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terça-feira, julho 24, 2007

continuação de Meu Tio


Outra cena deliciosa: os automóveis circulando lado a lado no trânsito, tudo bem organizado... É uma imagem evidentemente irreal, mas satiriza imensamente os sonhos de “ordem e progresso”. Ainda dentro da ordem, vê-se que a fachada da escola e da fábrica são idênticas. Mas o mais interessante é a casa da família Arpel: Jacques Tati tira um sarro violento da frieza, da feiúra, do desconforto, do mau-gosto, enfim, da desumanidade da arquitetura e do design modernos... Depois de ver Meu Tio, só aumentou em mim a repugnância por coisas do tipo Rui Ohtake ou o velho Oscar Niemeyer. Por exemplo, o hotel Unique, em São Paulo (para quem nunca viu, o prédio parece uma fatia de melancia), é uma imagem de tamanha violência na paisagem urbana quanto o edifício “neo-clássico” da mega-boutique Daslu, além de tantos outros. Ms. Hulot é verdadeiramente iconoclasta e revolucionário quando vira ao contrário o “sofá” moderninho para que possa dormir nele mais confortavelmente... Viva Jacques Tati!

Isso sem falar nos aparelhos eletro-eletrônicos: o imenso peixe metálico no quintal do qual sai um jato d’água com som de alguém que está se afogando, dispositivo esse que só é ligado pela Sra. Arpel quando aparece na casa alguma visita “de valor”; todo o maquinário da cozinha, que parece ser dotado de uma vontade própria maléfica contra o Ms. Hulot; o melhor é o portão automático da garagem, presente de casamento para o Sr. Arpel, que deixará trancados dentro dela o casal aniversariante, culpa do pequeno cachorrinho Duque, que passa inadvertidamente na frente do sensor que controla a abertura. Entretanto, o que importa nessa casa maluca é que tudo seja absolutamente moderno e que, nas palavras da Sra. Arpel: “Tout comunique!”

No universo de Tati, a bizarrice moderna está nos antípodas do mundo amado e defendido pelo criador do Ms. Hulot: a desorganização orgânica, viva e humana do bairro antigo e popular. Lá, a vida pulsa e pulula nos prédios velhos e descascados, nas pessoas que circulam pela rua, em toda a orquestração caótica dos mais variados tipos de barulho, nas carroças e cachorros vadios. Esse é o mundo do Ms. Hulot, totalmente contrário ao mundo burguês moderninho da família do seu sobrinho. Jacques Tati, como eu há disse, é o maior revolucionário, por ser na verdade muito conservador: ele defende a natureza e a naturalidade bucólica do mundo antigo, das pequenas “villes” e dos bairros velhos e populares, contra o inferno bonito, limpo, amplo, silencioso e asseado – em uma só palavra: estéril – da urbe contemporânea, orgia do concreto e do metálico. No começo do filme, até o sol brilha mais no bairro popular do que no burguês, onde tudo é cinza: o paletó do Sr. Arpel, a fachada e os portões da casa, assim como da fábrica e da escola, o carro, o asfalto e os pavimentos internos, tudo é cinza. O próprio céu é cinza. A vida burguesa é cinza. A verdadeira riqueza das cores e dos infinitos matizes só encontramos em outro lugar...

Eis a mensagem positiva de Tati: a utopia não é algo inimaginável a ser conquistado sabe-se lá como. A utopia é aquilo que inadvertidamente deixamos para trás, aquilo que desprezamos. Nossa “civilização” está cada vez mais desenraizada. Por isso a força de um personagem como Ms. Hulot: ele representa a própria “joie de vivre” perfeitamente natural, desencanada. Por que nós não podemos desencanar também?

Filmografia de Jacques Tati:

Curtas:

Sparring Por Um Dia (“Soigne Ton Gaugle”). 1936. Filme dirigido por René Clément, com atuação de Jacques Tati.

Escola de Carteiros (“L’École dês Facteurs”). 1947.

Curso Noturno (“Cours du Soir”). 1967. Com Ms. Hulot.

Longas:

Jour de Fête. 1949.

As Férias do Ms. Hulot (“Lês Vacances de Monsieur Hulot”). 1953.

Meu Tio (“Mon Oncle”). 1958.

Playtime, Tempo de Diversão (“Play Time”). 1967.

As Aventuras de Monsieur Hulot no Trânsito Louco (“Trafic”). 1971.

Parade. 1974. Filme para a TV.


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