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sexta-feira, julho 27, 2007

O Tesouro de Sierra Madre


“Hey, Buddy... Would you stake a fellow american to a meal?” Humphrey Bogart é o rei das “catch phrases”. Se a maior parte das falas registradas do ator estão em Casablanca (1942, dir.: Michael Curtiz), esta aqui, de O Tesouro de Sierra Madre (“The Treasure of Sierra Madre”, EUA, 1948), obra-prima absoluta de John Huston, também entrará para a antologia. Esse filme tem a força e a ingenuidade da visão de mundo e da técnica artística que só encontramos mesmo no cinema clássico. O Tesouro de Sierra Madre é até didático em seu classicismo. Essa forma de simplicidade erudita (a contradição é apenas aparente; sabemos que os grandes poetas disfarçam em suas obras a sofisticação por trás de uma atmosfera de naturalidade), onde tudo é devidamente pesado e calculado para provocar um efeito contundente mas atingido de maneira sutil (de novo, a sutileza é um dos grandes diferenciais das grandes realizações artísticas) pode não conseguir chamar a atenção das nossas sensibilidades pós-modernas: no mundo pós 11 de setembro já mandamos as sutilezas pra casa do caralho... Mesmo assim – e talvez por isso mesmo – é que o cinema clássico anterior a 1950 merece ser observado com um carinho especial. Tais filmes são as melhores e mais essenciais aulas de cinema. Um dia escreverei por que não gosto de Terra em Transe (Brasil, 1967, dir.: Glauber Rocha) e por que prefiro a ele muito mais O Pagador de Promessas (Brasil, 1962, dir.: Anselmo Duarte); mas os motivos já ficam aqui esboçados.

Voltando a John Huston, em O Tesouro de Sierra Madre encena-se de maneira quase neo-realista (a produção foi filmada “in loco”) a vida difícil de vagabundos / indigentes / desempregados norte-americanos numa cidade do México (Tampico). Esses homens são pobres-diabos que têm que vender o almoço para comprar a janta: vão sobrevivendo de pequenos e temporários trabalhos – muitos dos quais revelam-se como golpes – e de esmolas. Mas quando surge a idéia e a oportunidade de partirem para o ramo da garimpagem do ouro, três deles: Dobbs, Curtin e Howard (respectivamente: Humphrey Bogart, Tim Holt e Walter Huston) terão suas vidas viradas de cabeça para baixo. Para o melhor e para o pior.

O “Tesouro” de Sierra Madre – o título já carrega a ironia que se mostrará maravilhosamente no fim do filme; o “tesouro” efetivamente conquistado não se revelará aquilo que os garimpeiros esperam – organiza-se todo em torno do signo da selvageria. É gritante a selvageria urbana de Tampico, em acorde com a selvageria imensamente hostil das zonas áridas do garimpo (a natureza selvagem) repletas de bandidos assaltantes (o elemento humano da barbárie). O mote do filme é o perigo: o perigo na civilização, no homem: a indiferença entre as classes, os golpes de empregadores maliciosos e outras diferentes formas de bandidagem; e o perigo na natureza: animais selvagens, ambientes inóspitos. A seminal frase do jagunço Riobaldo, no Grande Sertão: Veredas de João Guimarães Rosa, também poderia ser aplicada aqui: “Viver é muito perigoso...”

Entre a frigideira e o fogo, os três miseráveis correm à natureza selvagem buscar o ouro que será transformado nas jóias que representam a faceta mais ostensiva da selvageria da civilização. Mas neste processo de transformação quase alquímica (o elemento concreto natural que se transfigurará nos mais abstratos elementos humanos: a riqueza, a beleza, o poder, a felicidade... – olha o quanto podemos extrair do mero ouro!), o ouro que ainda é abstrato (tornar-se-á concreto para ser novamente abstraído), pois ainda é pura esperança de ser encontrado, trabalho de ser garimpado, ideal a ser materializado, esse ouro não é sequer ainda (esta é a forma em que é prospectado). Esse ouro que não passa de sonho cultivado já vai transformando em selvageria o espírito do garimpeiro ganancioso e inseguro. Eis a maior das alquimias presentes no filme. Outro signo para O Tesouro de Sierra Madre: transformação. John Huston, o grande alquimista! Mas trata-se de uma alquimia inversa: não são as coisas que se transformam em ouro, mas este que tudo transforma (em coisas piores). Não é evolução, mas involução, decadência, corrupção, corrosão (termo químico que cai muito bem ao filme).

Mas também tem um outro lado: o mesmo ouro que é maldição e destruição – a “maldição” de Sierra Madre – corrosivo como ácido, também é metáfora para os mais altos tesouros humanos desta vida; como diz o velho Howard, o ouro “não implora para ser achado”; é preciso procurá-lo, encontrá-lo, e sobretudo reconhecê-lo, com muito cuidado e paciência, pois o ouro verdadeiro não é exatamente sólido, tampouco brilha (Dobbs e Curtin constatam sabiamente que ele é como areia). Os verdadeiros tesouros se disfarçam de coisas sem valor; isso é quase cristão. O “ouro” de verdade não corresponde à imagem da nossa fantasia. Esta, só enxergaremos no “ouro dos tolos” (fool’s gold): eis o perigo. Mas o uso conotado que fazemos da palavra “garimpar”, nas mais diversas circunstâncias, já explica a lição.

Humphrey Bogart dá um show! É a sua melhor atuação. Toda a masculinidade rude do homem aparece muito bem em seu personagem deste filme, muito bem adequada ao cenário também rude. Aqui, não há para a feiúra charmosa de Bogart nenhuma Ingrid Bergman, nenhuma Katherine Hepburn ou Lauren Bacall. O Tesouro de Sierra Madre é um filme de macho. De fato, o único ser do sexo feminino que aparece e tem fala é uma companheira do golpista perseguido por Dobbs e Curtin: a cena dela dura uns 15 segundos dentro dos 126 minutos do filme. Walter Huston (pai do diretor John Huston) também é grande como a figura arquetípica do velho sábio: o profeta, o mestre, o ancião experiente, o “médico” curandeiro que será eleito como autêntico sacerdote, líder e guia máximo da aldeia indígena simples cuja uma das crianças ele salva da morte (o que corrobora e potencializa o caráter arquetípico do personagem). É bela – ainda mais para os anos 40 – a consciência ecológica do velho Howard: após terem garimpado todo o ouro que queriam, ele faz questão de desmontar a mina e restaurar a montanha ao que ela era antes, um sinal de respeito e gratidão.

Os dois parágrafos acima já vão nos mostrando que O Tesouro de Sierra Madre, apesar de ser muito macho e selvagem, é também humano e sensível em alguns momentos fundamentais: quando os três garimpeiros lêem a carta da esposa do “invasor” que eles estavam prestes a matar (mas os bandidos fizeram esse “favor” primeiro). Depois, dois deles resolvem dar ¼ do seu ouro para a viúva. Mas a melhor cena é mesmo a do “milagre”, em que Walter Huston ressuscita um garoto afogado, numa aldeia indígena de pessoas absolutamente simples.

Essa é a melhor cena? Minto. Onde estou com a cabeça? O final é impagável! Nas palavras do velho Howard: “O ouro voltou para a montanha de onde o tiramos...” Justiça poética: a imagem da ventania carregando poeira e ouro em pó indistintamente. É a efemeridade da ganância. Porém, os justos ainda terão suas recompensas e consolações, ainda que em formas inesperadas e irônicas. Já os injustos, assim como o ouro, estão destinados a retornar ao pó da terra (de novo a dimensão cristã): é a imagem de Humphrey Bogart ensandecido e decadente, com o rosto coberto de poeira e terra, antes de tentar limpá-lo na poça d’água suja de sua consciência, justamente na qual verá refletido o rosto do bandido que o fará pagar por seus crimes (a poesia de John Huston supera-se a si mesma). O mesmo bandido, ao pagar os seus próprios crimes, cavará a própria sepultura na terra poeirenta, antes de ser fuzilado pelos “federales”. Filme árido... Walter Huston bem que avisou: “a água pode ser mais preciosa do que o ouro...”


3 comentários:

  1. Saiu em DVD um dos meus filmes favoritos de Huston: Moby Dick, também uma jornada destinada a fracassar, mas onde vale a aventura, no final das contas. Pena que o DVD seja tão pobrezinho de extras, ao contrário do de Sierra. Um abraço.

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  2. Evoé, errante André...
    Acertou com este blog!
    Vou divulgá-lo. Incluí um link para ele lá no meu blog. Acho que você não frequenta porque não comenta, passe por lá de vez em quando. Saudades, amigo!
    Abreijo textual
    Davis

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