprios. Assim, em relação ao filme, o romance Frankenstein vale “somente” pelo conteúdo ideológico (e ainda assim isso é questionável, pois o filme toma várias liberdades em relação ao roteiro, aos personagens e à própria mensagem original). Por sua vez, a película de Whale criou imagens e conceitos imagéticos que ficaram como definitivos quando se pensa em e se lembra do monstro Frankenstein, além de continuarem influenciando o gênero do terror no cinema até hoje.

No aspecto literário, a história do Dr. Frankenstein é uma grande fábula do mal-estar na civilização industrial: trata do homem que não sabe lidar responsavelmente com a sua própria criação – assim como com todas as suas mais diversas e inesperadas conseqüências (o poder de cálculo da ciência jamais abarcará todas as variantes da experiência factual); desse modo, o “Adão” do homem vira um problema, e um grande problema. Expulsando esse novo e grotesco Adão do jardim do éden industrial (criação também humana), o homem acaba expulsando-se também a si próprio, pois está mais atracado a sua criatura do que gostaria de pensar. Eis a suprema ironia do homem-deus. Um deus cuja soberba só se compara à sua incompetência, tudo nivelado na tabula rasa do ridículo. É a grande comédia humana: trágica, dramática, angustiante, melancólica, etc.

Uma vez que já se cometeu esse pecado original (o que nunca deveria ocorrer em hipótese alguma), qualquer solução que se tente dar às suas conseqüências apenas incorrerá em outras terríveis conseqüências. O problema não pode ser a solução para o próprio problema (ainda que seja um tipo “diferente” de problema). Assim é que se torna absurda e ridícula a “caça às bruxas” que se promove para tentar buscar e punir o “monstro assassino”. E quantas vezes não vimos e continuamos testemunhando situações assim na história humana? Osama Bin Laden talvez seja o maior “Frankenstein” do nosso mundo real e contemporâneo. Ainda no campo semântico da violência, o filme Laranja Mecânica (1971, Stanley Kubrick) também é uma fábula “frankensteiniana”. É trágico, mas não deixa de ser irônico.

No aspecto cinematográfico, o monstro “zumbi”, com cabeça quadrada e pregos no pescoço, é a marca registrada que já entrou para o inconsciente coletivo. Mas não responsabilizemos apenas o diretor. Tal “marca registrada” responde por um nome: Boris Karloff, ator clássico dos clássicos do horror da era de ouro de Hollywood. O design do cenário da torre-laboratório do Dr. Frankenstein também pede uma atenção toda especial. Nesse espaço, predominam linhas de ângulos bastante agudos e assimétricos (paredes e janelas), o que é uma herança do expressionismo alemão – em especial o clássico também “frankensteiniano” de O Gabinete do Dr. Caligari (1919, Robert Wiene). Já virou lugar-comum dizer que a estrutura de tal cenário sugere a estrutura psíquica do personagem que é foco da história. Mas aqui, não é apenas a arquitetura “muito louca” que representa a “loucura” do doutor.

A aguda verticalidade dessa torre e o papel que ela tem no filme transformam-na numa impressionante catedral profana (é redundante aplicar o adjetivo “impressionante” ao substantivo “catedral”). Mais do que profana, a catedral positivista do Dr. Frankenstein é herética. Ela é o farol de toda a soberba pueril da ciência. Ciência, entretanto, submetida aos poderes de um céu que se crê como apenas “fenômeno da natureza” (os raios da tempestade, canalizados pelas máquinas elétricas, que darão “vida” à criatura). O cientista, inflado e cego de vaidade e de orgulho, escarnece de Deus (chame-se aqui de “Deus” o que se quiser: o acaso, a natureza incontrolável e misteriosa, ou o “Criador” mesmo), sem perceber que nunca se escapa aos seus domínios. O resultado dessa história já estamos carecas de saber.

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