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segunda-feira, janeiro 14, 2008

Woyzeck


Woyzeck é um filme perturbador. Mas não de um jeito aterrador. De maneira alguma. Ele é carregado de um certo tom burlesco, que se percebe desde o comecinho do filme – na apresentação do herói – e no uso predominante da lente em grande angular ao longo de toda a exibição, que dota os movimentos dos personagens pelo cenário de um aspecto meio cômico, meio circense. Essa tonalidade burlesca, mas muito sutil, aparece até mesmo na bizarra cena do assassinato, com aquela câmera lenta, aquela trilha sonora excessivamente melodramática e a atuação também magnificamente excessiva de Klaus Kinski. Toda essa gravidade e seriedade não condiz com o filme como um todo, nem com a sua história, nem com muitos de seus elementos mais específicos. Daí também o burlesco (o tratamento cômico de um assunto sério). É bem conhecida a predileção do diretor Werner Herzog pelos párias sociais, numa visão romântica. Mas em Woyzeck (1979) o meio tom é atingido através de um equilíbrio tão delicado que se torna perturbador. A figura do pobre soldado Franz Woyzeck é ao mesmo tempo ridícula e patética.

A impressão dessas características é ainda aumentada pela escolha predominante da fotografia em planos de conjunto e planos médios – mas quase nunca em primeiros planos. Não vemos de perto o rosto dos personagens. Assim, o que fica é uma sensação de claustrofobia tendo em vista que todos estão como que “presos” naquela cidadezinha pacata e no pequeno ambiente natural (bosques, prados, riachos) dentro do qual ela se instala. Mas não há nada de pacato nos pensamentos, nas atitudes e na vida do soldado Woyzeck. Esse contraste aumenta, gradativamente, ainda mais a perturbação não obstante quieta do espectador. A abertura do espaço na fotografia em belíssimos planos de conjunto que são verdadeiras composições pictóricas opõe-se grandemente ao fechamento psicológico na mente perturbada do protagonista. Ao terminar o filme, nós não desejamos arrancar os próprios cabelos, mas ficamos numa espécie de estupefação dolorosa e serena.

E todos esses efeitos são muito bem construídos e transmitidos em menos de uma hora e meia de fita. O espectador pode estranhar a falta de encadeamentos fortes entre os acontecimentos da narrativa – coisa que, em princípio, contribuiria para mostrar melhor e fazer-nos sentir melhor e entender melhor o processo de enlouquecimento do protagonista. Entretanto, depois que se vê o filme inteiro, compreende-se que a fragmentação da estrutura narrativa não faz nada menos do que contribuir para a sugestão da fragmentação psíquica do próprio “herói”. É tudo fragmentado e isolado. A impressão de isolamento é bem forte e ampla. Woyzeck está isolado no meio das pessoas de sua comunidade (incluindo sua própria mulher). Por sua vez, a comunidade está isolada no meio de um mundo do qual não há quaisquer referências.

Assistimos aos fatos e mergulhamos naquele pequenino universo como que num daqueles pequenos globos de cristal “nevados” por dentro. Talvez esse fechamento espacial centrípeto se deva ao fato de o enredo se basear numa peça teatral (escrita pelo dramaturgo alemão Georg Büchner em 1836, ou seja, em pleno Romantismo). Mas isso não elimina a sugestão poética do fato de que é a psique irremediavelmente abalada e perigosamente instável de Woyzec que age como um buraco negro, arrastando para dentro de si (de uma maneira bem romântica) todo o universo interno da narrativa, quanto a sua dimensão externa (o plano do espectador, que sente claramente a claustrofobia mental que exala da tela). Alguns filmes possuem mesmo esse “efeito buraco negro”, essa força centrípeta altamente perturbadora. Woyzeck pode não ser um grande filme, nem um dos melhores na obra de Werner Herzog. Mas o espectador não sai impune de assistir a ele. Isto basta.

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