Páginas

sexta-feira, julho 20, 2007

Terra dos Mortos


Já fizeram muitos filmes de zumbis. Alguns, picaretagem total, como O Despertar dos Mortos (2004), de Zack Snyder; outros, até bons, como Extermínio (2003), de Danny Boyle, mas que não fazem mais do que seguir bem a cartilha do gênero. Apesar de tudo, basta ver as primeiras cenas de Terra dos Mortos para entender por que George Romero é o mestre. Mestre-inventor. No ambiente bucólico quase idílico de uma cidadezinha do interior dos EUA – eu digo “quase” porque a iluminação tenebrosa do anoitecer, junto do aspecto enferrujado e arruinado de todas as coisas, mostra que há algo de errado – vemos uma “banda” de zumbis “tocando” seus instrumentos no coreto da praça (o som bizarro que eles arrancam dos instrumentos é o que mais dá atmosfera e significação para a imagem), um casal de namorados (logicamente zumbis) passeando de mãos dadas, e um frentista que vai até a bomba de gasolina como se fosse abastecer algum veículo...

Este filme está repleto desses pequenos detalhes que, como eu disse ontem, são a marca estilística de George Romero. O início desta quarta (e última?) parte da saga dos mortos vivos é (quase?) tão estimulante quanto à abertura das duas fitas anteriores – só mesmo A Noite dos Mortos Vivos não tem um começo tão forte. Sem contar que apenas Terra dos Mortos nos dá um “update”, explicando o início e o andamento da tragédia (inclusive o fato de que o fenômeno é mundial), enquanto aparecem os créditos iniciais – não-interligados às primeiras imagens do próprio filme (o que também é novidade na série). De qualquer maneira, ao longo do filme inteiro, parece que sentimos por trás das imagens – principalmente daquelas que mostram os “pequenos detalhes” – a presença viva do cineasta, seu sorriso irônico que aponta com muito fascínio e interesse certas “coisas” para nós... Reconhecemos essa marca de estilo nos diretores que se envolvem mais pessoalmente com a sua obra, naqueles artistas que são muito movidos por uma quase fixa idéia pessoal. Dentre esses, um que eu também admiro muitíssimo (tanto porque ele também é profunda e sutilmente irônico) é Jacques Tati.

Vinte anos depois de ter feito seu último filme de zumbi, e depois de incontáveis epígonos, homenagens e picaretagens diversas, George Romero realiza Land of the Dead para mostrar que ainda está vivo e ainda é o mestre – deixando bem claro também por que ele é o mestre. O caráter humano dos mortos vivos, já esboçado em Dia dos Mortos, aqui adquire sua maior força. É incrível a figura do “Big Daddy” – o frentista que, como um autêntico líder político, conclama os seus companheiros e os guia rumo à “revolução”, ou seja, à invasão do condomínio fechado onde os vivos acreditam viver em plena segurança, como se nada de mais estivesse acontecendo lá fora... Os zumbis já aprenderam até mesmo a se comunicarem entre si de modo rudimentar (apesar de, no filme anterior, o zumbi Bub chegar pronunciar uma sentença completa: “Olá, tia Alicia!”).

O conteúdo político subversivo – marca registrada de Romero – continua: chamam muito a atenção as imagens do “Big Daddy”, desesperado, tentando libertar seus camaradas da ilusão das “sky flowers” (os zumbis também são massa de manipulação da “indústria cultural”). Os gritos de conclamação e de revolta de “Big Daddy” – principalmente quando ele vê seus correligionários sendo mortos – são surpreendentes. Do lado dos vivos, há um personagem que corresponde exatamente – em termos políticos – ao “Big Daddy”: trata-se de Mulligan, o “agitador”, que prega nas ruas da “periferia” contra os abusos e desmandos da “high society” (os poucos felizardos que vivem num arranha-céu ultra protegido e com todos os confortos da “antiga” civilização). Isso sem contar a "jihad" do personagem de John Leguizamo contra o de Dennis Hoper (o próprio diz, nos extras do DVD, que ele e o diretor basearam o seu personagem em Donald Rumsfield e na administração Bush).

Mas as melhores cenas são as da invasão desta “Alphaville” pelos mortos vivos: George Romero filma cada imagem com gosto. O expectador sente isso. É a verdadeira revolução... Eu chamei esse condomínio fechado de Alphaville: não é ele – e o próprio mundo de Terra dos Mortos – a própria e quase exata imagem do Brasil? É incrível a imagens dos passarinhos de plástico com seu canto eletrônico no hall do edifício... Não é esse o mundo e a vida das nossas elites? Ah, a ironia de Romero centrada nesses pequenos detalhes...

Para encerrar, dois fatos curiosos. O zumbi que aparece, de modo bem destacado, usando jaqueta de couro e parecendo um motoqueiro “easy rider”, é Tom Savini, que também apareceu no mesmo figurino – mas como vivo – em Despertar dos Mortos (ele era um dos motoqueiros vândalos que invadem o shopping center). Savini é o maquiador de Noite dos Mortos Vivos e dirigiu o seu remake, em 1990. Temos que dar parabéns aos japoneses que desenvolveram os jogos de vídeo-game da série Resident Evil. Todos os elementos ali: cenários, atmosfera, personagens e enredo são facilmente reconhecíveis nos filmes de George Romero. Aliás, esses jogos também são, a seu próprio modo, revolucionários, pois foram dos primeiros a trazer para o universo dos vídeo-games (cuja tecnologia aumentava cada vez mais e mais rápido, possibilitando tais revoluções) elementos cinematográficos: enredo roteirizado, personagens devidamente construídos como tais, criação de imagens usando técnicas da fotografia e da montagem audiovisuais. Assim, quando ouvi falar que fariam um filme de Resident Evil, fiquei bem entusiasmado, pois já fui esperando uma fita de zumbis no melhor estilo do mestre de Dia dos Mortos. Mas que nada! Esses filmes não se baseiam em Romero, e também não se inspiram nos jogos Resident Evil; emulam apenas a forma mais tradicional e arcaica de vídeo-games – essencialmente infantil – juntando-a com elementos de vídeo-clipe bem produzido...


Nenhum comentário:

Postar um comentário