“Hey, Buddy... Would you stake a fellow american to a meal?” Humphrey Bogart é o rei das “catch phrases”. Se a maior parte das falas registradas do ator estão em Casablanca (1942, dir.: Michael Curtiz), esta aqui, de O Tesouro de Sierra Madre (“The Treasure of Sierra Madre”, EUA, 1948), obra-prima absoluta de John Huston, também entrará para a antologia. Esse filme tem a força e a ingenuidade da visão de mundo e da técnica artística que só encontramos mesmo no cinema clássico. O Tesouro de Sierra Madre é até didático em seu classicismo. Essa forma de simplicidade erudita (a contradição é apenas aparente; sabemos que os grandes poetas disfarçam em suas obras a sofisticação por trás de uma atmosfera de naturalidade), onde tudo é devidamente pesado e calculado para provocar um efeito contundente mas atingido de maneira sutil (de novo, a sutileza é um dos grandes diferenciais das grandes realizações artísticas) pode não conseguir chamar a atenção das nossas sensibilidades pós-modernas: no mundo pós 11 de setembro já mandamos as sutilezas pra casa do caralho... Mesmo assim – e talvez por isso mesmo – é que o cinema clássico anterior a 1950 merece ser observado com um carinho especial. Tais filmes são as melhores e mais essenciais aulas de cinema. Um dia escreverei por que não gosto de Terra em Transe (Brasil, 1967, dir.: Glauber Rocha) e por que prefiro a ele muito mais O Pagador de Promessas (Brasil, 1962, dir.: Anselmo Duarte); mas os motivos já ficam aqui esboçados.
Voltando a John Huston, em O Tesouro de Sierra Madre encena-se de maneira quase neo-realista (a produção foi filmada “in loco”) a vida difícil de vagabundos / indigentes / desempregados norte-americanos numa cidade do México (Tampico). Esses homens são pobres-diabos que têm que vender o almoço para comprar a janta: vão sobrevivendo de pequenos e temporários trabalhos – muitos dos quais revelam-se como golpes – e de esmolas. Mas quando surge a idéia e a oportunidade de partirem para o ramo da garimpagem do ouro, três deles: Dobbs, Curtin e Howard (respectivamente: Humphrey Bogart, Tim Holt e Walter Huston) terão suas vidas viradas de cabeça para baixo. Para o melhor e para o pior.
O “Tesouro” de Sierra Madre – o título já carrega a ironia que se mostrará maravilhosamente no fim do filme; o “tesouro” efetivamente conquistado não se revelará aquilo que os garimpeiros esperam – organiza-se todo em torno do signo da selvageria. É gritante a selvageria urbana de Tampico, em acorde com a selvageria imensamente hostil das zonas áridas do garimpo (a natureza selvagem) repletas de bandidos assaltantes (o elemento humano da barbárie). O mote do filme é o perigo: o perigo na civilização, no homem: a indiferença entre as classes, os golpes de empregadores maliciosos e outras diferentes formas de bandidagem; e o perigo na natureza: animais selvagens, ambientes inóspitos. A seminal frase do jagunço Riobaldo, no Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa, também poderia ser aplicada aqui: “Viver é muito perigoso...”
Entre a frigideira e o fogo, os três miseráveis correm à natureza selvagem buscar o ouro que será transformado nas jóias que representam a faceta mais ostensiva da selvageria da civilização. Mas neste processo de transformação quase alquímica (o elemento concreto natural que se transfigurará nos mais abstratos elementos humanos: a riqueza, a beleza, o poder, a felicidade... – olha o quanto podemos extrair do mero ouro!), o ouro que ainda é abstrato (tornar-se-á concreto para ser novamente abstraído), pois ainda é pura esperança de ser encontrado, trabalho de ser garimpado, ideal a ser materializado, esse ouro não é sequer pó ainda (esta é a forma em que é prospectado). Esse ouro que não passa de sonho cultivado já vai transformando em selvageria o espírito do garimpeiro ganancioso e inseguro. Eis a maior das alquimias presentes no filme. Outro signo para O Tesouro de Sierra Madre: transformação. John Huston, o grande alquimista! Mas trata-se de uma alquimia inversa: não são as coisas que se transformam em ouro, mas este que tudo transforma (em coisas piores). Não é evolução, mas involução, decadência, corrupção, corrosão (termo químico que cai muito bem ao filme).
Mas também tem um outro lado: o mesmo ouro que é maldição e destruição – a “maldição” de Sierra Madre – corrosivo como ácido, também é metáfora para os mais altos tesouros humanos desta vida; como diz o velho Howard, o ouro “não implora para ser achado”; é preciso procurá-lo, encontrá-lo, e sobretudo reconhecê-lo, com muito cuidado e paciência, pois o ouro verdadeiro não é exatamente sólido, tampouco brilha (Dobbs e Curtin constatam sabiamente que ele é como areia). Os verdadeiros tesouros se disfarçam de coisas sem valor; isso é quase cristão. O “ouro” de verdade não corresponde à imagem da nossa fantasia. Esta, só enxergaremos no “ouro dos tolos” (fool’s gold): eis o perigo. Mas o uso conotado que fazemos da palavra “garimpar”, nas mais diversas circunstâncias, já explica a lição.
Humphrey Bogart dá um show! É a sua melhor atuação. Toda a masculinidade rude do homem aparece muito bem em seu personagem deste filme, muito bem adequada ao cenário também rude. Aqui, não há para a feiúra charmosa de Bogart nenhuma Ingrid Bergman, nenhuma Katherine Hepburn ou Lauren Bacall. O Tesouro de Sierra Madre é um filme de macho. De fato, o único ser do sexo feminino que aparece e tem fala é uma companheira do golpista perseguido por Dobbs e Curtin: a cena dela dura uns 15 segundos dentro dos 126 minutos do filme. Walter Huston (pai do diretor John Huston) também é grande como a figura arquetípica do velho sábio: o profeta, o mestre, o ancião experiente, o “médico” curandeiro que será eleito como autêntico sacerdote, líder e guia máximo da aldeia indígena simples cuja uma das crianças ele salva da morte (o que corrobora e potencializa o caráter arquetípico do personagem). É bela – ainda mais para os anos 40 – a consciência ecológica do velho Howard: após terem garimpado todo o ouro que queriam, ele faz questão de desmontar a mina e restaurar a montanha ao que ela era antes, um sinal de respeito e gratidão.
Os dois parágrafos acima já vão nos mostrando que O Tesouro de Sierra Madre, apesar de ser muito macho e selvagem, é também humano e sensível em alguns momentos fundamentais: quando os três garimpeiros lêem a carta da esposa do “invasor” que eles estavam prestes a matar (mas os bandidos fizeram esse “favor” primeiro). Depois, dois deles resolvem dar ¼ do seu ouro para a viúva. Mas a melhor cena é mesmo a do “milagre”, em que Walter Huston ressuscita um garoto afogado, numa aldeia indígena de pessoas absolutamente simples.
Voltando a John Huston, em O Tesouro de Sierra Madre encena-se de maneira quase neo-realista (a produção foi filmada “in loco”) a vida difícil de vagabundos / indigentes / desempregados norte-americanos numa cidade do México (Tampico). Esses homens são pobres-diabos que têm que vender o almoço para comprar a janta: vão sobrevivendo de pequenos e temporários trabalhos – muitos dos quais revelam-se como golpes – e de esmolas. Mas quando surge a idéia e a oportunidade de partirem para o ramo da garimpagem do ouro, três deles: Dobbs, Curtin e Howard (respectivamente: Humphrey Bogart, Tim Holt e Walter Huston) terão suas vidas viradas de cabeça para baixo. Para o melhor e para o pior.
O “Tesouro” de Sierra Madre – o título já carrega a ironia que se mostrará maravilhosamente no fim do filme; o “tesouro” efetivamente conquistado não se revelará aquilo que os garimpeiros esperam – organiza-se todo em torno do signo da selvageria. É gritante a selvageria urbana de Tampico, em acorde com a selvageria imensamente hostil das zonas áridas do garimpo (a natureza selvagem) repletas de bandidos assaltantes (o elemento humano da barbárie). O mote do filme é o perigo: o perigo na civilização, no homem: a indiferença entre as classes, os golpes de empregadores maliciosos e outras diferentes formas de bandidagem; e o perigo na natureza: animais selvagens, ambientes inóspitos. A seminal frase do jagunço Riobaldo, no Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa, também poderia ser aplicada aqui: “Viver é muito perigoso...”
Entre a frigideira e o fogo, os três miseráveis correm à natureza selvagem buscar o ouro que será transformado nas jóias que representam a faceta mais ostensiva da selvageria da civilização. Mas neste processo de transformação quase alquímica (o elemento concreto natural que se transfigurará nos mais abstratos elementos humanos: a riqueza, a beleza, o poder, a felicidade... – olha o quanto podemos extrair do mero ouro!), o ouro que ainda é abstrato (tornar-se-á concreto para ser novamente abstraído), pois ainda é pura esperança de ser encontrado, trabalho de ser garimpado, ideal a ser materializado, esse ouro não é sequer pó ainda (esta é a forma em que é prospectado). Esse ouro que não passa de sonho cultivado já vai transformando em selvageria o espírito do garimpeiro ganancioso e inseguro. Eis a maior das alquimias presentes no filme. Outro signo para O Tesouro de Sierra Madre: transformação. John Huston, o grande alquimista! Mas trata-se de uma alquimia inversa: não são as coisas que se transformam em ouro, mas este que tudo transforma (em coisas piores). Não é evolução, mas involução, decadência, corrupção, corrosão (termo químico que cai muito bem ao filme).
Mas também tem um outro lado: o mesmo ouro que é maldição e destruição – a “maldição” de Sierra Madre – corrosivo como ácido, também é metáfora para os mais altos tesouros humanos desta vida; como diz o velho Howard, o ouro “não implora para ser achado”; é preciso procurá-lo, encontrá-lo, e sobretudo reconhecê-lo, com muito cuidado e paciência, pois o ouro verdadeiro não é exatamente sólido, tampouco brilha (Dobbs e Curtin constatam sabiamente que ele é como areia). Os verdadeiros tesouros se disfarçam de coisas sem valor; isso é quase cristão. O “ouro” de verdade não corresponde à imagem da nossa fantasia. Esta, só enxergaremos no “ouro dos tolos” (fool’s gold): eis o perigo. Mas o uso conotado que fazemos da palavra “garimpar”, nas mais diversas circunstâncias, já explica a lição.
Humphrey Bogart dá um show! É a sua melhor atuação. Toda a masculinidade rude do homem aparece muito bem em seu personagem deste filme, muito bem adequada ao cenário também rude. Aqui, não há para a feiúra charmosa de Bogart nenhuma Ingrid Bergman, nenhuma Katherine Hepburn ou Lauren Bacall. O Tesouro de Sierra Madre é um filme de macho. De fato, o único ser do sexo feminino que aparece e tem fala é uma companheira do golpista perseguido por Dobbs e Curtin: a cena dela dura uns 15 segundos dentro dos 126 minutos do filme. Walter Huston (pai do diretor John Huston) também é grande como a figura arquetípica do velho sábio: o profeta, o mestre, o ancião experiente, o “médico” curandeiro que será eleito como autêntico sacerdote, líder e guia máximo da aldeia indígena simples cuja uma das crianças ele salva da morte (o que corrobora e potencializa o caráter arquetípico do personagem). É bela – ainda mais para os anos 40 – a consciência ecológica do velho Howard: após terem garimpado todo o ouro que queriam, ele faz questão de desmontar a mina e restaurar a montanha ao que ela era antes, um sinal de respeito e gratidão.
Os dois parágrafos acima já vão nos mostrando que O Tesouro de Sierra Madre, apesar de ser muito macho e selvagem, é também humano e sensível em alguns momentos fundamentais: quando os três garimpeiros lêem a carta da esposa do “invasor” que eles estavam prestes a matar (mas os bandidos fizeram esse “favor” primeiro). Depois, dois deles resolvem dar ¼ do seu ouro para a viúva. Mas a melhor cena é mesmo a do “milagre”, em que Walter Huston ressuscita um garoto afogado, numa aldeia indígena de pessoas absolutamente simples.
Essa é a melhor cena? Minto. Onde estou com a cabeça? O final é impagável! Nas palavras do velho Howard: “O ouro voltou para a montanha de onde o tiramos...” Justiça poética: a imagem da ventania carregando poeira e ouro em pó indistintamente. É a efemeridade da ganância. Porém, os justos ainda terão suas recompensas e consolações, ainda que em formas inesperadas e irônicas. Já os injustos, assim como o ouro, estão destinados a retornar ao pó da terra (de novo a dimensão cristã): é a imagem de Humphrey Bogart ensandecido e decadente, com o rosto coberto de poeira e terra, antes de tentar limpá-lo na poça d’água suja de sua consciência, justamente na qual verá refletido o rosto do bandido que o fará pagar por seus crimes (a poesia de John Huston supera-se a si mesma). O mesmo bandido, ao pagar os seus próprios crimes, cavará a própria sepultura na terra poeirenta, antes de ser fuzilado pelos “federales”. Filme árido... Walter Huston bem que avisou: “a água pode ser mais preciosa do que o ouro...”
Saiu em DVD um dos meus filmes favoritos de Huston: Moby Dick, também uma jornada destinada a fracassar, mas onde vale a aventura, no final das contas. Pena que o DVD seja tão pobrezinho de extras, ao contrário do de Sierra. Um abraço.
ResponderExcluirEvoé, errante André...
ResponderExcluirAcertou com este blog!
Vou divulgá-lo. Incluí um link para ele lá no meu blog. Acho que você não frequenta porque não comenta, passe por lá de vez em quando. Saudades, amigo!
Abreijo textual
Davis
Cara, volta para o blog!!!!
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