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terça-feira, janeiro 22, 2008

O Caçador de Pipas


“O Caçador de Pipas” é um romance simplório construído em cima das fórmulas mais descaradas do best-seller, sendo inteiramente subserviente a elas – o que é pior. No entanto, uma literatura pobre como esta pode dar filmes razoáveis, senão até mesmo bons. Por um acaso, alguém já procurou ler “D’entre les morts” antes ou depois de ver Um Corpo Que Cai? De qualquer maneira, o caso é que os sub-romances folhetinescos da contemporaneidade parecem já terem sido concebidos para (ou buscando) uma adaptação cinematográfica. Quando este “O Caçador...” ainda estava em sua primeira edição norte-americana, muito antes de se tornar um fenômeno mundial, o atual roteirista desta sua versão fílmica (David Benioff) já tinha sido contratado para a tarefa (segundo matéria da “Folha de S. Paulo”). Vemos que é bem apurado o olfato dos lobos que vivem a farejar o mercado; e eles não perdem tempo para dar o bote.

“Romances” como este orientam toda a sua técnica narrativa em vista do... visual. Mas não pense que se trata aqui dos grandes retratos impressionistas de um Marcel Proust. Muito pelo contrário. A imagética nos empreendimentos do tipo “O Caçador de Pipas” envolve apenas a apresentação dos personagens, ambientes e fatos de uma maneira precisamente cinematográfica – e com muita precisão nisto. São descrições ao mesmo tempo detalhadas e sumárias, pois se, por um lado a leitura não pode ficar “cansativa”, por outro é preciso facilitar ao máximo a imaginação do leitor: ele deve enxergar, da maneira mais clara, direta e completa possível, o que acontece e como acontece. Assim é que se faz uma leitura “cativante”. Desse modo, essa literatura “fácil” não se preocupa nem um pouco com a pertinência estética ou dramática – tampouco com a coerência – das imagens e, conseqüentemente, com a da estrutura narrativa como um todo. Tudo o que importa é a “rica” elaboração de cenas que causem um forte “efeito” no leitor.

Nas mãos de um bom diretor (ou de um diretor pelo menos competente), um filme de cinema pode fazer bom proveito disso tudo. Pode transformar a desvantagem em vantagem (seria forçar demais a barra usar os termos “defeitos” e “qualidades”). O filme O Caçador de Pipas (“The Kite Runner”, EUA, 2007) não chega a ser bom. Mas é razoável. Mais do que o livro. Esta adaptação, dirigida por Marc Forster (que vem – ou vinha – numa carreira notável, com A Última Ceia, Em Busca da Terra do Nunca, Mais Estranho do que A Ficção), enxuga muito bem o conteúdo do livro – o que não é difícil, mesmo com as suas 365 páginas. Forster e o roteirista Benioff (de Tróia) concentraram-se justamente nas passagens mais pertinentes da obra, as mais interessantes dramática e cinematograficamente – ao mesmo tempo (o escritor é bem esperto). É claro que os fãs mais fanáticos quererão ver muito mais, ou tudo; mas convenhamos...

Manteve-se a cena-mote do estupro (mas amenizada, é lógico), eliminou-se uma outra cena – assim como todos os acontecimentos subseqüentes a ela – que não era lá muito coerente (e, ainda por cima, poderia fazer com que o filme fosse menos ainda “de família”; vendo a fita como um todo, parece que a escolha maior foi em tornar a coisa o mais palatável possível para todos os gostos). Mas a melhor das escolhas parece ter sido modificar, num detalhe bem específico, os rumos de um acontecimento, que no livro não tem a menor coerência (é mais uma daquelas construções que servem mais para causar efeito e suspense do que para qualquer outra coisa). No filme, a coisa fica mais “engolível”. Falemos agora do lado ruim. Por que é que não trouxeram o grande vilão Assef, na sua aparência original de loiro e de olhos azuis, para este filme? Eu detesto esse tipo de análise “extra-textual” (que vai além da obra em si), viciada em ideologias viciadas, em paranóias, preconceitos e teorias da conspiração.

É no mínimo uma preguiça mental o crítico basear totalmente sua reflexão apenas no velho discurso de que O Caçador de Pipas seria apenas uma propaganda da doutrina Bush. Isso não é crítica de verdade. Pelo menos, não crítica de cinema. Mas há algumas coisas no filme que nos deixam com a pulga atrás da orelha. E é apenas delas que podemos falar. E falar com muito cuidado (segurança e responsabilidade são fundamentais em qualquer discurso). Quase fui embora quando vi um Assef moreno. Por que não um “sociopata” (como o autor o chama no livro) neo-nazista da velha “raça” ariana? Será que todos os muçulmanos têm que ter a mesma cara? (No livro, a mãe de Assef é alemã, daí a sua aparência). Falando em cara, e compensando este defeito de caracterização, o menino que interpreta Hassan foi muito bem escolhido. Sua aparência corresponde muito bem à descrição e o garoto ainda é um ótimo ator. Mas, como neste filme (tal o livro), nada é sem algum problema, o Hassan cinematográfico é muito mais alegre e comunicativo do que o rapaz tímido e servil do romance. Azar da coerência.

Eu tinha dito que esta película enxugava bem a história do livro. Mesmo assim, ficou muita coisa dentro do filme – o que talvez seja inevitável, uma vez que se pensa na natureza bem tradicional dos romances folhetinescos: repletos de acontecimentos e reviravoltas mirabolantes que não deixam o leitor largar o livro, às custas do aprofundamento dramático dos mesmos e do aprofundamento psicológico das personagens; o que não impede, mesmo assim, que se tente injetar na narrativa o máximo de melodrama e emotividade tendenciosa e superficial, dando um resultado desajeitado e grotesco que saltará aos olhos do leitor mais experiente. É tudo isso o que justamente acontece no filme. Não se dá tempo ou espaço para que o espectador se envolva efetivamente com aquelas pessoas e com a sua história. O que mais importa são os acontecimentos “de efeito”. A catarse não é algo que simplesmente se injete, como uma droga.

Não basta o escritor arremessar até nós uma cena com conteúdo emocional e esperar que choremos todas as lágrimas. Um autor de verdade deve construir tal cena específica em uma forma que ajude a transmitir, ela mesma, o “conteúdo”. E essa construção leva algum tempo, ocupando o quanto da narrativa for necessário para que se atinja um “efeito” de verdade. Tudo isso está nos famosos ensaios teóricos de Edgar Allan Poe. Mas parece que Khaled Housseini não os leu, e o filme também não foi capaz de resolver o problema (ainda mais que a duração “possível” de um filme é bem menor). Assim, O Caçador de Pipas (filme e livro) acaba ganhando um caráter de relato muito demasiado. Trata-se justamente daquela narrativa por demais literal que eu discuti ontem a respeito de Eu Sou A Lenda). O filme é bem dirigido, mas pouco cinematográfico (seria possível fazer mais do que isso?). Assim como o romance, este filme torna-se cansativo. É reconstituição demais, como se fosse um relatório, para pouca arte, arte sublime e gratuita.

Isso talvez revele que não adianta uma grande produtora (Paramount) contratar um bom diretor e um bom roteirista para trabalhar com um material infelizmente bastante limitado. Ninguém pode fazer milagre. Prefiro acreditar que Marc Forster continua sendo um bom e promissor cineasta. Mas que aceitou fazer O Caçador de Pipas pela grana ou pela fama. Como já disse, o filme é bem feito, é competente. Mas lhe falta alma. Justamente a alma do artista que acredita no trabalho que está fazendo.

5 comentários:

  1. Eu vi hoje o filme. Achei a primeira parte no Afeganistão bastante razoável. Também gostei das elipses. Mas quando ele volta para o Afeganistão sob o domínio talibã, aí o filme evidencia de vez seu conteúdo folhetinesco, forçando um final catártico. E isso nem é culpa do diretor.

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  2. Como admiradora do romance do Khaled Hosseini, quero muito ver esse filme. Quando li a obra, fiquei preocupada em saber se iriam modificar alguma coisa (especialmente na cena do estupro, que é fundamental para a trama). Mas, fico feliz em sabe que pouca coisa está diferente.

    O complicado de se adaptar histórias como a de "O Caçador de Pipas" é que as pessoas vão assistir ao filme esperando ver certa coisa, certas emoções e, se o diretor não consegue cumprir isso, fica a sensação que você descreveu: a de que o filme poderia ser melhor.

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  3. David: a segunda parte do filme força a barra mesmo. No livro é ainda pior...

    Kamila: achei que o filme procurou respeitar as coisas que o livro tem de melhor. Mas, pra mim, ainda não foi o suficiente... Valeu a tentativa, mas ainda assim "a coisa não chegou lá"...

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  4. Não conferi a obra original nem tenho vontade, mas a impressão que deu foi a de que é um filme sem alma mesmo, um trabalho que não faz jus ao talento do diretor Forster - que já tem uns excelentes trabalhos, como "A Última Ceia" e "Finding Neverland". Um bom filme, mas que não conseguiu me emocionar.

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  5. Pois é, Vinícius... o xaveco desse filme também não funcionou comigo... Mas amei todos os outros do Forster!

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