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sábado, maio 31, 2008

Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal



Geralmente, eu não gosto muito de usar a primeira pessoa ao falar de um filme. Não por obedecer ao fetiche ilusório da chamada “objetividade”, mas por acreditar na Fenomenologia, para a qual a consciência de algo ocorre independentemente de um “ego” dito “subjetivo”. No entanto, agora não vai ter outro jeito. Não dá para me libertar de mim mesmo, da construção de um “eu” e de um “mim” ao longo de uma história de vida, para falar de Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal (“Indiana Jones and the Kingdom of the Crystal Skull”, EUA, 2008, dir.: Steven Spielberg). Este filme, para mim, é como “A Busca do Tempo Perdido”. Bem, não tão perdido assim. Minha infância foi muito bem aproveitada, muito graças a um conjunto de calça e jaqueta marrons que tinha no meu armário, e mais graças ainda a um velho chapéu também marrom, herdado de meu avô. E era com tal figurino que eu saía pelos terrenos baldios do bairro, explorando terras e povos desconhecidos, enfrentando mil e um perigos e inimigos, enquanto já ia pensando em como eu estudaria pra valer por todo o caminho da vida escolar até me tornar arqueólogo.

Enfim, não me tornei arqueólogo. Mas virei professor... E professor de Literatura, assim como o Prof. Henry Jones (o pai, vivido por Sean Connery em A Última Cruzada). Há uns três anos atrás ganhei de amigos que me conhecem muito bem (e há bastante tempo) a caixa com os DVD’s da então trilogia Indiana Jones. Desde então, re-assisto aos três filmes a cada seis meses, mais ou menos. Para me lembrar de quem eu sou, de quem fui, de como comecei a gostar de Cinema. É toda uma renovação espiritual que se processa em meu interior, ao (re)ver certos filmes. Filmes como os de Indiana Jones, a série Star Wars ou a série Super-Homem estão na gênese do meu amor pela Sétima Arte, na gênese do meu próprio EGO na medida em que este se fundamenta em mitos, modelos, heróis que encarnam valores e condutas determinadas. Assim, talvez inconscientemente, parte dos meus interesses intelectuais, acadêmicos e também os espirituais vêm de figuras como o corajoso e erudito Dr. Jones, ou como o corajoso e perseverante Luke Skywalker.

Somente um espírito estupidamente esnobe (e no fundo, pouco esclarecido), mesquinho, sem qualquer sensibilidade humana, tampouco interesse pelas coisas humanas, fará caso negativo de tais mitologias. Isso eu digo sem desconsiderar os “problemas” da “indústria cultural”. Cinema de Hollywood é “alienado”? Pode ser, mas há que considerar os efeitos particulares e positivos que provocou em mim quando criança e em sabe-se lá quantos milhões de crianças mais. E daí que Indiana Jones é colonialista e imperialista? E daí que ele faça pose de antropólogo, mas é o primeiro a saquear as relíquias de povos “primitivos” e levá-las para os museus do Primeiro Mundo? (Sobre este último filme, é interessante pensar na recente notícia das constantes e infrutíferas disputas judiciais que o Peru promove contra os EUA para reaver artefatos retirados de sítios arqueológicos no país, no começo do século XX). Tudo isso, é claro, será importante sob um certo ponto da análise; mas sob outro, ajustemos nossas lentes...

Enfim, falemos sobre o filme de fato. É impressionante o Classicismo de Spielberg e Lucas (criador do personagem). Indiana Jones se liga ao romance de aventuras do século XIX (como “As Minas do Rei Salomão”, de R. Haggard) e aos antigos seriados cinematográficos. O Reino da Caveira de Cristal é mais desse erudito mesmo. Será que há espaço hoje em dia para um herói que, além de se virar em mil peripécias corporais e violentas, ainda é um “scholar”, um “lente” – como se dizia no tempo do onça, acadêmico erudito, pesquisador e sobretudo professor? A pergunta que o jovem personagem de Shia LaBeoulf faz ao de Harrison Ford, em uma determinada cena, é a pergunta que toda criança e adolescente contemporâneo há de fazer: “Tem certeza que você é mesmo um professor?” Temo muito que as novas gerações não apreciem tanto o mito do Dr. Jones. Mas nunca se sabe... O fato é que este filme parece ser o canto de cisne de uma era, de uma cultura. Digam-me que cineasta da indústria, nas novas gerações, possui a “erudição”, a bagagem cultural, histórica e artística de Steven Spielberg e George Lucas?

Roland Emmerich? Michael Bay? Hahahahaha... Ou melhor: snif, snif... Quem mais? Gore Verbinski? O único valor de Piratas do Caribe está em Johnny Depp. Uwe Boll? Piadinha... Mesmo James Cameron, que já é “tiozão”, é um tosco. Enfim, há talvez (por ora) uma única esperança para o cinema de fantasia: Peter Jackson. Com a trilogia O Senhor dos Anéis e com o audacioso remake de King Kong (“intelectualizado” demais para o gosto contemporâneo), ele demonstrou ser o mais legítimo herdeiro de Spielberg-Lucas. Um outro nome que talvez valha a pena prestar também atenção é o de Guillermo Del Toro (pensando em O Labirinto do Fauno e no fato de que ele foi anunciado como diretor para O Hobbit). Enfim, o poder do cinema: uma das imagens mais impressionantes de minha infância cinematográfica é a do final de Os Caçadores da Arca Perdida, quando aquele pequeno bobbycat carrega o caixote lacrado com a arca da aliança pelo corredor obscuro de um gigantesco galpão, que vai se revelando aos poucos, conforma a câmera se afasta. Então, ele some numa esquina com outro corredor, e nós ficamos com milhares e milhares de caixotes como aquele, descansando como que pela eternidade naquele depósito.

Veja o começo de A Caveira de Cristal e procure entender o como eu me senti semana passada.


terça-feira, maio 20, 2008

Por uns Dólares a Mais


O exagero do artista que ama a sua arte e que ama a tradição de um determinado gênero dentro de sua arte. O exagero da criança que brinca, que fantasia, que transforma os objetos e lugares mais banais em cenários maravilhosos do lírico e do épico. O exagero que só se encontra na paixão da mais arrebatadora e inconseqüente. Essa paixão que cria um clima, uma atmosfera que contamina todos os envolvidos no processo da “brincadeira” e também aqueles que assistem a ela; ou melhor, aqueles que recebem a graça de testemunhar a Expressão, na sua forma mais pura, mais despojada. Porém, a fim de se atingir tal despretensão, palmilham-se todos os caminhos da estética, visitando, atravessando e transcendendo toda a pretensão.

O western spaghetti de Sérgio Leone é um grande Maneirismo em relação ao “western” clássico norte-americano. Vão aí as qualidades de uma tal estética – a delícia que ela oferece aos nossos sentidos – e também os seus defeitos: a mão pesada na execução, o excesso de seriedade que beira o burlesco – ou o excesso de burlesco que parecerá seriedade às inteligências menos maliciosas. De qualquer maneira, a obra de Leone ainda merece os louros do Clássico, por seu equilíbrio estético e coerência artística. Nela sentimos a paixão de um estudo apaixonado, aprofundado e disciplinado da História. Da História de uma cultura, de um gênero artístico, de um princípio estético. E da História em si, de um passado repleto de significado, ainda que mitificado – o que não é problema algum, per si, sendo neste caso até uma vantagem.

Agora, tudo isso não pode ser dito, absolutamente, dos “maneiristas” contemporâneos, grifes como Quentin Tarantino, Robert Rodriguez ou Zack Snyder. Desses, e de outros, o menos ruim é M. Night Shyamalan. Mesmo assim, imensas proporções devem ser guardadas quando se pretende referenciá-lo a diretores e gêneros do passado. A perspectiva histórica deve sempre ser mantida quando se analisam e julgam criticamente os novos “talentos”. Pena que tal bagagem parece faltar a alguns críticos. Em alguns casos, falta até mesmo aos próprios “jovens talentos”. Enfim, nem tudo o que é do passado é “antigo”, e nem tudo o que é “antigo” é “velho”. Por Uns Dólares a Mais (1965) ainda mantém (e talvez sempre mantenha) um apelo jovem com força incrível. É um filme muito mais “descolado” do que qualquer embuste marketeiro pseudo-cult que nos assola atualmente.

Um cinema como o de Sérgio Leone é praticado como se fosse um rito, uma autêntica liturgia. É um cinema que encarna o Mito. Celebrando o mito, ele faz com que nós o vivamos a todo momento e jamais o esqueçamos. Quem haverá de se esquecer do tour de force entre Clint Eastwood e Lee Van Cleef, principalmente na cena “do chapéu”? Quem conseguirá esquecer o bando de bandoleiros chefiado por El Índio, instalado em uma igreja abandonada, na qual eles exercem sua “justiça” nada divina? A trilha sonora de Enio Morricone? O poncho de Eastwood? A aridez da paisagem, das personagens, do seu discurso, sua postura blasé? Sem contar os grandes temas da ganância, da vingança, do remorso, do amor, da solidão...

domingo, maio 18, 2008

Bee Movie


Vamos deixar algo bem claro aqui: Jerry Seinfeld não é nenhum gênio. A qualidade e o sucesso da famosa sitcom “sobre o nada” não se devem apenas ao comediante e ator-protagonista cujo sobrenome serviu de título ao programa. Muito – muito mesmo – deve ser creditado ao co-idealizador e roteirista Larry David, ao roteirista Larry Charles (autor de alguns dos mais irreverentes episódios da série, como “The Library” e “The Bubble Boy”) e ao incrível elenco, assim como à sua magnífica interação: Jason Alexander (George Constanza), Michael Richards (Cosmo Kramer), Julia Louis-Dreyfus (Elaine Benes); sem contar Wayne Knight (Newman), Jerry Stiller (Frank Constanza), dentre outros mais.

O fato é que nos tornamos muito acostumados com a canastrice e com os comentários sarcásticos mais ou menos engraçados (“stand up comedy”) que regem as crônicas cotidianas de Jerry Seinfeld. É como aquelas músicas que, de tanto tocar por aí, nós acabamos gostando delas, ainda que em primeiro momento não nos tenham chamado tanta a atenção. Mas faz parte da cultura do cotidiano, não? E quem é que rege a cultura do cotidiano? Isso mesmo, a indústria cultural. Desse modo, dá-lhe Seinfeld! Enfim, todo ele está de volta em Bee Movie (EUA, 2007, dir.: Steve Hickner e Simon J. Smith). Ou melhor, quase todo ele, já que se trata aqui de uma animação em CG, a mais recente dos estúdios da Dreamworks.

Não é preciso dizer que os fãs do comediante vão se deleitar, os indiferentes vão passar “batido” e os detratores acharão aí mais alguns argumentos. A história do jovem Barry Benson, uma abelha que não quer que a sua vida profissional (quer dizer, sua própria vida como um todo) seja determinada pela mega-estrutura do sistema da colméia, poderia ir muito mais longe do que a abelhinha abelhuda vai durante o filme e dar frutos mais doces do que o doce mel, seja enquanto desenho animado infantil ou filme adulto – tendências que, aliás, estão obviamente cada vez mais unidas nesse gênero. Mas... Mesmo assim, a fita é razoavelmente divertida e poderia ser usada numa aula para crianças ou pré-adolescentes em que se apresentassem e discutissem certas questões “sociológicas”.

A grande “verdade curiosa sobre as abelhas”, que se repete neste filme, poderia ser aplicada ao talento e sucesso de Jerry Seinfeld: as abelhas não foram feitas fisicamente para voar – a relação entre as suas asas e a massa corporal não permitiria esse feito. Mesmo assim, elas voam. (Nisto, vai também um elogio ao comediante.) Assim, neste momento, o placar da disputa Disney (associada à Pixar) vs. Dreamworks dá (larga) vantagem à primeira, com Ratatouille (2007). Vamos ver quais serão as próximas jogadas: a Dreamworks já está anunciando para este ano ainda “Kung Fu Panda” e “Madagascar 2”; a Pixar promete “Wall-E” (uma aparente ficção científica futurista). Aguardemos...

quinta-feira, maio 15, 2008

James Cameron em 3 D


Segue abaixo um trecho da entrevista que o diretor James Cameron deu à revista Variety, publicada on-line no dia 10 de abril. Tirem suas conclusões. Para mim, Cameron tem o senso de oportunidade de um Georges Méliès, mas com o senso artístico de um... sei lá, pensem no paradigma de um “tapado” metido a artista.

JAMES CAMERON ATACA EM 3-D
O timoneiro de “Avatar” revela a arte e a ciência do estéreo


Por David S. Cohen

A mais nova produção do diretor James Cameron, “Avatar”, precisa ser colocada como um dos mais antecipados projetos de filme da memória recente. Sendo seu primeiro filme narrativo desde “Titanic” (1997), o maior recorde de bilheteria de todos os tempos, “Avatar” será a realização do antigo sonho de Cameron em fundir o 3-D digital em estéreo com uma história épica de tela grande. David S. Cohen, da “Variety”, conduziu esta entrevista por e-mail com Cameron; é a mais extensiva exploração do 3-D já feita pelo diretor, no entanto, ele ainda mantém qualquer informação mais específica sobre “Avatar” em completo segredo.

Você já trabalhou com o 3-D antes e tem sido o evangelista dessa tecnologia. Temos ouvido várias pessoas na indústria falarem da importância de proporcionar nas salas de exibição uma experiência que vá além do que as pessoas possam ter em casa. Vemos que as platéias têm gostado do 3-D, e que ele tem se tornado o carro-chefe na adoção de sistemas de cinema digital nas salas de exibição. Mas, falando estritamente como um contador de histórias e como um diretor, o que é que o 3-D acrescenta ao lado criativo de um projeto?

Eu acredito que Godard tenha dito muito bem, tempos atrás. Cinema não é verdade 24 vezes por segundo, é mentira 24 vezes por segundo. Atores fingem ser pessoas que eles não são, em situações e cenários que são completamente ilusórios. O dia como noite, o seco como molhado, Vancouver como Nova Iorque, flocos de isopor como neve. O edifício é uma parede fina de cenário, a luz do sol é néon, e o barulho do tráfego é providenciado pelos engenheiros de som. É tudo ilusão, mas o prêmio vai para aqueles que tornarem a fantasia o mais real, o mais visceral, o mais envolvente possível. A sensação de verossimilhança é vastamente engrandecida pela ilusão estereoscópica. Particularmente nos tipos de filmes que têm sido minha especialidade, a experiência da fantasia é mais bem servida por um senso de detalhe e de realidade em textura que apóiem a narrativa a cada momento. As personagens, os diálogos, o desenho de produção, a fotografia e os efeitos visuais devem todos combinar esforços para dar a ilusão de que o que você está vendo está realmente acontecendo, não importa o quão improvável a situação possa ser se você parar para pensar nela – como um ciborgue viajando de volta no tempo para matar uma garçonete e mudar a história, por exemplo. Quando você vê uma cena em 3-D, o senso de realidade é sobrecarregado. O córtex visual é persuadido, em um nível subliminar mas penetrante, de que o que se vê é real. Todos os filmes que eu fiz previamente poderiam absolutamente ter sido beneficiados com o 3-D. Então, criativamente, eu vejo o 3-D como uma natural extensão do meu artesanato cinematográfico.

Um filme em 3-D imerge você na cena, com um senso físico de presença e de participação grandemente intensificados. Acredito que um estudo funcional da atividade cerebral mostrará que uma maior quantidade de neurônios estarão ativamente engajados em processar um filme em 3-D do que o mesmo filme em 2-D. Quando a maioria das pessoas pensa em filmes de 3-D, elas pensam primeiro em tomadas como truques de prestidigitação: objetos ou personagens voando, flutuando ou apontando na direção da audiência. Na verdade, em um bom filme estéreo, essas tomadas deveriam ser mais a exceção do que a regra. Assistir a um filme em estéreo é olhar para uma realidade alternativa através de uma janela. É intuitivo para a indústria do filme que esta qualidade imergente é perfeita para a ação, fantasia ou animação. O que é menos óbvio é que o intensificado senso de presença e realismo funciona em TODOS os tipos de cenas, mesmo nos momentos mais íntimos e dramáticos. O Que não quer dizer que TODOS os filmes devam ser feitos em 3-D, porque o retorno financeiro pode não cobrir os custos em muitos casos, mas certamente não deveria haver qualquer razão de criatividade pela qual um filme não poderia ser filmado em 3-D e se beneficiar disso.

Quando eu comecei a jornada de desenvolver câmeras de 3-D com Vincent Pace no ano 2000, nós estávamos procurando uma alternativa às massivas câmeras baseadas em película que eu usara no passado. Dois anos depois, enquanto estávamos mergulhados no desenvolvimento e produção da tecnologia em estéreo, eu tive uma epifania: os projetores digitais que estavam sendo propostos para substituir a película de 35mm poderiam acondicionar perfeitamente o 3-D, graças à suas altas taxas de quadros por segundo (“frame rates”). Eles poderiam realmente exibir o 3-D ao projetar as imagens dos olhos esquerdo e direito seqüencialmente, a uma velocidade maluca de “frame rates”, que nós perceberemos como simultâneas. Então, eu imaginei que isso poderia significar que toda uma nova era de 3-D seria agora possível, e que os nossos humildes esforços em 3-D chegariam ao mercado de carona com o cinema digital, o qual estava sendo visto como iminente e inevitável.

É irônico que, meia década depois, o cinema digital esteja acontecendo por ter sido catalizado pelo 3-D. O digital está trazendo o 3-D para o mercado. E isto porque as platéias estão assistindo a algo de que gostam, e estão demonstrando interesse em pagar mais por isso. O novo 3-D, a Renascença em estéreo, não apenas resolve os velhos problemas da má projeção, vista cansada, etc, mas está sendo usado em filmes de primeira classe que fazem parte das listas de filmes que as pessoas querem ver. Há muitas mudanças em relação ao que aconteceu com a febre do 3-D nos anos 50. O 3-D também é uma oportunidade para reescrever as regras, para aumentar os preços dos ingressos por uma razão tangível, graças a um valor agregado que possa ser demonstrável.

Rápida definição de termos: eu prefiro dizer estéreo ao invés de 3-D, pois costumo lidar com muitos artistas de CG (computação gráfica) que estão acostumados a usar o termo “3-D” como um conceito de arte em CG. Então, eu uso estéreo, uma forma abreviada de estereoscópico, para que não haja confusão. No entanto, quando eu lido com o público, eu digo 3-D, pois eles sabem o que o termo significa neste contexto: que eles vão colocar aqueles óculos e ver alguma coisa bem legal.

Existe algum mito a respeito do 3-D que você gostaria de desmentir?

Eu atacarei os mitos um por um nas respostas das questões abaixo.

Os trailers e os comerciais de TV são importantes para o marketing, e o vídeo caseiro é um meio vital de redistribuição; no entanto, ainda não existe TV em 3-D e não se pode contar que os trailers sejam sempre vistos em 3-D. Como você lida com isso, enquanto diretor de filmes?

Todos os filmes são feitos para servirem a muitos mestres. Todo diretor sabe que seu filme será visto por mais pessoas em DVD ou na TV do que nos cinemas. Isso muda o modo como a gente dirige? Não muito. Antes de mais nada, e mais importante que tudo, o filme deve ser bom. Deve ser eficiente, seja concebido em 2-D ou 3-D. Como resultado, se um filme em 3-D for exibido em 2-D, não importando o tamanho da tela, ele ainda deverá ter resultado. O 3-D deve ser pensado sempre como um intensificador para um trabalho cuja razão de ser deve estar vestida em sua história, seus personagens, seu estilo, etc.

Em todo caso, com o número de salas de exibição atualmente disponíveis na América do Norte, e no cenário internacional daqui a alguns anos, será necessário lançar em 3-D e 2-D ao mesmo tempo. Assim, o filme precisa ser totalmente competitivo também como um título em 2-D. Antes de decidir me envolver em uma grande produção em 3-D, eu tive que resolver comigo mesmo e me satisfazer com a idéia de que o 3-D não degradaria de maneira alguma a experiência da visão em 2-D. Poderia eu filmar do mesmo jeito? Estariam comprometidas a posição da câmera ou a iluminação? Poderia eu fazer uma montagem veloz? Etc. Somente quando eu fiz testes o suficiente com o 3-D para tentar responder a essas questões é que eu fiquei disposto a seguir em frente.

Quanto ao 3-D em casa: a única limitação em se ter o estéreo em casa é o número de títulos disponíveis. Quando há mais produto, as companhias de consumo eletrônico produzirão monitores e reprodutores. A tecnologia existe e está a pleno vapor. A Samsumg já distribuiu 2 milhões de TVs de plasma que podem decodificar uma excelente imagem em estéreo. Apenas não existe ainda nenhum reprodutor de mídias com imagens em estéreo neste momento. Eles podem estar um pouco à frente na corrida da eletrônica, mas isso apenas indica o quanto seria fácil para as companhias de eletrônicos embarcar na nova onda. Devemos nos lembrar de que o bom 3-D requer uma relação mais intrínseca entre a audiência e a tela. A não ser que você se sente a uma distância menor do que dois metros de um aparelho de TV de 50 polegadas, coisa que apenas alguns nerds (como eu) farão em suas salas de estar, você não sentirá o mesmo efeito do 3-D que poderia ser sentido numa sala de cinema, não importa o quanto a resolução da imagem seja a mesma. Assim, poderá haver uma maior distinção entre ver um filme de 3-D em casa e ver um filme de 2-D. O que é bom. Pois o 3-D então se tornará uma tecnologia que ajudará a preservar a saúde da indústria da exibição coletiva, numa época em que ela está ameaçada.

Você acha que é possível fazer um filme totalmente dependente da tecnologia em 3-D, tendo em vista o contexto econômico da indústria cinematográfica hoje em dia? Se for possível, como evitar as dificuldades financeiras?

Eu não acho que o aspecto econômico do 3-D esteja claro ainda, e não estará pelos próximos anos. Há muito que depende do número das salas de exibição, e (fundamentalmente) mais importante ainda, tudo depende da quantidade de cineastas que vão querer se aproveitar desse novo espaço, pois o sucesso da renascença em 3-D deverá se realizar a contento das partes envolvidas. Acredito que seja um erro, sob quaisquer circunstâncias, fazer um filme que seja dependente do 3-D para o seu sucesso, seja este estético ou comercial. O filme não deve ser divulgado em primeiro lugar como uma experiência em 3-D. O filme deve ser vendido segundo os seus méritos (elenco, história, imagética, etc), e o consumidor deve ser informado de que ele pode adquirir a experiência em 2-D ou, por alguns dólares a mais, em 3-D. A coisa deve funcionar como um pedido na Starbucks. Um monte de opções. Se a nova mídia da última década nos ensinou alguma coisa, é que as pessoas gostam de opções, e elas gostam de ter controle.

quarta-feira, maio 14, 2008

Speed Racer


Os novos caminhos técnico-tecnológicos trilhados pelo cinema industrial de hoje em dia são muito estimulantes, mas ainda precisam ser bem mais integrados – e integrados significativamente – à estética e ao conteúdo dos filmes. Mesmo assim, Speed Racer (EUA, 2008, Andy e Larry Wachowski) não faz feio, enquanto “live action cartoon” – se é que isso é possível. Se não for, os irmãos de Matrix inventam. Praticamente tudo neste filme, excetuando-se a figura dos próprios atores, é desenhado em computação gráfica – e sem qualquer preocupação com um realismo à lá Star Wars. Justamente, pois o que se pretende aqui é reproduzir a estética “anime” dos anos 60, na qual tudo é muito colorido, iluminado e fofinho. Neste ponto, a mais nova super-produção da temporada não aponta para o futuro, mas para o passado, fazendo corpo à tendência nostálgica predominante não só no cinema industrial-comercial, mas também nas “novidades” do circuito de arte, cult, independente ou o que quer que seja, dentro e fora dos EUA. A Cahiers du Cinéma, em número recente, analisou criticamente esse eterno retorno dentro da filmografia norte-americana atual.

Por outro lado, a nostalgia (ou crise de criatividade) pode ser vista como um velho amor aos clássicos e à tradição. E eis que semana que vem estréia Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal. De qualquer maneira, Speed Racer é um filme que tem tudo para ser odiado pelos críticos da modernidade, pelos algozes da indústria cultural, pelos inimigos do capitalismo burguês-liberal e do seu torpe sistema de valores. É por isso mesmo que esta fita deve ser vista pelo cidadão comum de maneira ingênua e desarmada, e sobretudo pelas crianças, já que é um filme essencialmente infantil. Trata-se de um mero entretenimento (sem que vá na palavra “mero” qualquer notação pejorativa), carregado, é claro, de ideologia, mas como tudo neste mundo é – inevitavelmente – carregado de alguma dose de “ideologia”. E a dose aqui nem é tão grande, sequer injetada de maneira particularmente “agressiva” (o que seria realmente a se criticar).

O que interessa mostrar e destacar (e, para alguns, isso seria uma surpresa) é que, mesmo na ideologia dos patriarcas dos Estados Unidos da América, há pensamento crítico. A pequena família, que luta com todo o esforço e talento pessoal na sua pequena produção artesanal, para sobreviver em meio aos “tubarões” da grande indústria, do capitalismo selvagem e “sem rosto”, não é um tema caro também ao pensamento das esquerdas? E os fatos irreais e ilusórios que “os donos do poder” colocam aos nossos olhos para esconder de nós a verdade – o que, inevitavelmente, leva-nos ao doloroso e traumático processo de “descobrir a verdade” –, não seria isso a indústria cultural, o poder da mídia e da propaganda, “criticados” em Matrix? Pois essas coisas também são ensinadas às crianças em Speed Racer. Quer dizer, há outras morais no filme, além daquela básica do dê-o-melhor-de-si-supere-todos-os-obstáculos-e-vença-na-vida – a qual requenta vergonhosamente alguns princípios “jedi”...

A construção formal das imagens atesta a fantasia no mais alto grau de fabulação. Uma fantasia naïf, apegada ao multi-colorido de uma arte fauvista. Estamos, naturalmente, mais no reino da expressão – característico da arte e da cultura moderna –, do que no universo da representação. Para isso, utilizam-se os mais recentes recursos tecnológicos. Eis o cinema na linha de Speed Racer. Contudo, cabe sempre lembrar que a fantasia não incide – sendo tal coisa impossível – sobre o núcleo mais elementar de qualquer forma de expressão, que é o seu conteúdo humano. Podemos, é claro, questionar a maneira como este elemento humano é representado ou expresso – inclusive, algo de “fantasia” até pode aparecer aí – mas o fundo mais fundo da coisa será sempre verdadeiro. Essa verdade é mostrada de maneira particularmente interessante (dentre outros momentos do filme) logo no início, onde vemos o jovem Speed correr contra os seus adversários e correr contra o tempo: não só o tempo cronometrado da corrida e do recorde a ser quebrado, mas correr contra o seu próprio passado, a favor da memória do irmão que luta contra o desvanecimento provocado pelo transcorrer temporal. Passado e presente se misturam e se imbricam num ritmo muito dinâmico da montagem, o ritmo da própria corrida automobilística. Podem achar banal essas metáforas, mas seu interesse intrínseco não reside nos usos e abusos particulares que se fazem delas – graças a Deus.

terça-feira, maio 13, 2008

Um Sopro de Vida

O Carnaval dos Arlequins, de Joán Miró
Eis uma pérola da arte literária:

“Um dia desses vi sobre a mesa uma talhada de melancia. E, assim sobre a mesa nua, parecia o riso de um louco (não sei explicar melhor). Não fosse a resignação a um mundo que me obriga a ser sensata, como eu gritaria de susto às alegres monstruosidades pré-históricas da terra. Só um infante não se espanta: também ele é uma alegre monstruosidade que se repete desde o começo da história do homem. Só depois é que vêm o medo, o apaziguamento do medo, a negação do medo – a civilização enfim. Enquanto isso, sobre a mesa nua, a talhada gritante de melancia vermelha. Sou grata a meus olhos que ainda se espantem tanto. Ainda verei muitas coisas. Para falar verdade, mesmo sem melancia, uma mesa nua também é algo para se ver.” Clarice Lispector, Um Sopro de Vida

É a experiência sensível em contato direto com o mundo concreto, aquém ou além de qualquer racionalização ou abstração conceitual. É simplesmente a melancia e tudo o que ela desperta de mais profundo em nós, o que também faz parte da melancia. Os efeitos subjetivos que ela exerce em nós são também seus atributos objetivos. É todo o peso do objeto vivido, mergulhados que estamos no útero da realidade. A grande arte não busca comunicar coisa alguma. A grande arte, grande Literatura e grande Cinema, busca apenas expressar... Expressar essas coisas, assim.

segunda-feira, maio 12, 2008

Edifício Master


A Revista Educação (Editora Segmento) possui uma série especial, chamada “Biblioteca do Professor”, na qual professores universitários e especialistas discutem à luz dos temas educacionais as idéias de grandes pensadores da contemporaneidade. A edição de número 7 trata de Walter Benjamin. Um dos artigos, escrito pelo professor de psicologia Luis Antonio Baptista, faz uma análise benjaminiana do filme documentário Edifício Master (Brasil, 2002), dirigido por Eduardo Coutinho. A película é uma série de entrevistas com os moradores do condomínio em questão, instalado no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro. Nos depoimentos, as pessoas expressam suas histórias de vida, suas relações com o lugar onde moram, suas idéias e emoções sobre as mais diversas coisas da vida e do mundo. Transcrevo abaixo o trecho de um parágrafo do texto:

“Consuelo Lins, assistente de direção do documentário, revela-nos, em O Documentário de Eduardo Coutinho, a intervenção da equipe para ‘desprogramar’ o conteúdo dos depoimentos, no intuito de não transformá-los em imagens-existências de uma tele-realidade: ‘Houve momentos nos quais foi preciso defender o entrevistado dele mesmo, em que a lógica do pior – central nos programas sensacionalistas e populares – impôs-se, e o que se ouviu foi a pior história, a maior desgraça, a grande humilhação. Porque o desejo dos moradores, em muitos casos, é o de escapar do isolamento, ganhar visibilidade a qualquer preço. O confronto com esse tipo de exibicionismo, indissociável do voyeurismo de espectador, é incontornável (...). Desprogramar o que estava previsto, produzir furo nos roteiros pré-estabelecidos, ocupar-se com o que ficou de fora dos espetáculos da tele-realidade, essa foi uma tarefa que se impôs como programa mínimo desse documentário de Coutinho’.”

No seio da força deste filme, reside a sua fraqueza. Mesmo com o propósito de “desprogramar”, ainda fica no filme um pouco da “tele-realidade”, perceptível no discurso de alguns dos moradores. Talvez, alguma medida de exibicionismo seja inevitável, é impossível a equipe de filmagem eliminar, por mais que tente, o fato de que a ação e reação da pessoa na frente da câmera será desnaturalizada pelo próprio fato de estar o indivíduo sob a lente e a luz de uma filmagem. A mera presença de uma câmera já interfere de uma maneira incontrolável no resgate do real. Eis o dilema de todo documentário: a precisão documental é simplesmente inatingível. A não ser que se utilize câmeras escondidas – o que despertaria uma série de outros problemas. Gilles Deleuze, em A Imagem-Tempo, apresenta uma solução possível para o impasse:

“A evolução de ambos (Pierre Perrault e Jean Rouch) seria mal entendida se nos contentássemos em alegar a impossibilidade de atingir um real bruto; que a câmera age sobre as situações, e que as personagens reagem à presença da câmera, isso todos sempre souberam, e não perturbava Flaherty ou Leacock, para quem isso já não passava de falsos problemas. Em Rouch como em Perrault, a novidade vem de outras fontes. Ela começa a se exprimir claramente em Rouch em Les Maîtres Fous, quando as personagens do rito, possuídas, bêbadas, espumando, em transe, são primeiramente mostradas em sua realidade cotidiana, na qual são garçons, operários, serventes de pedreiro, assim como tornarão a ser após a cerimônia. O que eram antes...”

Deleuze afirma que o documentário deve mais é aceitar e buscar captar a “ficção” criada pelas próprias personagens no seio do real. O que se opõe ao cinema de ficção não é o cinema do real, mas a “função de fabulação”. É a “função fabuladora dos pobres” que se opõe a uma “verdade” que é sempre a dos dominadores ou colonizadores. O que deve ser destacado é o poder de narração daqueles indivíduos, que produz memória, memória que será transmitida e que encarnará a experiência, as almas e os sonhos de uma coletividade. Para Walter Benjamin, um efeito maléfico da sociedade contemporânea é justamente provocar a extinção da narração (baseada no vivido pelo sujeito ou pelo grupo) e o enfraquecimento da memória. Não importa o quanto a narração-fabulação se aproxime ou fuja da realidade dos fatos, o fundamental é que ela nasce das pessoas comuns, é fabricada pela vida livre, pelas mentes e corações livres das pessoas comuns, das pessoas diversificadas. Ou seja, trata-se de uma cultura de verdade, e não da cultura pasteurizada da chamada indústria cultural.

Em vista disso, se as pessoas do Edifício Máster procuram conquistar a visibilidade na mídia a qualquer preço, o cineasta deve se preocupar mais é em mostrar esse desejo e as maneiras como essas pessoas procuram realizá-lo. Esse seria o documentário. Isso não quer dizer, evidentemente, que o cineasta documentarista deve estimular ou contribuir propositalmente para a “pulsão de celebridade” dos cidadãos anônimos. O cineasta deve adotar a postura serena de procurar apenas fazer o filme, documentando desinteressadamente o que quer que se passe na frente da câmera. Desencanar, essa é a idéia. Mostrar, assim como Jean Rouch, tanto o que as pessoas são quanto o que elas fabulam ser, sem tentar reprimir ou orientar em qualquer sentido as atitudes delas frente à câmera. Isso seria ir contra os princípios mais elementares do cinema documental. É assim que a força de Edifício Master transforma-se em fraqueza. “Defender o entrevistado dele mesmo”... Qualé?

domingo, maio 11, 2008

Homem de Ferro


A feérica imagem de Tony Stark forjando sua arma-armadura no interior de uma montanha perdida nas regiões profundas e abjetas do mundo é a imagem do próprio Vulcano (na acepção romana; Hefestos para os gregos), deus da fundição, das artes e armas em metal. Os pais de Vulcano, Júpiter e Juno, expulsaram-no do Olimpo por sua deformidade física, sua feiúra. Tony Stark também será traído por uma figura paterna muito importante, e também pelas divindades “olímpicas” do mundo moderno: a opinião pública e a mídia. É a sina da celebridade: adorada e odiada, temida, tudo ao mesmo tempo. Esperamos que a celebridade faça o seu “trabalho”, corresponda às nossas expectativas (algumas das quais, no entanto, não admitimos sequer para nós mesmos), para melhor as execrarmos exatamente por causa disso.

As celebridades realizam nossos desejos mais sujos, em seu trabalho “sujo”. Olhamos para as celebridades com fascinação e arrogância, ao mesmo tempo. Uma vez que são, para nós, caracteres meramente funcionais, passa ao largo da nossa visão e do nosso entendimento o seu aspecto verdadeiramente humano. As celebridades não são sujeitos; são “personalidades”, ou personas – na acepção de Jung –, cascas vazias de alma individual, representando apenas “tipos” dotados papéis sociais bastante definidos. E – o mais importante – não há qualquer mobilidade entre os papéis, tampouco possibilidade de não se exercer um “papel”. Cegos por tais atributos, os sujeitos-astros da sociedade do espetáculo não vêem ou vivem a própria subjetividade, mas apenas suas personas. Os diferentes efeitos dos estragos psicológicos que isso causa alimentam incansavelmente as colunas sociais da mídia.

Tudo o que foi dito no parágrafo acima aplica-se de modo exemplar à figura fictícia de Tony Stark, e de modo ainda mais exemplar à figura “real” de Robert Downey Jr., persona de si mesmo e do personagem que vestirá a armadura do Homem de Ferro. O sentido original do vocábulo persona diz respeito ao teatro grego antigo: “Persona era o nome da máscara que os atores do teatro grego usavam. Sua função era tanto dar ao ator a aparência que o papel exigia, quanto amplificar sua voz, permitindo que fosse bem ouvida pelos espectadores. A palavra é derivada do verbo personare, ou ‘soar através de’.” (Wikipédia) Na sociedade, todos usamos máscaras também, no delicado jogo da convivência. Daí o sentido psicológico da persona: “na Psicologia Analítica (Jung), é dado o nome de persona à função psíquica relacional voltada ao mundo externo, na busca de adaptação social.” (Wikipédia)

Ninguém há de negar que o que Tony Stark mais busca é justamente a “adaptação social”. A máscara do Homem de Ferro será a forma mais acabada dessa busca, após tentativas, erros e arrependimentos. O Homem de Ferro conclui o longo e sofrido processo de amadurecimento do indivíduo, que finalmente descobrirá uma verdade e a vestirá como uma rígida e férrea armadura, assim como uma arma, contra as forças do meio que constantemente atentam contra a delicada integridade carnal e psíquica do sujeito. Sejamos gratos que Stark tenha descoberto tal verdade antes de sucumbir completamente às forças da coletividade que esmagam o eu dentro da persona que essas mesmas forças lhe impõem. E gratos também a Downey Jr., que se reergueu e agora dá a volta por cima, como artista e como pessoa.

Como Vulcano, a deformidade de Tony Stark é física, mas com fortes implicações metafóricas – e sem qualquer relação com “feiúra”, excetuando-se talvez a feiúra moral. Se o deus clássico é coxo, Stark é “coxo” do coração. Seu coração, após a queda do “Olimpo” passa a requerer um complicado dispositivo tecnológico para continuar funcionando. Assim como Vulcano torna-se coxo após cair das alturas olímpicas, arremessado por seu próprio pai, Júpiter. No entanto, esse isolamento do mundo, essa simulação de morte provocará um renascimento espiritual em Stark. É a jornada do herói (nos estudos míticos de Joseph Campbell), a traumática passagem da perdição à salvação, da descoberta interior, que anima as mais diversas mitologias, os sonhos e também a psicologia analítica. Tal descoberta será auxiliada pela figura arquetípica do velho sábio, representada pelo cientista aprisionado junto com Stark na montanha-inferno dantesco.

A Stark pode ser referida a primeira estrofe da Divina Comédia:
“Nel mezzo del camin di nostra vita
Mi ritrovai per una selva oscura,
Che la diritta via era smarrita.”
(No meio do caminho de nossa vida
Encontrei-me em uma selva escura,
Pois a direita via estava perdida.”
Silogismo básico: 1. Se Robert Downey Jr. é Tony Stark, e: 2. Tony Stark é o Homem de Ferro, logo: 3. Robert Downey Jr. é o Homem de Ferro.

Mas a dimensão vulcânica continua: ao voltar para o mundo, Stark se fechará no seu palácio-oficina de Vulcano e, com a ajuda dos seus ciclopes robóticos, desenvolverá com labor e indústria a maior de todas as armas, para o bem. Utilizando-se dos mesmos talentos e instrumentos que antes serviam ao mal, Stark agora se tornará um herói. É a hora e vez de Tony Stark, assim como temos – na gloriosa literatura de Guimarães Rosa – a Hora e Vez de Augusto Matraga. Os mitos são universais. O grande rival de Vulcano (forjador das armas) é Marte (Ares, o deus da guerra). Assim, apesar de Stark ser o criador das armas usadas na guerra, ele lutará contra o conflito e contra a destruição. A origem anglo-saxônica do nome Stark aponta para o significado de forte, firme, confirmado até o último grau. O nome já indica o caráter. O caráter promove a ação. O resto é Heavy Metal.