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sexta-feira, julho 27, 2007

O Tesouro de Sierra Madre


“Hey, Buddy... Would you stake a fellow american to a meal?” Humphrey Bogart é o rei das “catch phrases”. Se a maior parte das falas registradas do ator estão em Casablanca (1942, dir.: Michael Curtiz), esta aqui, de O Tesouro de Sierra Madre (“The Treasure of Sierra Madre”, EUA, 1948), obra-prima absoluta de John Huston, também entrará para a antologia. Esse filme tem a força e a ingenuidade da visão de mundo e da técnica artística que só encontramos mesmo no cinema clássico. O Tesouro de Sierra Madre é até didático em seu classicismo. Essa forma de simplicidade erudita (a contradição é apenas aparente; sabemos que os grandes poetas disfarçam em suas obras a sofisticação por trás de uma atmosfera de naturalidade), onde tudo é devidamente pesado e calculado para provocar um efeito contundente mas atingido de maneira sutil (de novo, a sutileza é um dos grandes diferenciais das grandes realizações artísticas) pode não conseguir chamar a atenção das nossas sensibilidades pós-modernas: no mundo pós 11 de setembro já mandamos as sutilezas pra casa do caralho... Mesmo assim – e talvez por isso mesmo – é que o cinema clássico anterior a 1950 merece ser observado com um carinho especial. Tais filmes são as melhores e mais essenciais aulas de cinema. Um dia escreverei por que não gosto de Terra em Transe (Brasil, 1967, dir.: Glauber Rocha) e por que prefiro a ele muito mais O Pagador de Promessas (Brasil, 1962, dir.: Anselmo Duarte); mas os motivos já ficam aqui esboçados.

Voltando a John Huston, em O Tesouro de Sierra Madre encena-se de maneira quase neo-realista (a produção foi filmada “in loco”) a vida difícil de vagabundos / indigentes / desempregados norte-americanos numa cidade do México (Tampico). Esses homens são pobres-diabos que têm que vender o almoço para comprar a janta: vão sobrevivendo de pequenos e temporários trabalhos – muitos dos quais revelam-se como golpes – e de esmolas. Mas quando surge a idéia e a oportunidade de partirem para o ramo da garimpagem do ouro, três deles: Dobbs, Curtin e Howard (respectivamente: Humphrey Bogart, Tim Holt e Walter Huston) terão suas vidas viradas de cabeça para baixo. Para o melhor e para o pior.

O “Tesouro” de Sierra Madre – o título já carrega a ironia que se mostrará maravilhosamente no fim do filme; o “tesouro” efetivamente conquistado não se revelará aquilo que os garimpeiros esperam – organiza-se todo em torno do signo da selvageria. É gritante a selvageria urbana de Tampico, em acorde com a selvageria imensamente hostil das zonas áridas do garimpo (a natureza selvagem) repletas de bandidos assaltantes (o elemento humano da barbárie). O mote do filme é o perigo: o perigo na civilização, no homem: a indiferença entre as classes, os golpes de empregadores maliciosos e outras diferentes formas de bandidagem; e o perigo na natureza: animais selvagens, ambientes inóspitos. A seminal frase do jagunço Riobaldo, no Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa, também poderia ser aplicada aqui: “Viver é muito perigoso...”

Entre a frigideira e o fogo, os três miseráveis correm à natureza selvagem buscar o ouro que será transformado nas jóias que representam a faceta mais ostensiva da selvageria da civilização. Mas neste processo de transformação quase alquímica (o elemento concreto natural que se transfigurará nos mais abstratos elementos humanos: a riqueza, a beleza, o poder, a felicidade... – olha o quanto podemos extrair do mero ouro!), o ouro que ainda é abstrato (tornar-se-á concreto para ser novamente abstraído), pois ainda é pura esperança de ser encontrado, trabalho de ser garimpado, ideal a ser materializado, esse ouro não é sequer ainda (esta é a forma em que é prospectado). Esse ouro que não passa de sonho cultivado já vai transformando em selvageria o espírito do garimpeiro ganancioso e inseguro. Eis a maior das alquimias presentes no filme. Outro signo para O Tesouro de Sierra Madre: transformação. John Huston, o grande alquimista! Mas trata-se de uma alquimia inversa: não são as coisas que se transformam em ouro, mas este que tudo transforma (em coisas piores). Não é evolução, mas involução, decadência, corrupção, corrosão (termo químico que cai muito bem ao filme).

Mas também tem um outro lado: o mesmo ouro que é maldição e destruição – a “maldição” de Sierra Madre – corrosivo como ácido, também é metáfora para os mais altos tesouros humanos desta vida; como diz o velho Howard, o ouro “não implora para ser achado”; é preciso procurá-lo, encontrá-lo, e sobretudo reconhecê-lo, com muito cuidado e paciência, pois o ouro verdadeiro não é exatamente sólido, tampouco brilha (Dobbs e Curtin constatam sabiamente que ele é como areia). Os verdadeiros tesouros se disfarçam de coisas sem valor; isso é quase cristão. O “ouro” de verdade não corresponde à imagem da nossa fantasia. Esta, só enxergaremos no “ouro dos tolos” (fool’s gold): eis o perigo. Mas o uso conotado que fazemos da palavra “garimpar”, nas mais diversas circunstâncias, já explica a lição.

Humphrey Bogart dá um show! É a sua melhor atuação. Toda a masculinidade rude do homem aparece muito bem em seu personagem deste filme, muito bem adequada ao cenário também rude. Aqui, não há para a feiúra charmosa de Bogart nenhuma Ingrid Bergman, nenhuma Katherine Hepburn ou Lauren Bacall. O Tesouro de Sierra Madre é um filme de macho. De fato, o único ser do sexo feminino que aparece e tem fala é uma companheira do golpista perseguido por Dobbs e Curtin: a cena dela dura uns 15 segundos dentro dos 126 minutos do filme. Walter Huston (pai do diretor John Huston) também é grande como a figura arquetípica do velho sábio: o profeta, o mestre, o ancião experiente, o “médico” curandeiro que será eleito como autêntico sacerdote, líder e guia máximo da aldeia indígena simples cuja uma das crianças ele salva da morte (o que corrobora e potencializa o caráter arquetípico do personagem). É bela – ainda mais para os anos 40 – a consciência ecológica do velho Howard: após terem garimpado todo o ouro que queriam, ele faz questão de desmontar a mina e restaurar a montanha ao que ela era antes, um sinal de respeito e gratidão.

Os dois parágrafos acima já vão nos mostrando que O Tesouro de Sierra Madre, apesar de ser muito macho e selvagem, é também humano e sensível em alguns momentos fundamentais: quando os três garimpeiros lêem a carta da esposa do “invasor” que eles estavam prestes a matar (mas os bandidos fizeram esse “favor” primeiro). Depois, dois deles resolvem dar ¼ do seu ouro para a viúva. Mas a melhor cena é mesmo a do “milagre”, em que Walter Huston ressuscita um garoto afogado, numa aldeia indígena de pessoas absolutamente simples.

Essa é a melhor cena? Minto. Onde estou com a cabeça? O final é impagável! Nas palavras do velho Howard: “O ouro voltou para a montanha de onde o tiramos...” Justiça poética: a imagem da ventania carregando poeira e ouro em pó indistintamente. É a efemeridade da ganância. Porém, os justos ainda terão suas recompensas e consolações, ainda que em formas inesperadas e irônicas. Já os injustos, assim como o ouro, estão destinados a retornar ao pó da terra (de novo a dimensão cristã): é a imagem de Humphrey Bogart ensandecido e decadente, com o rosto coberto de poeira e terra, antes de tentar limpá-lo na poça d’água suja de sua consciência, justamente na qual verá refletido o rosto do bandido que o fará pagar por seus crimes (a poesia de John Huston supera-se a si mesma). O mesmo bandido, ao pagar os seus próprios crimes, cavará a própria sepultura na terra poeirenta, antes de ser fuzilado pelos “federales”. Filme árido... Walter Huston bem que avisou: “a água pode ser mais preciosa do que o ouro...”


terça-feira, julho 24, 2007

Meu Tio


A melhor forma de protesto nas artes não é aquele nervosismo dos manifestos e das obras “engajadas”. Uma crítica que usa – assim como o seu alvo – da mesma indiferença, ou desprezo, ou ainda crueldade para com o gênero humano não é uma crítica de verdade. Ela não faz mais do que se igualar ao seu objeto. Todo o conteúdo e toda a forma de uma obra de arte que se pretenda de “resistência” – nos mínimos detalhes – devem estabelecer uma oposição bem clara (sem, contudo, perder a sutileza, o que não é fácil). Explicando melhor: eu prefiro mil, mil vezes os filmes de Charles Chaplin e de Jacques Tati enquanto crítica ao capitalismo burguês a qualquer Glauber Rocha, Jean-Luc Godard, ou outro cineasta “cult” entre o público universitário “esclarecido”. E por que? Não tanto por causa da comédia, da sátira corrosiva, mas simplesmente porque a humanidade, o senso do humano que há nesses dois grandes mestres não se encontra – pelo menos, não com a mesma dose – em mais ninguém. Acredito que só a humanidade mais pura e essencial (e também acredito que essa pureza é possível) é capaz de se contrapor ao maquinário do capital. Apenas o riso (seja ele ingênuo, seja sarcástico) pode ser uma arma eficaz contra a seriedade, a sisudez fanática que assombra tanto o capitalismo mais selvagem quanto o socialismo mais doutrinário.

Aí está o cinema de Jacques Tati. Seu grande personagem, Ms. Hulot, em sua ingenuidade engajada – o paradoxo é apenas aparente – renova em nós tanto as forças para a “luta” quanto a esperança num “outro mundo possível”. Não me venham dizer que estou fazendo uma leitura marxista; o conservadorismo revolucionário (outro paradoxo maravilhoso) de Tati vai muito além de qualquer sistema ou ideologia política “muderna”... O diretor de Meu Tio, não faz dissertação (comum no cinema narrativo dito engajado), mas também não pratica narração: os enredos de seus filmes mal poderiam ser parafraseados. Tati apenas descreve, utilizando para isso todo o poder específico da sétima arte. Seus filmes são compostos por uma série de quadros cômicos de grande significado.

Em Meu Tio (1958), temos um solteirão boêmio (Ms. Hulot), morador de um bairro antigo e popular, que desenvolve uma relação muito próxima com o sobrinho, filho único de sua irmã, despertando o ciúmes do pai (disfarçado em outras formas de indignação). É muito engraçado ver o Sr. Arpel e a esposa falando sobre Hulot, dizendo que “ele precisa de um rumo na vida, que precisa casar e se estabelecer, arrumar um emprego, porque assim do jeito que está não dá... ele é uma má influência para o sobrinho...” Essas falas, essas mentalidades, quantas vezes já não ouvimos isso nas famílias burguesas? O mais triste (ou mais feliz) é que os burgueses em Tati não são maus. De jeito nenhum. Sua intolerância vem apenas da estreiteza de sua visão de mundo, que foi proporcionada por sua estreita experiência de vida. A família é apenas uma vítima da máquina cultural do capitalismo.

Cada plano em Meu Tio, na minha opinião a obra-prima do diretor, é cuidadosamente decupado e altamente significativo. Jacques Tati é, sem dúvida nenhuma, um dos grandes e verdadeiros cineastas – na acepção do cinema puro de que Alfred Hitchcock fala nas entrevistas com François Truffaut: significar o máximo possível usando meios exclusivamente cinematográficos, sem apelar para diálogos, trabalhando apenas com a câmera e seus movimentos, com a fotografia e a montagem. Nesse aspecto, os filmes de Tati são praticamente mudos (Ms. Hulot fala o mínimo necessário), e não apenas para fazer corpo à tradição das gags visuais de comediantes de gestos desengonçados.

Não convém esmiuçar aqui todas as gags do filme, mas algumas delas são impagáveis. Logo no começo, temos o “mundo cão”: o cachorrinho da família burguesa se diverte nas ruas do bairro popular com os cães vadios, chafurdando no lixo e correndo para lá e para cá. Mas quando ele volta para casa, os outros não passam do portão; ficam olhando longamente para dentro. Esse cãozinho e o Ms. Hulot são os únicos da família que têm essa mobilidade social por conta própria, os únicos que vivem livres e plenamente no mundo. Hulot ainda faz o favor de levar o sobrinho para o bairro popular, onde ele brincará com os garotos “vadios”. Fico pensando em nossas crianças moradoras dos bairros nobres e dos condomínios fechados...


continuação de Meu Tio


Outra cena deliciosa: os automóveis circulando lado a lado no trânsito, tudo bem organizado... É uma imagem evidentemente irreal, mas satiriza imensamente os sonhos de “ordem e progresso”. Ainda dentro da ordem, vê-se que a fachada da escola e da fábrica são idênticas. Mas o mais interessante é a casa da família Arpel: Jacques Tati tira um sarro violento da frieza, da feiúra, do desconforto, do mau-gosto, enfim, da desumanidade da arquitetura e do design modernos... Depois de ver Meu Tio, só aumentou em mim a repugnância por coisas do tipo Rui Ohtake ou o velho Oscar Niemeyer. Por exemplo, o hotel Unique, em São Paulo (para quem nunca viu, o prédio parece uma fatia de melancia), é uma imagem de tamanha violência na paisagem urbana quanto o edifício “neo-clássico” da mega-boutique Daslu, além de tantos outros. Ms. Hulot é verdadeiramente iconoclasta e revolucionário quando vira ao contrário o “sofá” moderninho para que possa dormir nele mais confortavelmente... Viva Jacques Tati!

Isso sem falar nos aparelhos eletro-eletrônicos: o imenso peixe metálico no quintal do qual sai um jato d’água com som de alguém que está se afogando, dispositivo esse que só é ligado pela Sra. Arpel quando aparece na casa alguma visita “de valor”; todo o maquinário da cozinha, que parece ser dotado de uma vontade própria maléfica contra o Ms. Hulot; o melhor é o portão automático da garagem, presente de casamento para o Sr. Arpel, que deixará trancados dentro dela o casal aniversariante, culpa do pequeno cachorrinho Duque, que passa inadvertidamente na frente do sensor que controla a abertura. Entretanto, o que importa nessa casa maluca é que tudo seja absolutamente moderno e que, nas palavras da Sra. Arpel: “Tout comunique!”

No universo de Tati, a bizarrice moderna está nos antípodas do mundo amado e defendido pelo criador do Ms. Hulot: a desorganização orgânica, viva e humana do bairro antigo e popular. Lá, a vida pulsa e pulula nos prédios velhos e descascados, nas pessoas que circulam pela rua, em toda a orquestração caótica dos mais variados tipos de barulho, nas carroças e cachorros vadios. Esse é o mundo do Ms. Hulot, totalmente contrário ao mundo burguês moderninho da família do seu sobrinho. Jacques Tati, como eu há disse, é o maior revolucionário, por ser na verdade muito conservador: ele defende a natureza e a naturalidade bucólica do mundo antigo, das pequenas “villes” e dos bairros velhos e populares, contra o inferno bonito, limpo, amplo, silencioso e asseado – em uma só palavra: estéril – da urbe contemporânea, orgia do concreto e do metálico. No começo do filme, até o sol brilha mais no bairro popular do que no burguês, onde tudo é cinza: o paletó do Sr. Arpel, a fachada e os portões da casa, assim como da fábrica e da escola, o carro, o asfalto e os pavimentos internos, tudo é cinza. O próprio céu é cinza. A vida burguesa é cinza. A verdadeira riqueza das cores e dos infinitos matizes só encontramos em outro lugar...

Eis a mensagem positiva de Tati: a utopia não é algo inimaginável a ser conquistado sabe-se lá como. A utopia é aquilo que inadvertidamente deixamos para trás, aquilo que desprezamos. Nossa “civilização” está cada vez mais desenraizada. Por isso a força de um personagem como Ms. Hulot: ele representa a própria “joie de vivre” perfeitamente natural, desencanada. Por que nós não podemos desencanar também?

Filmografia de Jacques Tati:

Curtas:

Sparring Por Um Dia (“Soigne Ton Gaugle”). 1936. Filme dirigido por René Clément, com atuação de Jacques Tati.

Escola de Carteiros (“L’École dês Facteurs”). 1947.

Curso Noturno (“Cours du Soir”). 1967. Com Ms. Hulot.

Longas:

Jour de Fête. 1949.

As Férias do Ms. Hulot (“Lês Vacances de Monsieur Hulot”). 1953.

Meu Tio (“Mon Oncle”). 1958.

Playtime, Tempo de Diversão (“Play Time”). 1967.

As Aventuras de Monsieur Hulot no Trânsito Louco (“Trafic”). 1971.

Parade. 1974. Filme para a TV.


sábado, julho 21, 2007

Transformers


Transformers é diversão na certa. Precisa de mais? A nova produção de Michael Bay é, essencialmente, um filme infantil. É claro que nós, adultos intelectualizados, não gostamos de nos entregar a prazeres meramente infantis. Precisamos manter o poder e a rigidez sisuda de nossa consciência iluminista sempre no controle. Não podemos nos alienar; devemos ser sempre esclarecidos. Assim, podemos até tolerar – pessoalmente – filmes para crianças, contanto que tenham também conteúdos “adultos” (é o que têm feito os desenhos animados do tipo “Shrek”); desse modo, o filho se diverte, e o pai que o leva ao cinema também se diverte. Mas quem foi que disse que é um crime o adulto se entregar a uma fita simplesmente infantil, e divertir-se mesmo assim – ou melhor – a criança dentro dele que se diverte? Correndo o risco de parecer tão piegas quanto Steven Spielberg e – mais ainda – Michael Bay, eu digo que aquela criança que há dentro de todos nós precisa receber uns agrados e atenção de vez em quando. Isso é lugar-comum em fábulas cinematográficas e também está de acordo com a psicologia analítica. O tom com que algumas pessoas “inteligentes” desprezam as coisas infantis e “bobas” revela por si só um outro problema...

Em todo caso, Transformers é um caso curioso. O filme se baseia em uma famosa linha de brinquedos dos anos 80, que deu origem a desenhos animados e a histórias em quadrinhos. Já entregando a minha geração, eu me diverti muito com os robôs que se transformam em veículos, eu também tive roupa de cama dos Autobots e dos seus inimigos, os Decepticons (para falar a verdade, ainda tenho). Em princípio, os estúdios queriam adaptar para a tela grande os G. I. Joes (outra ainda mais famosa linha de brinquedos que teve diversas ramificações), que no Brasil da década de 80 eram conhecidos como Comandos em Ação. Mas, com a invasão dos EUA ao Iraque, esse projeto foi (prudentemente) deixado de lado. Então, a bola passou para Optimus Prime, Megatron, e companhia. O produtor Tom deSanto (X-Men e X-Men 2) explica o que interessou a ele:

I think it's going to be something the audience has never seen before. In all the years of movie-making, I don't think the image of a truck transforming into a 20-foot tall robot has ever been captured on screen. I also want to make a film that's a homage to 1980s movies and gets back to the sense of wonder that Hollywood has lost over the years. It will have those Spielberg-ian moments where you have the push-in on the wide-eyed kid and you feel like you're 10 years old even if you're 35.

Eu acho que vai ser algo que o público nunca viu antes. Em todos estes anos fazendo filmes, eu não creio que a imagem de um caminhão se transformando num robô de 20 pés de altura (mais ou menos 6 metros) tenha sido capturada na tela antes. Eu também quero fazer um filme que homenageie as produções dos anos 80 e restitua o sensação de maravilha que Hollywood tem perdido ao longo dos anos. O filme terá aqueles momentos “spielberguianos” em que o olhar da criança é destacado e estimulado, e você sentirá que tem 10 anos de idade, ao invés de 35.

Transformers, de fato, faz jus à meta do produtor. Mas não é a única produção relativamente atual que traz de volta aquela “maravilha” – nem é a que faz isso melhor. Steven Spielberg também foi escalado como produtor, e foi quem teve a idéia de convocar Michael Bay (Bad Boys I e II, A Rocha, Armageddom, Pearl Harbor, A Ilha) para dirigir. Porém, o diretor de Pearl Harbor não era lá muito fã dos robôs automotivos, achava a idéia de um filme baseado em brinquedos muito boba. Então, o grande e sutil Spielberg o convenceu do contrário, argumentando que se tratava de um filme sobre “um garoto e seu carro”. No final das contas, a mão do diretor de ET, o Extraterreste acabou pesando muito no resultado final da obra. Podemos até afirmar que Transformers tem dois diretores. De Spielberg, o filme tem o foco centrado na criança (na verdade, o protagonista é um adolescente) e na sua amizade com um carro “vivo” que vai além das palavras – alguém se lembrou de ET? Também a ele podemos atribuir as engraçadas e interessantes cenas dos robôs gigantes (os Autobots, que são os mocinhos) interferindo desastradamente no cenário e na vida cotidiana de um subúrbio familiar norte-americano: é bem legal ver os enormes robôs, verdadeiros Golems, tentando se esconder no quintal da casa de Sam, para evitar que os pais dele os descubram. Também prefiro atribuir a Spielberg uma outra qualidade: o humor sarcástico – emulando Homens de Preto (também produzido por ele) – encarnado pela figura do ótimo John Turturro, que faz um agente ultra-ultra secreto. Outras cenas também investem num humor bem interessante.

continuação de Transformers


Enfim, acho que as melhores qualidades de Transformers se devem a Steven Spielberg. Em muitos momentos do filme, a gente até esquece que é Michael Bay que se senta na cadeira de “director”. Mas, quando ele decide mostrar quem é que manda, fica difícil de olhar para a tela. O problema de Bay é que ele exagera aquelas técnicas cinematográficas que poderiam trazer de volta a “maravilha” de que fala Tom deSanto. O espectador minimamente esclarecido sente-se um idiota com purpurina jogada nos olhos o tempo todo. Michael Bay só pode agradar àqueles adolescentes com déficit de atenção ou analfabetos funcionais na linguagem audiovisual. É sofrível acompanhar o tempo todo aquelas panorâmicas absolutamente inúteis, que ficam girando ao redor das personagens e das coisas (para deixar a cena mais “dinâmica” e evitar “barriga”, é o que diria um cândido estudante de cinema); pior ainda é a trilha sonora, sublinhando, assinalando e empurrando goela abaixo do espectador toda a carga de “emoção” que o diretor quer dar à cena. É até hilário: quando Sam, em sala de aula, recebe a nota baixa do seu professor junto de uns acordes graves na trilha sonora para expressar “melhor” a “tragédia” do acontecimento; logo em seguida, o mau aluno começa a explicar para o mestre seus dramas pessoais, tentando convencê-lo a aumentar a nota: ouvimos então uma melodia triste e condescendente... O pior é que nem dá para dizer que Bay está sendo irônico. Que ridículo! Essa cena lembra alguns momentos de Olga (Brasil, 2004, Jayme Monjardim). Enfim, Michael Bay representa o pior do cinema dito “comercial” (o qual, em si só, não é algo simplesmente execrável).

Além da pieguice muito, mas muito mais exagerada e superficial do que nos filmes de Spielberg, outro elemento digno do diretor é o militarismo beligerante (tanto porque a produção teve apoio material das forças armadas dos EUA). A General Motors também deu uma mãozinha: só sei que, depois de ver Transformers, eu também quero para mim um Chevrolet Camaro!... (mesmo que não se transforme no dócil Bumblebee) Enfim, em termos estritamente cinematográficos, o único mérito aqui é (além, é claro, dos impressionantes efeitos especiais que põem no chinelo os robôs do desenho animado) a cena da batalha final, uma verdadeira orgia de metal e concreto: robôs gigantes que se transformam em veículos lutando entre si no centro de uma grande selva urbana, repleta de arranha-céus e carros, além de aviões e helicópteros do exército. O mísero ser humano – “bicho da terra, tão pequeno” no dizer de Camões – fica completamente perdido e quase invisível no meio de tudo isso (apesar das massas de população correrem desesperadas para lá e para cá); o homem, perto da máquina, não passa de formiga: há um curto plano em que o transformer líder do mal, Megatron, deixa isso bem claro através de um simples gesto.

Para encerrar, duas trivia curiosas: o filme aproveita muito bem a frase “There’s more than meet the eye” (“Há mais do que os olhos podem ver”), que é uma espécie de mote dos desenhos animados e se refere basicamente aos veículos que se transformam em robôs. O ator que faz a voz de Optimus Prime, o líder dos Autobots, chama-se Peter Cullen; ele dubla o mesmo personagem no desenho animado original. Já a voz de Megatron, líder dos Decepticons, é feita por Hugo Weaving (V de Vingança, trilogia O Senhor dos Anéis e trilogia Matrix).

sexta-feira, julho 20, 2007

Terra dos Mortos


Já fizeram muitos filmes de zumbis. Alguns, picaretagem total, como O Despertar dos Mortos (2004), de Zack Snyder; outros, até bons, como Extermínio (2003), de Danny Boyle, mas que não fazem mais do que seguir bem a cartilha do gênero. Apesar de tudo, basta ver as primeiras cenas de Terra dos Mortos para entender por que George Romero é o mestre. Mestre-inventor. No ambiente bucólico quase idílico de uma cidadezinha do interior dos EUA – eu digo “quase” porque a iluminação tenebrosa do anoitecer, junto do aspecto enferrujado e arruinado de todas as coisas, mostra que há algo de errado – vemos uma “banda” de zumbis “tocando” seus instrumentos no coreto da praça (o som bizarro que eles arrancam dos instrumentos é o que mais dá atmosfera e significação para a imagem), um casal de namorados (logicamente zumbis) passeando de mãos dadas, e um frentista que vai até a bomba de gasolina como se fosse abastecer algum veículo...

Este filme está repleto desses pequenos detalhes que, como eu disse ontem, são a marca estilística de George Romero. O início desta quarta (e última?) parte da saga dos mortos vivos é (quase?) tão estimulante quanto à abertura das duas fitas anteriores – só mesmo A Noite dos Mortos Vivos não tem um começo tão forte. Sem contar que apenas Terra dos Mortos nos dá um “update”, explicando o início e o andamento da tragédia (inclusive o fato de que o fenômeno é mundial), enquanto aparecem os créditos iniciais – não-interligados às primeiras imagens do próprio filme (o que também é novidade na série). De qualquer maneira, ao longo do filme inteiro, parece que sentimos por trás das imagens – principalmente daquelas que mostram os “pequenos detalhes” – a presença viva do cineasta, seu sorriso irônico que aponta com muito fascínio e interesse certas “coisas” para nós... Reconhecemos essa marca de estilo nos diretores que se envolvem mais pessoalmente com a sua obra, naqueles artistas que são muito movidos por uma quase fixa idéia pessoal. Dentre esses, um que eu também admiro muitíssimo (tanto porque ele também é profunda e sutilmente irônico) é Jacques Tati.

Vinte anos depois de ter feito seu último filme de zumbi, e depois de incontáveis epígonos, homenagens e picaretagens diversas, George Romero realiza Land of the Dead para mostrar que ainda está vivo e ainda é o mestre – deixando bem claro também por que ele é o mestre. O caráter humano dos mortos vivos, já esboçado em Dia dos Mortos, aqui adquire sua maior força. É incrível a figura do “Big Daddy” – o frentista que, como um autêntico líder político, conclama os seus companheiros e os guia rumo à “revolução”, ou seja, à invasão do condomínio fechado onde os vivos acreditam viver em plena segurança, como se nada de mais estivesse acontecendo lá fora... Os zumbis já aprenderam até mesmo a se comunicarem entre si de modo rudimentar (apesar de, no filme anterior, o zumbi Bub chegar pronunciar uma sentença completa: “Olá, tia Alicia!”).

O conteúdo político subversivo – marca registrada de Romero – continua: chamam muito a atenção as imagens do “Big Daddy”, desesperado, tentando libertar seus camaradas da ilusão das “sky flowers” (os zumbis também são massa de manipulação da “indústria cultural”). Os gritos de conclamação e de revolta de “Big Daddy” – principalmente quando ele vê seus correligionários sendo mortos – são surpreendentes. Do lado dos vivos, há um personagem que corresponde exatamente – em termos políticos – ao “Big Daddy”: trata-se de Mulligan, o “agitador”, que prega nas ruas da “periferia” contra os abusos e desmandos da “high society” (os poucos felizardos que vivem num arranha-céu ultra protegido e com todos os confortos da “antiga” civilização). Isso sem contar a "jihad" do personagem de John Leguizamo contra o de Dennis Hoper (o próprio diz, nos extras do DVD, que ele e o diretor basearam o seu personagem em Donald Rumsfield e na administração Bush).

Mas as melhores cenas são as da invasão desta “Alphaville” pelos mortos vivos: George Romero filma cada imagem com gosto. O expectador sente isso. É a verdadeira revolução... Eu chamei esse condomínio fechado de Alphaville: não é ele – e o próprio mundo de Terra dos Mortos – a própria e quase exata imagem do Brasil? É incrível a imagens dos passarinhos de plástico com seu canto eletrônico no hall do edifício... Não é esse o mundo e a vida das nossas elites? Ah, a ironia de Romero centrada nesses pequenos detalhes...

Para encerrar, dois fatos curiosos. O zumbi que aparece, de modo bem destacado, usando jaqueta de couro e parecendo um motoqueiro “easy rider”, é Tom Savini, que também apareceu no mesmo figurino – mas como vivo – em Despertar dos Mortos (ele era um dos motoqueiros vândalos que invadem o shopping center). Savini é o maquiador de Noite dos Mortos Vivos e dirigiu o seu remake, em 1990. Temos que dar parabéns aos japoneses que desenvolveram os jogos de vídeo-game da série Resident Evil. Todos os elementos ali: cenários, atmosfera, personagens e enredo são facilmente reconhecíveis nos filmes de George Romero. Aliás, esses jogos também são, a seu próprio modo, revolucionários, pois foram dos primeiros a trazer para o universo dos vídeo-games (cuja tecnologia aumentava cada vez mais e mais rápido, possibilitando tais revoluções) elementos cinematográficos: enredo roteirizado, personagens devidamente construídos como tais, criação de imagens usando técnicas da fotografia e da montagem audiovisuais. Assim, quando ouvi falar que fariam um filme de Resident Evil, fiquei bem entusiasmado, pois já fui esperando uma fita de zumbis no melhor estilo do mestre de Dia dos Mortos. Mas que nada! Esses filmes não se baseiam em Romero, e também não se inspiram nos jogos Resident Evil; emulam apenas a forma mais tradicional e arcaica de vídeo-games – essencialmente infantil – juntando-a com elementos de vídeo-clipe bem produzido...


quinta-feira, julho 19, 2007

Dia dos Mortos


A arte do cinema de George Romero aparece nos pequenos detalhes: são rápidos momentos em que a câmera vai mostrando coisas aqui e ali, sem fixar muito nelas, apenas o suficiente para percebermos que há um homem atrás da máquina filmadora que quer que nós vejamos algo. E essa visão provoca uma reflexão. Esses planos curtos, muitas vezes em close-up, estão presentes nos quatro filmes da série dos “mortos-vivos”.

Logo no início de Dia dos Mortos (1985), somos bombardeados com vários planos mostrando a “cidade-fantasma”, totalmente deserta (imaginamos que já se tenham passado no mínimo alguns meses desde o início do “apocalipse zumbi”). Vemos um monte de dinheiro espalhado sendo carregado pelo vento (!), enquanto que, na porta de um banco, um crocodilo monta guarda; também jogado na rua, a primeira página de um jornal, cuja manchete é: “THE DEAD WALK!”. Já não há mais qualquer sinal da civilização que, no filme anterior (Despertar dos Mortos – 1978), agonizava. É o pós-apocalipse. Talvez possamos dividir os filmes da série de acordo com o seguinte esquema:

Noite dos Mortos Vivos: os primeiros ventos que anunciam a tempestade.
Despertar dos Mortos: o auge da tormenta, que tudo toma e tudo devasta.
Dia dos Mortos: a calmaria após, as imagens decadentes do que ficou para trás.
Terra dos Mortos: a reconstrução (é o mais otimista de todos os filmes).

Lembremos que, nas duas últimas partes, a epidemia de zumbis ainda continua. Muito já se falou do filme-catástrofe. Romero criou a série-catástrofe, nos mesmos moldes do roman-fleuve francês (“romance-rio”): tratam-se de obras como A Comédia Humana, de Balzac, que são compostas de vários romances com enredos e personagens mais ou menos independentes e exclusivos, mas que se encadeiam dentro de uma mega-situação, um contexto que envolve a todos; o romance-rio é um grande painel desse contexto, como um rio que atravessa várias paragens, unindo-as e arrastando muitas coisas de um lugar para outro... Um grande romance composto por romances menores. Assim é o cinema de Romero: um grande e único filme (com toda a dignidade da epopéia) formado por diversas partes relativamente independentes, mas com conexões muito significativas.

Voltando ao começo: a abertura de Dia dos Mortos é a melhor de todos os filmes, no que diz respeito à fotografia e à montagem – apesar de as aberturas de Despertar... e de Terra dos Mortos também serem bastante estimulantes. Basta citar a cabeça (completamente deformada) de um zumbi que aparece na frente da câmera (colocada em contre-plongée – de baixo para cima), tapando o sol, enquanto se sobrepõe ao lado o letreiro do título do filme... Essa imagem é demais!

Entretanto, nesta terceira parte do épico apocalíptico de Romero, os zumbis são o de menos; é o filme em que eles menos aparecem – de fato, aparecem pouco, levando em consideração o tempo total da projeção. Aqui, o debate psicológico, político, social, enfim, a filosofia de George Romero aparece com muito mais força. Temos um grupo dividido entre militares e cientistas que ocupam um abrigo subterrâneo e estão no limite de um ataque de nervos. A tensão é fortíssima, qualquer faísca e eles se matam uns aos outros, pois estão presos ali sabe-se lá quanto tempo, sem ter qualquer notícia de como anda o mundo exterior (além da cidade deserta próxima). Os cientistas trabalham duro para explicar a “doença” dos zumbis, achando assim uma “cura”; ou, pelo menos, tentar condicioná-los a se “comportarem”, domesticando-os (ah, a ambição do homem iluminista!...). Vários zumbis têm que ser capturados para essas pesquisas perigosas, o que descontenta os militares, os quais buscam uma solução mais drástica, ou seja, militar...

Trocando em miúdos: de um lado se tem a arrogância estúpida da ciência; de outro, a arrogância estúpida da mentalidade bélica. Me digam se isso não continua definindo o atual estado de coisas, em nosso mundo “real”? Enfim, a subversão de Romero continua; outro momento provocante: o militar regando e cuidando carinhosamente de uns pezinhos de cannabis...

O abrigo subterrâneo faz parte de um imenso complexo onde estão armazenados, como numa “biblioteca de Babel”, os mais variados tipos de registros e de documentos das mais variadas áreas da sociedade norte-americana, incluindo negativos de obras cinematográficas importantes. É uma espécie de arca de Noé material. É interessantíssimo o longo e carregado discurso do piloto John (Terry Alexander), em que ele recomenda à Sarah (Lori Cardille) que jamais traga os seus filhos para redescobrirem os “tesouros” enterrados. Para ele, o apocalipse zumbi é um castigo divino pelos rumos que o homem deu à própria civilização. Essa fala longa, de muita especulação filosófica, fez-me lembrar dos filmes de Andrei Tarkovski – como Andrei Rublev e Solaris: só mesmo o horror absoluto ou o absolutamente inexplicável (essas duas coisas podem ainda estar ligadas) para tirar o homem da sua alienação cômoda do dia-a-dia e fazê-lo refletir sobre coisas mais sérias e mudar de atitude.

Quanto aos mortos-vivos, que, repito, são o que menos importa neste filme (menos ainda do que nos outros), aqui eles adquirem um caráter mais humano – e não só por causa da qualidade maior da maquiagem: chama a atenção as suas expressões de sofrimento. Há até um personagem zumbi (personagem central, eu digo): Bub. A importância de Bub para a mitologia dos zumbis de Romero é bem grande; a humanização dos mortos-vivos continuará e progredirá em Terra dos Mortos (2005). Tais coisas só encontramos nos filmes de “zumbis” de George Romero. Compreende-se o porquê de o cineasta ter Dia dos Mortos como seu filme preferido: das quatro partes, esta é a mais tensa e densa, em todos os aspectos que compõem o “DNA” do gênero criado por Romero – do qual ainda é o mestre supremo. Dia dos Mortos é pior do que apocalíptico: é claustrofóbico. Naturalmente, não há tanto da ironia presente no filme anterior; mesmo assim, ela está presente em um ou dois momentos.


terça-feira, julho 17, 2007

Despertar dos Mortos



Se Noite dos Mortos Vivos é um filme subversivo, Despertar dos Mortos (1978) é um filme de guerrilha... É nervoso! Muito mais carregado de conteúdo sócio-político altamente polêmico manifesto numa forma satírica bem corrosiva. O “despertar” leva às últimas conseqüências o caráter apocalíptico que é a marca registrada genial das histórias de zumbis de George Romero. O filme abre com as derradeiras – e totalmente caóticas – transmissões televisivas. É uma situação que todos nós conhecemos: aqueles supostos “especialistas” debatendo o problema sem que se chegue a qualquer consenso, particularmente no que concerne às soluções. É importante lembrar que, no primeiro filme, as redes comerciais de TV e de rádio insistiam que a população permanecesse na audiência para receber novas informações e orientações. No começo deste, os profissionais encarregados das transmissões discutem nervosamente se continuam ou não a manter na tela os endereços de abrigos comunitários, pois já se sabe que neles a situação já foi pro saco mesmo... Em “Night of the Living Dead”, a TV orientava os cidadãos a não saírem de casa em hipótese alguma; em “Dawn of the Dead”, a mensagem é de que ninguém deve ficar em casa... O caos é definitivo.

Paralelamente, testemunhamos uma invasão da polícia a um prédio habitado por pessoas do “andar de baixo”: negros, hispânicos e pobres em geral. Tal invasão não ocorre sem uma resistência armada dos habitantes mais “malandros”... Assim, a primeira batalha no filme não é entre os mortos e os vivos... As pessoas não querem deixar os seus lares, algumas ainda abraçam parentes transformados em zumbis (uma atitude, obviamente, letal). Um dos policiais se encontra num estado totalmente histérico, atirando e matando quem quer que veja pela frente, zumbi ou não. Outros executam sumariamente – mas com grande pesar – mortos-vivos que estavam sendo mantidos presos no porão por seus entes queridos. Ligado a essa cena, há um padre que diz uma frase bíblica que dá a dimensão da coisa toda: “When there’s no more room in Hell, the dead will walk the Earth” (“Quando não houver mais lugar no inferno, os mortos caminharão sobre a Terra”). Toda a seqüência é estonteante, é um horror que está longe de ser aquele terror gostoso e catártico das fitas de fantasia; o horror aqui é bem real, a situação está muito mais próxima da realidade de todos os dias dos telejornais... Novamente, os zumbis são, para Romero, apenas uma desculpa para falar de outras coisas...

E veja que é apenas o começo de um longo filme (142 minutos). Então, uma jornalista, seu namorado piloto e dois policiais embarcam em um helicóptero, procurando algum lugar melhor para “viver”. Com dificuldades para reabastecer a aeronave, o grupo desce sobre um shopping center e descobre que o local pode proporcionar uma subsistência segura e até confortável por um bom tempo. Instalam-se ali. Porém, eles precisam eliminar os zumbis do local e bloquear as entradas para impedir que outros venham. Temos aqui (e também mais para a frente, quando os mortos retomarem o shopping) os melhores exemplos da arte cinematográfica de Romero: diversos planos sucessivos mostrando os mortos-vivos caminhando pelos corredores, subindo e descendo desengonçadamente as escadas rolantes, esbarrando nas prateleiras das lojas, agarrando de qualquer jeito alguns produtos, amontoando-se desesperadamente e batendo as mãos contra as portas transparentes de outras lojas (fechadas), tudo isso ao som ambiente com aquelas melodias “de shopping”. Alguns planos dos zumbis se intercalam com planos mostrando os manequins das lojas. Isso é mais do que irônico, é profundamente sarcástico! É uma sátira – repito – nervosa à sociedade de consumo capitalista...

Esses planos recebem muito destaque no filme, até no final. Isto é: George Romero quis deixar bem evidente sua mensagem. Cenas equivalentes ocorrem em Terra dos Mortos (quando estes invadem o condomínio fechado que é o último refúgio dos vivos). Engraçado também é ver os quatro sobreviventes que ocupam o shopping center realizando como que sonhos de criança: saqueando à vontade as lojas e os bancos e vivendo naquele ambiente totalmente fechado e isolado como se estivessem no paraíso, parece que esquecidos de toda a catástrofe no mundo exterior... E ainda especulam os motivos de os zumbis quererem ficar dentro do shopping: parece que os mortos-vivos gostam de fazer algo, ou ficarem próximos de algo que na vida anterior deles era importante, algo de que eles gostavam e que definia suas existências... obviamente, nesse diálogos há muito do discurso do próprio Romero. Aqui também caberia um comentário social.

Se o mote de “Night” é o racismo, o mote de “Dawn” é o consumismo. Outra cena rica em ironia é a que mostra os “rednecks” (caipiras) do interior dos EUA caçando zumbis como se fosse um esporte de fim-de-semana; todo mundo junto festejando, comendo churrasco, tomando cerveja e brincando de tiro-ao-alvo com algum morto-vivo que eventualmente aparecesse no horizonte... A produção de Dawn of the Dead é de Dario Argento, mestre italiano do suspense e do horror, que também assina a trilha sonora e a montagem para os cinemas italianos, na qual parece ter deixado um pouco de lado o caráter satírico da edição de Romero (informação da Wikipédia). Originalmente, o final planejado pelo diretor era mais pessimista (assim ligando-se ao primeiro filme): os dois únicos sobreviventes deveriam se suicidar, ao invés de escaparem no helicóptero. Curiosa essa mudança de rumo. De qualquer maneira, o próprio George Romero declarou que o seu filme preferido é o terceiro da série: Dia dos Mortos (1985).


segunda-feira, julho 16, 2007

A Noite dos Mortos Vivos


O grande poeta e crítico literário norte-americano Ezra Pound, em seu ABC da Literatura, fala de dois tipos de escritores: os inventores, que simplesmente criam novos paradigmas, e os mestres, que dão perfeita continuidade a uma tradição já existente. George Romero, com os seus filmes de zumbis, está na intersecção das duas espécies de artistas. Por um lado, Romero traz a si (e lança até nós) todo o universo das fitas de horror, de monstros sanguinolentos – no caso, os mortos-vivos canibais, os zumbis, que remetem a muitas e variadas mitologias, embora a mais próxima da literatura e do cinema ocidentais seja a mitologia voodoo, que primeiro aparece no romance satírico O Zumbi do grande Peru (1697), do francês Pierre-Corneille; no cinema, o mais antigo “filme de zumbi” é White Zombie (1932), dirigido por Victor Halperin e estrelado por Bela Lugosi.

A mais remota referência mítica aos mortos comedores de carne humana dos vivos talvez se encontre na epopéia de Gilgamesh (lendário rei sumério que teria vivido entre 2750 e 2500 a.C.), considerada o mais antigo texto literário da humanidade (sua forma original é a de tábuas de argila com escrita cuneiforme; algumas dessas tábuas datam do século XX a.C.). No texto, a deusa Ishtar esbraveja as seguintes palavras proféticas:

Eu derrubarei os portões do mundo subterrâneo,
Eu arrancarei os batentes das portas e deixarei as portas caídas no chão,
E deixarei os mortos subirem e comerem os vivos!
E os mortos superarão em número os vivos!

Por outro lado, George Romero dá uma roupagem formal e temática completamente novas ao arquétipo (pois, sem dúvida nenhuma, os mortos-vivos têm grande potencial arquetípico) do zumbi: em primeiro lugar, o roteirista e diretor deixa de lado os elementos “voodoo”; inspirado pela ficção científica comum dos anos 50, Romero trata a questão da “epidemia de zumbis” como se fosse uma invasão alienígena – a qual, naturalmente, mobilizará toda a sociedade (particularmente os militares) um estado de emergência, de catástrofe que beira as raias do apocalíptico. Esta é a primeira grande invenção de George Romero: unir o apocalipse e o pós-apocalipse míticos das histórias de ficção científica como A Guerra dos Mundos (de H. G. Wells, filmada recentemente por Steven Spielberg) ao horror do sobrenatural, que, ainda assim, não é tão sobrenatural; Romero mantêm-se na chave científico-espacial, ao especular, em A Noite dos Mortos-Vivos, que a tragédia tenha sido causada pela forte e peculiar radiação que um satélite teria trazido de Vênus. O embasamento científico de fenômenos sobrenaturais é necessidade psíquica da cultura de nossos tempos, de acordo com Carl Gustav Jung. Mas os monstros de Romero não são extraterrestres, eles não vêm de fora, eles vêm de dentro: somos nós mesmos.

De qualquer maneira, o interessante aqui (estamos falando de A Noite dos Mortos Vivos, de 1968, o primeiro filme da série; mas muitas das conclusões podem se aplicar também às outras partes: Despertar dos Mortos – 1978 –, Dia dos Mortos – 1985 –, e Terra dos Mortos – 2005) é perceber que Romero, como nos grandes romances, trabalha nas duas frentes da experiência humana: a individual e a coletiva. No microcosmo individual, os filmes são como muitas fitas de horror: num foco narrativo bem próximo, bem subjetivo, temos uma pessoa, ou grupo pequeno de pessoas, perseguida pelo “outro” monstruoso, fantasmagórico, desconhecido. Já no macrocosmo coletivo, vemos toda a seriedade da situação do “dia do juízo”: a sociedade se esfacelando e agonizando devagar, sem que qualquer autoridade ou instituição consiga dar explicações ou soluções, ao ponto em que não há mais leis – apenas a da “selva”: é cada um por si e contra todos os outros; a barbárie e a selvageria histérica se instauram com todo o poder de uma libido que antes era reprimida; os vivos, os sobreviventes – que em princípio eram vítimas – tornam-se um perigo tão grande ou maior uns para os outros do que os mortos-vivos. Eis o verdadeiro embate: de um lado os mortos-vivos, de outro os “vivos-mortos” (disputa que ficará mais evidente, com toques de ironia e sátira, em Despertar dos Mortos).

continuação de A Noite dos Mortos Vivos


E aqui chegamos à segunda e mais importante invenção do mestre Romero: a epidemia de seus zumbis perfaz uma parábola política e social. Adaptando-a nos quatro filmes a contextos específicos (anos 60, 70, 80 e século XXI pós-11 de setembro), a mensagem continua rendendo. Muito já se falou sobre a carga alegórica dos morto-vivos de Romero, do que (e de quem) eles representam. Numa perspectiva psicológica, eles se constituem daqueles tão essenciais mas perigosos conteúdos do inconsciente que não estão integrados à consciência. Reprimidos ou abandonados como estão, esses “mortos” sempre voltam para nos “chamar a atenção”; ressentidos, nervosos e famintos (de atenção), eles vêm para nos devorar... A maneira como os zumbis (nos 4 filmes) agarram e devoram os corpos dos vivos tem certa conotação sexual, aqueles zumbis promovem autênticas orgias de luxúria e gula.

Logo no começo de A Noite dos Mortos Vivos, temos dois irmãos que vão visitar o túmulo do pai; só que eles fazem isso mais por imposição da mãe – o irmão, Johnny, demonstra clara e enfaticamente grande desprezo pelos mortos e pelas questões religiosas e sobrenaturais. Curiosamente, ele será a primeira vítima de um zumbi. George Romero explicou muito bem este começo: “The film opens with a situation that has already disintegrated to a point of little hope, and it moves progressively toward absolute despair and ultimate tragedy.” (“O filme abre com uma situação que já se desintegrou ao ponto da pequena esperança, e caminha progressivamente para o absoluto desespero e definitiva tragédia”) A “desintegração” é tanto psíquica quanto social.

Na dimensão social, os mortos-vivos são todos os excluídos da malha capitalista. O famoso crítico Robin Wood diz que o canibalismo de A Noite dos Mortos Vivos “represents the ultimate in possessiveness, hence the logical end of human relations under capitalism” (“representa o mais definitivo em possessão, que é a finalidade lógica das relações humanas dentro do capitalismo”). O próprio Romero deixou bem claro quem são seus zumbis: os imigrantes do terceiro mundo, os iraquianos (e os terroristas, assim como os islâmicos como um todo), os homossexuais, as feministas, os negros, ativistas dos direitos civis, ativistas ecológicos, enfim, o Outro renegado pela burguesia norte-americana. Veja o filme com atenção e surpreenda-se muito com o conteúdo subversivo... Ainda mais em 1968, com tudo acontecendo: Vietnã (a crítica apontou, na fotografia em preto e branco, influências dos tele-jornais de guerra, assim como na violência sanguinolenta de tripas e pedaços de corpos e nas operações de “search and destroy”); “maio de 68” em Paris, o assassinato de Martin Luther King (a discussão racial no filme de Romero é corajosa), etc...

É uma delícia ver, em A Noite dos Mortos Vivos e em Despertar dos Mortos, a inabilidade total, a completa trapalhada do governo, dos cientistas e intelectuais – os “savants” da nossa civilização iluminista –, dos militares, enfim, de qualquer instância ou instituição social em entender, explicar, controlar e resolver o problema da “epidemia”. Isso é muito atual, lembra bastante o “11 de setembro”, por exemplo.

Por fim, a questão racial em A Noite dos Mortos Vivos. Não era de jeito nenhum comum, no cinema norte-americano dos anos 60, uma aventura com o protagonista-herói-líder afro-americano; a personalidade do personagem também escapa de todos os estereótipos raciais ou racistas. Romero diz que não escalou o ator principal (Duane Jones, já falecido) só por ele ser negro, mas quem vê o filme fica com outra impressão... Ainda mais no final... Não contarei como termina a história (seria um spoiler grande demais), mas o desfecho foi uma das razões de a fita ser recusada em grandes distribuidoras, como a Columbia. Digamos que a obra de George Romero, como um todo, não é nem um pouco hollywoodiana.

Night of the Living Dead é um DVD raro de ser encontrado no Brasil. A única edição que conheço é a da Continental Home Vídeo (selo especializado em clássicos), que está esgotada (de acordo com a informação que recebi quando telefonei para lá, há uns 2 anos atrás). Mesmo assim, encontrei o DVD perdido em uma lojinha obscura do centro de São Paulo...

Não confundir a fita original (de 1968, em preto-e-branco) com o “remake” feito em 1990 (dirigido por Tom Savini, mas com roteiro do próprio Romero), que apresenta algumas sutis diferenças (além da colorização, é claro) e é mais fácil de ser encontrado em DVD no mercado.

terça-feira, julho 10, 2007

Vampyr


Em que gênero podemos colocar O Vampiro (“Vampyr” França / Alemanha, 1932, dir.: Carl Theodor Dreyer)? Será um filme de terror? De mistério? De fantasia? Um filme surreal, expressionista ou de qualquer outra vanguarda da moda? Qualquer uma dessas classificações tornaria o filme menor do que é, pois ele vai muito além de qualquer gênero narrativo ou estético particular. Por isso, vamos dizer apenas que Vampyr é um filme de poesia. Poesia lírica. Ponto.

Mas, afinal, o que é esse chamado cinema de poesia? As definições de poesia são muitas (assim como as suas qualidades), por isso, estou longe de pretender dar uma explicação definitiva; mesmo assim, eis o que eu sinto: cinema de poesia (assim como a própria poesia literária) é aquele dotado de uma linguagem e de uma atmosfera líricas (sem ser necessariamente subjetivas, pois sabemos que um poema “objetivo” pode ser profundamente lírico; leia-se A Maçã, de Manuel Bandeira, e O Elefante, de Carlos Drummond de Andrade, dentre muitos outros exemplos desses e de outros poetas), carregadas de figuras de linguagem (metáforas, metonímias, antíteses, hipérboles, etc), rimas visuais, aliterações e assonâncias “visuais” (a repetição de certos elementos), uma cadência rítmica quase musical. Mas também há recursos estilísticos não-literários, especificamente cinematográficos, que fazem a poesia de um filme: a maneira como a câmera capta de maneira meditativa o tempo e o espaço, procurando sempre a fotogenia de todas as coisas. O que é fotogenia?

A fotogenia é este aspecto poético extremo das coisas ou dos homens, suscetíveis de nos ser revelado pelo cinema. Louis Delluc

Vampyr é um dos filmes mais fotogênicos que já vi.

O cinema de poesia é prenhe de um conteúdo que transcende o cotidiano (sem o desprezar), manifesto em uma forma que foge o máximo possível do prosaico, do descritivo, do narrativo, ainda mais do dissertativo. A poesia não tem Razão; sua lógica é outra. A poesia sugere, intui, estabelece associações e correspondências que fazem parte da natureza do pensamento primitivo, mágico, mítico, religioso, e, finalmente, artístico. Tal é o cinema de poesia.

A epígrafe de Vampyr bem que poderia ser a maravilhosa frase de Abel Gance: “O cinema é a música da luz”. É exatamente o que vemos na tela. A luz canta e dança, junto com as sombras. A fotografia poética de Rudolph Maté e a iluminação onírica lembram Limite (1931), de Mário Peixoto, também profundamente poético e metafísico.

Ao lado da luz, que parece dotada de vida e vontade próprias, animada – dotada de anima = ânimo / alma –, temos, na película de Dreyer, as sombras, definitivamente animadas e independentes. É belo e clássico o baile das sombras fantasmagóricas. Vem-me imediatamente à cabeça as “sombras elétricas” (que é como os chineses primeiro chamavam o cinema). Sombras elétricas = almas elétricas. É a própria alma do cinema. Essas sombras com vida própria são autênticos espíritos (o assombrado), ou, numa chave psicológica, representações do inconsciente ou do seu lado mais “obscuro”; a sombra que cada um carrega dentro de si. No filme, ocorre o embate entre os poderes da luz (os vivos) e os da sombra (os mortos-vampiros), ambos possuidores de grande força anímica.

Vampyr é uma grande expressão do espírito romântico europeu. Mostra as aventuras do jovem Alan Gray, especialista em demonologia, a quem o próprio filme chama de "um sonhador, para quem as fronteiras entre o real e o imaginário tornaram-se obscuras". Seu vagar sem destino o leva a uma estalagem campestre, na qual ele começa a presenciar estranhos acontecimentos. Descobre a presença de um vampiro que está escravizando uma bela moça. Tenta libertá-la. Mas o espectador não pense que verá aqui aquele vampiro de capa preta e dentes caninos salientes. O poder vampiresco é puramente espiritual, ou psíquico – se preferir uma chave materialista / psicanalítica. Todo o filme caminha entre as nuvens do vago e do abstrato. Nas peripécias de Alan Gray, acabamos jogados dentro de um universo onírico povoado pelo incompreensível, e, a partir de certo momento até o final, a narrativa fica toda muito confusa. Quem gosta do bizarro, do surreal e dos labirintos narrativos de David Lynch, deve conhecer esta grande fonte.

O Vampiro, de Carl T. Dreyer, é um filme na passagem do mudo para o sonoro – assim como M, O Vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang, que discutimos ontem. Porém, diferentemente, deste último, o cineasta escandinavo faz a preferência pelo mudo. O filme é quase todo silencioso, com uma narrativa na forma daquelas legendas de tela inteira típicas da era muda. Os primeiros planos constituem uma assinatura estilística fundamental no cinema de Dreyer. Mas, se em Paixão de Joana D’Arc (1928) é o rosto humano destacado pela câmera próxima, em Vampyr chamam a atenção os primeiros e primeiríssimos planos de objetos (inanimados? veja-se a caveira ou a mão esquelética segurando o vidro de veneno).

Enfim, nem só de fotogenia vive o cinema. Depois de ver a obra-prima de Dreyer, podemos começar a falar de umbrogenia...


O Vampiro


O VAMPIRO

Charles Baudelaire – trad.: Ivan Junqueira

Tu que, como uma punhalada,
Em meu coração penetraste,
Tu que, qual furiosa manada
De demônios, ardente, ousaste,

De meu espírito humilhado,
Fazer teu leito e possessão
- Infame à qual estou atado
Como o galé ao seu grilhão,

Como ao baralho o jogador,
Como à carniça o parasita,
Como à garrafa o bebedor
- Maldita sejas tu, maldita!

Supliquei ao gládio veloz
Que a liberdade me alcançasse,
E ao veneno, pérfido algoz,
Que a covardia me amparasse.

Ai de mim! Com mofa e desdém,
Ambos me disseram então:
“Digno não és de que ninguém
Jamais te arranque à escravidão,

Imbecil! – se de teu retiro
Te libertássemos um dia,
Teu beijo ressuscitaria
O cadáver de teu vampiro!”

segunda-feira, julho 09, 2007

M, O Vampiro de Dusseldorf


Já estamos carecas de conhecer a virtuose estilística do Expressionismo e suas diversas ramificações: desde os grandes filmes noir da Hollywood clássica até as mais vagabundas películas de suspense / terror / policial. A técnica expressionista no cinema já foi muito acusada de gratuidade, conforme discuti num antigo post (“A imagem metafórica no Cinema”), embora, nos melhores casos, a solução estética seja carregada de sugestões. De qualquer maneira, ver um desses filmes vanguardistas é ter uma das melhores aulas de cinema que consigo imaginar. Quer alfabetizar-se na linguagem cinematográfica? Quer conhecer de fato o que é que o cinema tem de específico e de diferente com relação às outras artes? Muito simples: Assista a filmes como M, O Vampiro de Dusseldorf (“M”, Alemanha, 1931, dir.: Fritz Lang).

No raiar do cinema falado, esta obra notável do mestre realizador de Metrópolis (1927) e de Desejo Humano (1954), reúne em si o melhor dos dois mundos: reconhecemos tanto os melhores elementos expressivos dos filmes silenciosos, quanto utilizações sonoras (tanto ruídos quanto diálogos) cuja arte até hoje dificilmente é igualada. Vamos ver:

Logo no começo do filme, temos uma das mais antológicas cenas da Sétima Arte: a câmera vem acompanhando em panorâmica a menina Elise Beckmann, que caminha batendo no chão a sua bola. Ela pára na frente de um poste e fica batendo a bola num cartaz de “procura-se”, que se refere justamente ao serial killer de garotinhas (eis o “vampiro” de Dusseldorf). Vemos apenas a bola batendo no cartaz – que antítese magnífica! Então, chega pela lateral a sombra de um homem (que já intuímos ser o assassino), cobrindo metade do cartaz. Quanta expressividade nessas metonímias! (a bola, o cartaz, a sombra) Digam-me que cineasta contemporâneo possui essas sutilezas... Esta cena, de acordo com o professor Ismail Xavier, apresenta ligações muito próximas com a estilística de Alfred Hitchcock. Em ambos os cineastas, temos como preocupação-mor significar o máximo possível através de meios exclusivamente cinematográficos.

O assassino começa a conversar com a pequena Elise e a leva para passear. Aqui, tem-se um exemplo magnífico da montagem paralela oriunda de Griffith (veja-se a seqüência final de O Nascimento de Uma Nação) e que será aproveitada também por Hitchcock: enquanto o “vampiro” caminha com Elise pelas ruas, comprando-lhe balões, a mãe da menina espera ansiosa em casa, olhando para o relógio a todo momento, inquirindo os vizinhos, alegrando-se em vão quando tocam a campanhia (pois é apenas o carteiro). Os acontecimentos, seus dramas e seu suspense, vão sendo construídos lentamente através da montagem paralela. Na mesma seqüência, ocorre a versão cinematográfica do expediente literário do foco narrativo em 1ª ou 3ª pessoas: a mãe de Elise vai até o vão da escadaria em espiral (vemo-la pelas costas) e olha para baixo; então, vemos o que ela vê (câmera subjetiva). Este é outro expediente tipicamente hitchcockiano.

Ah, não se faz mais cinema como antigamente!... Ainda nesta (como já disse, longa) seqüência, a mãe preocupada vai até a janela e grita o nome da filha. Corte. Vários planos, então, sucedem-se – acompanhados do som dos gritos da mãe (veja a integração artística dos recursos sonoros à imagem) – mostrando a escadaria vazia, o pátio vazio, o prato (vazio) de Elise colocado sobre a mesa do jantar, e, finalmente, uns arbustos em algum lugar desconhecido de trás dos quais sai rolando a bola da menina Elise. Precisa mostrar mais alguma coisa?

Após mais este crime, a população da cidade, especialmente aqueles que têm filhas pequenas, entra em verdadeira paranóia, o que desemboca – sem surpresa – numa terrível caça às bruxas. Procura-se o assassino serial em cada esquina, basta que um cavalheiro se dirija a uma criança. Começamos aqui a ver o poder perigoso de uma coletividade assustada (que no final do filme será levado às últimas conseqüências). Ainda preciso ler o essencial De Caligari a Hitler: Uma História Psicológica do Cinema Alemão, de Siegfried Kracauer, pois, pelo que sei até agora, ele trata da prefiguração do nazismo nos filmes expressionistas alemães.

continuação de M, O Vampiro de Dusseldorf


Enfim, toda a sociedade se une para combater o assassino desconhecido (o que, entendido com muito cuidado, não deixa de ser belo e interessante, já que se trata de uma ameaça a todos; porém, o que acaba acontecendo é que todos projetam seu ódio e sua paranóia na figura do “monstro assassino”, e isso, como já disse tem conseqüências perigosas). Até mesmo o crime organizado se une à tarefa – já que eles estão sofrendo cada vez maiores prejuízos com o aumento e a rigidez constantes da vigilância e das batidas policiais (por causa do serial killer). Em montagem paralela (mais uma vez), vemos a reunião dos criminosos e a reunião das autoridades da polícia, ambas discutindo meios de capturar o “vampiro”: o corte seco que separa os dois acontecimentos na verdade os une como se fosse uma rima, ou seja, igualando a lei e o fora-da-lei em equivalência. Chama muito a atenção aqui o exagero expressionista da fumaça dos cigarros – todos fumam nas duas reuniões. Mas é o crime organizado, com todo o seu “poder paralelo” que chega até mesmo a mobilizar os mendigos, que levará a melhor na captura do psicopata.

Falando nos mendigos, outro exemplo de virtuosismo cinematográfico é quando a câmera passeia folgadamente pela sede da organização dos indigentes, focalizando aqui e ali cada grupo: uns separando bitucas de cigarros e charutos, outros restos de comida, alguns jogando cartas. É o olhar travando conhecimento total do ambiente; essa movimentação livre da câmera lembra A Grande Ilusão (1936), de Jean Renoir. Mais um exemplo da rica apropriação da nova tecnologia do sonoro: o psicopata é caracterizado, ao longo do filme, por uma certa melodia que ele assobia quando está em vias de cometer o seu crime; sua captura ocorre graças a um cego que vendera o balão a ele, quando estava com Elise Beckmann. O cego reconhece o assobio. Esse tipo de reconhecimento, muito apegado às coincidências, é típico da tragédia clássica.

Finalmente, a longa seqüência final do julgamento (o filme todo se organiza em torno de longas seqüências muito detalhadas e explicativas, o que lhe dá certo caráter de reconstituição documental, já que se baseia numa história real: o “vampiro de Dusseldorf” agiu nos anos 20). É um julgamento totalmente informal, conduzido pelo crime organizado – com a presença da população local – na obscuridade do porão de uma fábrica abandonada. O “juiz” procura fazer o réu lembrar, enxergar, falar, lidar, enfrentar os seus atos hediondos. Então, Peter Lorre (que interpreta “M”) dá um show! Seu discurso é incrível e temos aqui de novo o bom aproveitamento dos recursos sonoros. É curioso pensar no fato de que o “vampiro” não recebe nome próprio algum, apenas alcunhas: “vampiro”, “M”, “monstro”, “assassino”, “pervertido”, etc. Apesar de a polícia, por sua vez, ter chegado a ele graças ao registro de sua internação passada em um manicômio, o filme não revela o seu nome ou a sua história. Ele não é um indivíduo humano dotado da dignidade cabível. Apesar dos seus crimes horripilantes, ele não passa de alvo, de encarnação para as piores projeções psíquicas da comunidade. A sombra que tomaria conta da Alemanha está se adensando.

Ainda assim, é concedido ao réu um advogado de “defesa”. A coisa torna-se mais complexa, ainda mais ambígua e interessante. Os argumentos da acusação e da defesa discutem calorosamente os limites até hoje polêmicos entre justiça e vingança; entre punição e correção. Todos os argumentos, pontos de vista e fatos que povoam o debate, no Brasil atual por exemplo, sobre o problema da violência, particularmente sobre a pena de morte, estão no filme. De novo lá – e também aqui – o perigo da coletividade entregue a emoções primárias e de novo o perigo do nazismo, do qual não estamos tão distantes quanto gostaríamos de imaginar.

Será que eu conto o final? Veja o filme e surpreenda-se. E compare o seu desfecho com o fim que costumam levar muitos “vilões” em muitos filmes hollywoodianos da atualidade, até mesmo em desenhos animados. M, O Vampiro de Dusseldorf pode antecipar o nazismo, mas a posição que Fritz Lang toma em relação a ele é bem clara e reconfortante para nós. Infelizmente, o mesmo não pode ser dito de muitos, muitos filmes de Hollywood que tratam de crime e castigo. Isso é que é realmente assustador...

domingo, julho 08, 2007

As Vinhas da Ira


As Vinhas da Ira (“The Grapes of Wrath”, EUA, 1940) do grande, grande John Ford, é uma obra de arte que carrega e faz circular, no calor do seu próprio sangue, o autêntico DNA do clássico. Seus méritos são tão claros, o filme todo é tão acessível e bem organizado que chega a ser quase didático; sem, por outro lado, perder a sutileza que pedimos às obras-primas. Eis uma ótima dica de exibição para cineclubes, cine-debates e para todos os que se interessam por cinema e educação.

Nesta adaptação do famoso romance do norte-americano John Steinbeck, publicado em 1939 (um ano antes do filme, apenas) e ganhador do prêmio Pulitzer, o equilíbrio entre o típico e o alegórico, entre o particular e o universal, entre o social e o psicológico, entre o retrato jornalístico (objetivo) e o literário (subjetivo), entre a máquina e o homem, arrebata mente e coração do espectador. Fazendo coro com o que alguém já disse a respeito do grande cinema, As Vinhas da Ira é um daqueles filmes que fazem a gente olhar para o mundo com outros olhos. No espírito dos mais jovens, que ainda estão procurando e descobrindo o mundo como ele é e o seu papel individual nele, o filme pode exercer um efeito particularmente motivador (o que nos traz de novo às questões relativas a cinema e educação).

A força significativa está em que As Vinhas da Ira é um retrato ultra-realista e detalhado das migrações dos “sem-terra” norte-americanos dos anos 30, expulsos pelos bancos e corporações – ou seja, estruturas maquinais e “invisíveis” do moderno capitalismo financeiro – de suas terras que os avós conquistaram como pioneiros na expansão para o oeste. O romance original de John Steinbeck insere-se na linha do neo-realismo literário, que buscava a denúncia social inspirada por ideais marxistas (nesse aspecto, tanto o romance de Steinbeck, quanto o filme de John Ford possuem um lado evidente e decididamente “vermelho”; dificilmente, após a II Guerra Mundial, Hollywood permitiria que um filme assim fosse realizado). No Brasil, o romance regionalista da década de 30 é o que mais se aproxima dessa tendência, em escritores como Graciliano Ramos, Raquel de Queirós e o Jorge Amado na fase inicial.

Mas o filme trata de todas essas particularidades não como um “romance de tese” – típico do primeiro realismo e do naturalismo literário do século XIX. John Ford, à maneira do que faria o cinema neo-realista italiano, mostra o social pelo viés do psicológico, ou melhor, do humano. Não quero dizer “psicológico”, pois poderia fazer pensar que há aqui todo aquele peso da psicanálise, das ciências psicológicas, o que nos levaria de volta ao “romance de tese”. As Vinhas da Ira é carregado de um olhar profundamente humano, francamente subjetivo, empático, que sofre junto o sofrimento do outro e se alegra com a esperança, com o espírito que permanece sempre vivo, apesar de toda a privação material. Eis o belo do filme. E, graças a essa visão humana dos fatos, a obra de John Ford transcende as dimensões mais históricas, universaliza-se, torna-se uma parábola arquetípica de proporções riquíssimas quase infinitas.

Há muitos elementos do filme, tanto os literários quanto os especificamente cinematográficos, que atestam a dimensão alegórica. Como exemplo dos primeiros, temos as falas das personagens, que, em alguns momentos, tornam-se verdadeiros discursos (poderíamos fazer uma crítica negativa aqui, dizendo que aquelas pessoas não teriam o esclarecimento de visão e de pensamento, tampouco a articulação de linguagem necessários a tais discursos, que soariam, assim, inverossímeis, exemplo típico da voz ideológica do narrador-autor ventríloquo. Neste aspecto, a zoomorfização que ganham os personagens de Vidas Secas, de Graciliano Ramos seria mais adequada, embora haja o risco de se cair em preconceitos deterministas; enfim, isso tudo é muito complicado. A propósito, ainda não vi o filme de Nelson Pereira dos Santos). O monólogo de Tom Joad no fim do filme (o grande, grande Henry Fonda), o “filho pródigo” às avessas que tem que abandonar a família para protegê-la e a si mesmo, mostra-nos com toda a força do artista que absolutamente não interessam questões mesquinhas de “esquerda” ou de “direita”, e sim a luta universal do homem contra as forças que procuram derrubá-lo – dentre as quais se destaca o próprio homem, através do medo, da dúvida e da falta de esperança subjetivos (o homem que causa mal a si mesmo), e através da opressão material e objetiva exercida nas estruturas sociais (o homem que causa mal a outro homem). As Vinhas da Ira é uma grande afirmação do espírito humano (parece que o final otimista não está no livro de Steinbeck).

O discurso da matriarca da família Joad (Ma Joad, interpretada por Jane Darwell, que ganhou um Oscar por isso) também é altamente significativo, ela representa o verdadeiro arquétipo da Grande Mãe: a tragédia da família Joad é que ela foi expulsa, desenraizada violentamente da Mãe Terra, na qual nascera e sempre vivera; mesmo assim, a família (só) permanece unida, coesa e coerente física e psiquicamente, graças à presença da figura feminina da mãe natural, a Ma Joad, que, assim como a Mãe Terra, é expressão do arquétipo da Grande Mãe. A Mãe Terra: as cenas, no começo do filme, com o pobre diabo Muley também merecem ser lembradas; contrariando os novos donos, ele diz que nascer, viver e morrer em uma terra é o que faz com que seja nossa, e não um pedaço de papel escrito com letras bonitas. É a natureza contra a cultura: o papel, que vem originalmente da terra, representa em si todo o processo industrial que destrói a mesma terra-mãe, processo que corre violentamente rumo a uma segunda natureza, em parte maquinal (os tratores que derrubam as casas dos farmers), em parte invisível (as corporações e os bancos), em todo caso desumana. É cômico e trágico e penoso ver os pobres lavradores, em toda a sua ingenuidade natural, discutindo com os representantes e empregados dos novos donos da terra, perguntando e procurando desesperadamente quem é o “culpado”, com quem devem eles verdadeiramente reclamar, xingar, chorar, eventualmente bater e atirar com a espingarda. Admirável mundo novo!

continuação de As Vinhas da Ira


A figura do ex-pregador Casey (John Carradine) também tem muito sentido simbólico: ele é o louco que desperta a consciência alheia. O caminhãozinho da família Joad em seu êxodo quase bíblico: aquele caminhãozinho atravessando cidades hostis e desertos inóspitos rumo à terra prometida da Califórnia de onde escorrem laranjas e uvas (segundo o comovente sonho do vovô Joad) carrega todas as nossas esperanças como numa arca de Noé, aquela é a travessia da própria vida no dilúvio árido deste mundo. Esse caminhãozinho é uma imagem bastante equivalente à diligência em No Tempo das Diligências (“Stagecoach”), que John Ford realizara apenas um ano antes (1939). A mítica travessia: apenas pensando agora, rapidamente, consigo identificá-la também em Rastros de Ódio (“The Searchers”, 1956). Quem sabe lá no céu John Ford esteja fazendo filmes baseados em obras de João Guimarães Rosa, como Grande Sertão: Veredas, cuja última palavra é: travessia.

E a maravilha da estética do cinema clássico em As Vinhas da Ira? A fotografia de Gregg Toland é, para variar, majestosa. O cinegrafista também assina Cidadão Kane (“Citizen Kane”, 1941, de Orson Welles) e Os Melhores Anos de Nossas Vidas (“The Best Years of our Lives”, 1946, de William Wyler), obras essenciais no uso da profundidade de campo, elemento fundador e importantíssimo para toda uma estética cinematográfica, como não se cansou de assinalar André Bazin. N’As Vinhas da Ira, apreciamos a maneira como ele situa o caminhãozinho ou algum personagem na imensidão do cenário, o jogo de claro-escuro, sem contar algumas composições metafóricas que só encontramos no cinema clássico, por exemplo: a cena que mostra os tratores corporativos ocupando as terras dos camponeses. Há aqui uma sobre-impressão do plano geral mostrando os movimentos dos tratores com um plano em primeiríssimo plano mostrando as esteiras em movimento de um trator, como se este passasse por cima da própria tela; em seguida, esse plano sobre-impresso desaparece e vemos um imenso trator, em plongée (de baixo para cima), passar por cima da câmera, que adota o ponto de vista da própria terra (!) sendo vilipendiada. É o tour de force entre a máquina do mal (o trator) e a máquina do bem (o cinema enquanto arte), que defende e assume o ponto de vista das vítimas daquela.

Outra imagem ainda mais poderosa é quando o pobre Muley e a família não conseguem impedir o trator de derrubar a sua casa: em um único movimento lateral, a câmera parte dos olhares atônitos dos despejados para o chão à sua frente, onde vemos as sobras das personagens por cima do rastro do trator, seguindo-o até mostrar a máquina pondo ao chão a casa da família. Então, o cinegrafista volta para os olhares dos Muley e, em seguida, fixa mais uma vez a marca das esteiras do trator no chão, com as sombras dos despejados sobreposta, terminando aí a cena. O que significa esta última imagem, mostrada duas vezes, com destaque? Significa que o poder que sobrepuja os corpos-matéria não pode passar por cima das almas-espírito. As almas (sombras), em sua inefabilidade eterna sempre prevalecerão; o mundo continuará assombrado, não obstante todos os esforços da ciência e do progresso. Os espíritos sobrevivem, mas sem qualquer poder objetivo-físico sobre a matéria (as sombras apenas cobrem os rastros do trator, mas não os apagam, muito menos impedem os movimentos daquele); os espíritos apenas pairam desconsolados e desabrigados (que imagem da modernidade!). Como bem diz o próprio Muley: “I’m just a graveyard ghost!...”

Que o “fantasma” de John Ford continue assombrando o cinema, e cada vez mais!

sábado, julho 07, 2007

A Poderosa (Georgia Rule)

Eu prefiro muito, mas muito mais, ver um filme definitivamente odioso, isto é, um filme que seja forte o suficiente para provocar o ódio em mim, do que um filmeco fraco que, quando muito, provoca ligeira comichão subcutânea. Um filme fraco, seja simpático ou antipático, não traz inspiração para escrever uma crítica (ou resenha, ou o que quer que seja) nos moldes do que eu gosto de fazer. A graça do cinema – e de qualquer outra arte – é a experiência arrebatadora que ele pode proporcionar; é claro que a experiência não precisa ser tão arrebatadora assim, mas o caso é que alguns filmes parecem não trazer experiência alguma, simplesmente não causam qualquer efeito subjetivo no expectador, não fazem o menor transporte espiritual que seja. São filmes esquecíveis. Eis A Poderosa (“Geórgia Rule”, EUA, 2007, dir.: Garry Marshall).

Esta produção, do mesmo diretor de comédias folhetinescas como Uma Linda Mulher (“Pretty Woman, 1990), Noiva em Fuga (“Runaway Bride”, 1999) e O Diário da Princesa (“The Princess Diaries”, 2001), vale mais a pena ser conhecida pela ridícula polêmica em seus bastidores, orquestrada pela estrela bad girl Lindsay Lohan, que protagoniza o filme. A “gostosa” aqui recebeu uma carta de advertência – mais tarde divulgada na imprensa – do diretor do estúdio (James G. Robinson, Morgan Creek Productions), reclamando da sua contuta “descortês, irresponsável e anti-profissional”, dizendo ainda que a atitude da jovem atriz era a de uma “criança mimada” que “colocava em risco a qualidade do filme” (cá entre nós, muitas outras coisas colocam “em risco” a “qualidade” deste filme; o próprio filme é o maior perigo para si mesmo). Enfim, Lohan foi ameaçada de processo judicial se continuasse a atrasar a produção (agradecimentos ao IMDB).

Na frente das câmeras, o que acontece é mais ou menos o seguinte: Rachel (Lohan) é uma problem child recém saída da high school que é levada por sua mãe disfuncional e alcoólatra, Lilly (Felicity Huffman, o transformista de Transamérica), para passar umas “férias” na casa da avó ultra-disciplinadora, Geórgia (Jane Fonda, que está cada vez mais parecida fisicamente com o pai), numa cidadezinha mórmon do interior dos EUA. Poderia sair um filme muito bom disso, um grande drama feminino envolvendo três gerações, mais ou menos como Acontece nas melhores famílias (“It runs in the family”, EUA, 2003, dir.: Fred Schepisi), que não é nenhuma obra-prima, mas é simpático e minimamente memorável: temos nele os conflitos de três gerações masculinas – Kirk, Michael e Cameron Douglas. Mas não é isso o que acontece na família de Geórgia. A narrativa descamba em piadas totalmente sem graça e mal colocadas, enquanto que o aspecto dramático é de uma frivolidade digna de “novo-rico”. É preciso misturar humor e drama de maneira muito, mas muito mais cuidadosa – e isso não é fácil. Uma das críticas compiladas pelo site rottentomatoes afirma, na mosca, que em Georgia Rule, a comédia é sem graça e o drama é engraçado.

A coisa toda piora quando surge o plot do incesto. Aí fica tudo muito confuso e inverossímil. Seria mais verossímil se esse tema fosse trabalhado com mais dignidade, a partir de personagens e situações construídos com mais dignidade; dignidade narrativa, literária. Repito: da maneira como saiu, o filme é ou uma piada de mau gosto, ou um drama frívolo e volúvel. Mas o mais detestável mesmo, tanto porque é o que mais salta aos olhos – literalmente – é a figura de Lindsay Lohan. É difícil de engolir a atitude poser dela, pelo menos sendo ela dona daquela voz aguda e ríspida (que, expressando a personalidade “extrovertida” da personagem, fica extremamente irritante de se ouvir por 113 minutos) e daquele corpinho raquítico (apesar dos seios grandes – viva a mulher americana! – e do rosto bonito mas envelhecido demais para uma personagem de 17 anos). De qualquer maneira, a personagem casa adequadamente com a atriz, a julgar pelas notícias dos bastidores.

A personagem de Lohan possui, visivelmente, distúrbios psicológicos graves, mas o filme não faz mais do que mimá-la (por isso eu disse que este filme faz mais mal a si mesmo do que o comportamento “spoiled child” de Lindsay Lohan no set – assim não adianta o chefão do estúdio reclamar...). Parece que o filme passa a mão na cabeça dela e diz: “pobre menina rica!...” O pior é que, em (apenas) dois rápidos momentos, o roteiro quis dar a Rachel um caráter de menina atrevida-porque-é-brilhante: quando ela própria diz à avó que só estava lá porque terminara a high school antecipadamente e a mãe não aquentava ficar com ela em casa, e quando ela cita Ezra Pound (!!!). Mas, quando se vê o filme inteiro, a gente pensa: “Ah! Convenhamos!...” Não dá pra engolir. Enfim, é melhor eu parar de reclamar, senão começarei a entrar nos méritos do meu tipo de musa cinematográfica, que está muito, mas muito mais, para Natalie Portman (de corpo e alma) do que para Lindsay Lohan.

Acho que até me empolguei escrevendo este texto, mas, de qualquer modo, A Poderosa é um daqueles filmes que, daqui a seis meses, eu terei esquecido o título, em um ano eu já não me lembrarei quase nada do enredo, e ao cabo de dois anos a existência deste filme terá se extinguido completamente da minha cabeça e da minha experiência.

quinta-feira, julho 05, 2007

Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado


Esta seqüência mantém as mesmas qualidades do primeiro filme: personagens carismáticos, diálogos afiados, tiradas espertas, espírito de família; esse é o quarteto fantástico. Johnny Storm chega – todo feliz – com o uniforme mais parecendo macacão de piloto de fórmula 1, repleto de adesivos de marcas reais (!) mostrando os novos patrocinadores; sua irmã Sue sai com uma cara de “que absurdo!”; então, o nosso Tocha Humana exclama zombeteiro: “O que você tem contra o capitalismo?” A risada aí rola solta entre a platéia e eu não consigo deixar de me lembrar – com alegria – dos gibis dos X-Táticos (escritos pelo agudo Peter Milligan, que mostravam um grupo de “super-heróis” como golpe publicitário); e também me lembro – com tristeza – da genial idéia do nosso ex-prefeito de São Paulo, José Serra, de afixar “patrocínios” nos uniformes escolares de nossas crianças...

No entanto, há um momento em que o filme bem que poderia ficar sério: quando abate-se sobre o nosso pobre planeta azul a ameaça da aniquilação total, a ser perpetrada pelas mãos do impiedoso Galactus, com a ajuda do Surfista Prateado, o fiel arauto. Ganharíamos muito em dramaticidade se as horrendas preparações que o Surfista faz para a vinda de seu mestre fossem mostradas, em algumas cenas, do ponto de vista da população comum; isso seria particularmente interessante no final do filme, quando o Juízo Final torna-se evidente e (aparentemente) irreversível. Aqui, os roteiristas poderiam ter se inspirado no terceiro volume da maravilhosa série Marvels, publicada nos anos 90, que reconta a história da vinda de Galactus sob o ponto de vista das pessoas comuns, testemunhas passivas de uma verdadeira batalha entre deuses e titãs nos céus acima de suas cabeças.

A violentíssima antítese entre as proporções do ser devorador de mundos e as dos desafortunados porém corajosos terráqueos (dentre eles o quarteto fantástico) por si só já seria belíssima... Na história original, aos apelos do Sr. Fantástico para que poupasse a Terra, Galactus simplesmente joga o seguinte argumento: por um acaso vocês, humanos, atenderiam aos apelos de formigas?... Infelizmente, o filme não alcança tais altitudes. Mesmo assim, a cena que mostra a imensa cratera surgindo no rio Tamisa, no coração de Londres, é impressionante, assim como a perseguição do tocha Humana ao Surfista Prateado, verdadeiro tour de force.

Enfim, as significações alegóricas presentes nos gibis foram deixadas de lado. Nas histórias, Galactus só “consome” planetas cuja civilização tenha chegado em um ponto no qual esgotará inevitavelmente todos os recursos naturais, causando, junto com a poluição, o fim de si mesma – quiçá do planeta como um todo. Alguns fãs mais xiitas podem reclamar de Galactus não ser mostrado em sua forma original (que vem dos anos 60): um robô gigantesco, ou homem numa armadura robótica. Mas isso, em nossos dias, no cinema ainda por cima, ficaria meio ridículo, não? Convenhamos... A solução neste filme é ótima: Galactus é uma força animada da natureza, de proporções absolutamente gigantescas e de modo algum antropomórfica.

A maneira como o exército norte-americano lida com o Surfista Prateado traz à lembrança O Dia Em Que A Terra Parou (1951, Robert Wise), em que as forças militares dos Estados Unidos “enfrentam” o robô prateado que sai do disco voador. Neste Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado, digam-me se não é provocante o fato de o exército norte-americano prender o Surfista numa base (secreta?) na Sibéria (!) e usar um torturador chamado Sr. Sherman (!) para interrogá-lo. Apesar do que deixou de fazer em outros aspectos, tais sutilezas é que fazem o melhor deste filme.