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quarta-feira, novembro 17, 2010

35 Doses de Rum


Muito já se falou das relações entre cinema e poesia, e muitas são as definições para um tal cinema de poesia. Talvez a mais conhecida – e igualmente polêmica – seja a de Pasolini, que distinguia o cinema “de poesia” e o cinema “de prosa”, inspirado que estava pelas metodologias da linguística e dos estudos literários. Para o cineasta italiano, a poesia se revela nos filmes através do trabalho prioritário da forma, que deve se fazer auto-evidente (o “estilo” deve estar à mostra, como o esqueleto de um prédio), em oposição a uma filmagem “naturalista” (prosa) na qual a câmera – o instrumento mais essencial da escrita fílmica – procura se fazer invisível. Uma das decorrências disso é que a linguagem audiovisual deve buscar maneiras próprias de importar as figuras de linguagem da poesia escrita (principalmente a metáfora / alegoria).

Ao meu paladar, são mais saborosas as formulações de Tarkovski, o escultor do tempo. Para o diretor de Solaris (1972), a poesia nasce de uma “consciência do mundo”, a qual se derrama muito para fora do pensamento racional. Dotado de um olhar não-analítico e não-linear, o artista reconhecerá como ninguém a “organização poética da existência”; com isso, a expressão objetiva – dita realista – que ele há de empreender será muito diferente do fetiche positivista que domina as formas de representação literária e cinematográfica desde o século XIX. O pensamento poético é dotado de sua própria lógica, irredutível a quaisquer manuais de dramaturgia. Em um cinema assim, o espectador participa ativamente, com o cineasta, do processo de construção do filme, que para ambos é antes a descoberta da vida do que a demonstração de um “teorema”.

Essas ideias do grande mestre russo funcionam como recipiente perfeitamente transparente para acomodar as 35 Doses de Rum (“35 Rhums”, França, 2008). Este pequeno grande filme passou pela Mostra de Cinema de SP no ano passado, mas nunca estreou em circuito comercial, tampouco foi lançado em DVD, assim como várias outras pérolas de sua diretora, Claire Denis – a mais recente, Minha Terra, África (“White Material”, 2009) foi exibida na Mostra deste ano e estreou apenas numa sala, em São Paulo (adivinhem qual seja). Apesar de Andrei Tarkovski afirmar que não pensa em poesia como gênero, o sabor que fica nos olhos e ouvidos, quando assistimos à Claire Denis, não é apenas o de uma visão de mundo poética.

O que chamará a atenção em seu filme, se o colocarmos dentro de todo o debate a respeito de cinema e poesia, será a intensidade do seu lirismo. As 35 Doses de Rum são poéticas na medida em que constituem a expressão formal da descoberta da vida e da organização poética da existência, para emprestar mais uma vez as palavras tarkovskianas; e são líricas na medida em que tal descoberta e tal existência são carregadas de emoção. O filme inteiro é uma panorâmica das paisagens do espírito, com escalas nos mais diferentes estados interiores. Diz muito a esse respeito o fato de a diegese ser, em grande parte, atravessada por meios de transporte (um trem de metrô, uma van, um táxi, uma moto).

Mas esse fato simbólico é colocado sem pesar a mão sobre o efeito de real – o qual, afinal de contas, é o veículo do filme. Melhor ainda seria dizer: efeito de verdadeiro, já que a vida (em sua dimensão subjetiva) é o motor desse veículo. Dessa maneira, o dramático tem um papel muito reduzido na história. 35 Doses de Rum é um filme quase sem diálogos; e quando estes se fazem presentes, realizam-se sob palavras rápidas, fragmentadas, e em voz baixa. Mas não pensemos que tal procedimento torna frouxas as relações e tensões entre as personagens. Muito ao contrário, aquelas se manifestam muito mais num kabuki de gestos e olhares que se entrecruzam, atravessam, chocam e se perdem uns dentro dos outros.

A arquitetura dramática não se faz muito consistente; pelo menos, não em um sentido tradicional. A maneira como os corpos deixam exalar essências das almas confinadas sob pressão cobre o filme todo de uma atmosfera densamente lírica. Essa ênfase toda no lirismo também faz com que 35 Doses de Rum deixe de lado as infusões épicas, as quais, assim como as dramáticas, fariam parte natural e essencial de um longa-metragem de ficção. Na exibição de uma hora e quarenta minutos, pouca coisa acontece, efetivamente, em termos narrativos e causais; nisto, apresenta igualmente pouco consistência a trama linear e lógica dos acontecimentos (que Tarkovski tanto despreza). Não é que o filme seja “sem pé nem cabeça”, ou com vários “buracos” e “pontas soltas” na história; somente um espectador pouquíssimo treinado (ou muitíssimo acostumado a formas mais “mastigáveis” de cinema) poderia achar tais coisas.

Claire Denis trabalha bastante no terreno do implícito e do ambíguo, cuidadosamente plantados. Concluindo, a sensibilidade e humanidade deste filme são surpreendentes. Tem potencial para obra-prima contemporânea. Conforme eu ia assistindo, pensava comigo mesmo, a respeito da mise en scène: “está mais para um filme oriental”. Foi quando caiu a ficha: “essa história entre pai e filha lembra muito mesmo o Pai e Filha (1949), de Ozu”. Depois, pesquisando na rede, li que Denis fora assistente de Wim Wenders. Ah, agora tá explicado. Basta ver a epígrafe que o diretor alemão colocou em Asas do Desejo (1987), dedicadas aos “ex-anjos” Andrei (Tarkovski), François (Truffaut) e Yasujiro (Ozu). Realmente, nada do que foi, é ou será humano nos é alheio – jamais.

sábado, novembro 13, 2010

Tropa de Elite 2


Tropa de Elite 2 é o filme mais eficiente do cinema brasileiro, desde a retomada. A afirmação não é cínica. José Padilha realmente logrou fazer uma fita que funcione em todas as frentes: a autoral, a “comercial”, a dos gêneros, a ideológica, a da recepção. Agora, se há algum dedo “esquecido” no canto dessa balança, isso já configura uma outra discussão que é até melhor deixar para lá; por ora, parabenizemos o diretor e o roteirista (Bráulio Mantovani, em parceria com o próprio cineasta) por realizarem o trabalho hercúleo, acrobático e messiânico de prover-nos com uma obra cinematográfica que seja a “cara” do Brasil – para nosso orgulho e nossa vergonha.

Para adentrarmos nas novas aventuras do – agora comandante – Roberto Nascimento (Wagner Moura; escusaremos o cliché de elogiar-lhe a atuação), devemos ter diante dos olhos, antes de mais nada, a evidência de que este filme nada faz por “mostrar” a realidade. A sua conquista e valor não se dão por tomar um dado supostamente real e “revelar”, “denunciar”, “desmascarar”, ou qualquer outro vocábulo sedutor de intelectos não-imunizados. Padilha está anos-luz à frente de cineastas pretensamente engajados, porque sabe e assume o trabalho sujo que é próprio do seu meio – aqui sim, podemos aplicar alguma dose de cinismo.

No fundo, Padilha não difere muito de seu protagonista, apesar de todas as oposições discursivas e ideológicas. Vamos lá. Assim como o seu predecessor, Tropa de Elite 2 empreende um discurso de interpretação do Brasil. Tal discurso procura delimitar suas fronteiras através do confronto entre duas falas diametralmente contrárias – mas vizinhas; portanto, inimigas. Na primeira camada da estrutura do filme, ouvimos o texto verbal de Nascimento – o personagem-narrador –, porta-voz confesso da visão de mundo de uma parcela considerável (tanto porque dominante) da população brasileira; e nesta sequência, testemunhamos um delicioso mea culpa do personagem em relação à sua maneira de ver e “resolver” as coisas.

Na segunda camada, vemos e ouvimos o texto audiovisual de Padilha em franco contraponto irônico com o primeiro (leiam Machado de Assis, galera: vocês terão olhos para ver e ouvidos para ouvir todas as sutilezas). Digamos que o diretor apenas dê voz à personagem, sem que precisem ocorrer aí maiores procedimentos mediúnicos – este não é (mais um) filme espírita. Em relação maior ao primeiro filme, pareceu que muitos críticos e parte do público mais “cabeça” tinham fugido da escola no dia em que se lecionou que personagem-narrador não é, necessariamente, a mesma coisa que autor. Muito bem.

Quanto a esta segunda película, o diretor carregou ainda mais na verve sarcástica; porém, sofisticando-a um pouco mais, para não ferir orgulhos e sensibilidades. A sua metralhadora continua apontada tanto contra a irresponsabilidade do discurso da “direita”, quanto à hipocrisia (ou ingenuidade) do discurso da “esquerda”. Mas tomando todo o cuidado para demonstrar os acertos e acordos de uma e de outra, entre uma e outra. É uma manobra política que conquista para o filme muitos votos positivos. E cinematograficamente, Padilha e Mantovani não sacrificam muito da arte para tais propósitos... didáticos, digamos assim.

Não obstante, há o sacrifício, logicamente. Sentimos muito pesadamente, em Tropa de Elite 2 (mais do que sentíamos em relação ao primeiro), que os acontecimentos diegéticos, os cenários, os personagens, a fotografia, a montagem, a trilha sonora, tudo está a favor de uma ideia – ou de algumas ideias, pelo menos. O filme leva muito a sério, muito claramente (e, de novo, mais do que o anterior), o diálogo com o espectador; mais do que diálogo, uma retórica repleta de argumentos muito cuidadosamente posicionados por quem já sabe (vide a recepção do primeiro filme) que pisa em terreno minado.

Mas a verdadeira eficiência, de que falávamos lá no começo, está em que Tropa de Elite 2 não deixa (muito) de ser esteticamente preocupado, sob qualquer ponto de vista artístico que se observe. Mais do que isso: não podemos sequer dizer que a forma do filme se faça apesar do seu conteúdo; ambas estão organicamente intrincadas: para investir melhor nessa “conversa” com o público, nada melhor do que insistir na velha e boa catarse, não? Nunca falha. Todas as fórmulas do filme de gênero compõem aqui o trabalho “sujo” de que falamos mais atrás, e que o cineasta-autor José Padilha não tem vergonha de utilizar para os seus próprios interesses e objetivos.

No entanto, aprofundaremos essa questão um pouco mais para a frente. É preciso reiterar que Padilha incorpora ao discurso de Tropa de Elite 2 a recepção que o filme anterior sofreu e, também, as recepções que este mesmo pode sofrer. Parece que o diretor e o roteirista calculam e antecipam a réplica e a tréplica do espectador, respondendo impiedosamente a ambas e tomando todo o cuidado (um tanto excessivo, em alguns momentos) para evitar mal-entendidos e interpretações impertinentes (o que também contribui, é claro, para o marketing e a bilheteria). É neste ponto, principalmente, que a arte do filme fica um tanto quanto sacrificada.

O universo diegético da narrativa apresenta um emaranhado dialético de discursos e posicionamentos ideológicos; mas o próprio filme – em si – acaba pecando pela falta de ambiguidade. Acredito que seja por aí que se explique o fato de que um crítico – naquele quadro de cotações da Folha de S. Paulo – tenha qualificado Tropa de Elite 2 pela sua “ambiguidade”; enquanto outro crítico, na mesma página, desqualifique a obra pela “ausência de ambiguidade”. A panorâmica final sobre Brasília, enquanto a voz em off de Nascimento faz uma provocação ao espectador equivalente à do último plano em Tropa de Elite 1, apresentam um tom um tanto quanto pueril, não?

A ideia e a intenção são, sem sombra de dúvida, inquestionavelmente pertinentes. Mas a execução audiovisual e verbal lembram um pouco a “tosquice” do discurso revoltoso e anti-“sistema” de bandas de rock juvenis (Pitty, por exemplo). Entretanto, tudo se explica pela proposta de acessibilidade do filme, no seu diálogo aproximado com o público. Não obstante, será que se justifica? De qualquer maneira, esqueçamos alguns detalhes problemáticos e julguemos o valor desta obra cinematográfica pela sua eficiência geral, em primeiro lugar. Em segundo, elogiemos os seus autores não por pretenderem mostrar a realidade, mas por terem conseguido articular discursos muito pertinentes sobre esta – incluindo o seu próprio, enquanto autores.

E qual é, afinal de contas, o posicionamento de Padilha? A impressão que o filme nos traz é de um impasse. Muito mais do que na produção anterior, o nó brasileiro é mostrado aqui como inextricável; noves fora, a fala final de Nascimento é amarga, pessimista. Como o próprio personagem admite, infelizmente o sistema não tem centro de comando; não passa de uma articulação mais ou menos caótica de interesses escrotos, que sempre se renovam e encontram algum ponto de equilíbrio; seria preciso um furacão inimaginavelmente forte para derrubar tudo, mesmo.

Esse furacão ainda vai demorar pra chegar: eis a conclusão do narrador, depois que seu posicionamento veio ao encontro do seu opositor (Fraga, o intelectual de esquerda), e no momento em que parece finalmente se unir também à opinião do autor, no último plano do filme. Apesar das alianças inesperadas (Nascimento e Fraga) e das vitórias relativas, a dissociação estrutural profundamente enraizada da sociedade brasileira ainda persiste. No impasse pendular e corrosivo em que se aproximam e se afastam a direita honesta e “burra” (Nascimento), a esquerda honesta e “burra” (Fraga), os “culpados” (traficantes, consumidores de drogas, eleitores, policiais e políticos corruptos) e os “inocentes” (a jornalista e o fotógrafo, assim como o filho de Nascimento), o que nos sobra é uma terra em transe.

A referência nos lembrará a função do cinema em tudo isso. No seu projeto de interpretação e diagnóstico do Brasil, o filme de Padilha é tão alegórico quanto o clássico de Glauber Rocha. Ambos já são filmes prontos, antes que se rode a filmagem (o andamento da história e dos personagens não interessa tanto quanto o que se quer exemplificar com isso). A diferença é apenas relativa. Enquanto Glauber Rocha dispensa não só a ideologia “burguesa”, como também os métodos de representação “burgueses” (o cinema narrativo clássico), praticando um cinema absurdo para um país absurdo, Padilha usa a máquina e o método do “sistema” para atacar o próprio “sistema”.

Glauber é, indiscutivelmente, um herói nacional. Mas caberia no cinema da retomada? Mais importante ainda é perguntar: deveria caber? Em que medida? É claro que, sob qualquer circunstância, precisa haver espaço para cineastas “com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Mas é legítimo assistirmos a Tropa de Elite 2, a ambos os Se Eu Fosse Você (veja-se que eu não cito as verdadeiras porcarias do cinema dito comercial), e ainda ficarmos com nostalgia(zinha) de Glauber e Sganzerla? É por isso que eu digo: os dois melhores filmes brasileiros deste ano são Tropa de Elite 2 e O Grão (do jovem e estreante diretor cearense Petrus Cariry – resenha aqui).

Agora é a hora de detalharmos o trabalho “sujo” do cinema-BOPE de Padilha. O diretor aciona todos os mecanismos de identificação do cinema clássico, “burguês”, a ilusão da tela como “janela” e a invisibilidade dos elementos discursivos do próprio filme, para torturar, “sadomasoquistamente”, a própria burguesia. Dentre as diversas cenas nas quais a catarse funciona como elemento “comercial”, ao mesmo tempo em que se faz de crítica, vamos analisar uma – a mais deliciosa: a da blitz que uma patrulha do BOPE, comandada pelo próprio Nascimento, faz à porta do condomínio de luxo no qual mora um dos vilões de colarinho branco do filme.

A cena toda é construída sob o ponto de vista do político corrupto, que vai se aproximando do lar, sentado no banco de trás do seu luxuoso carro, guiado por um motorista particular. Este a visa o seu patrão a respeito da patrulha. O político, irritado e impaciente, responde que pode encostar o carro, para que dê uma bronca no comandante daquela operação “absurda”. Uma vez que o veículo estaciona, um soldado pede que o político desça; este pergunta quem é o chefe daquilo tudo, e eis que aparece Nascimento, arrancando o homem de dentro do carro pelo colarinho, encostando-o na lateral do veículo e já atirando-lhe impropérios, ameaças e uns bons sopapos.

Há uma razão bastante pessoal para a atitude de Nascimento (veja o filme). Mas o que importa é que a câmera permanece o tempo todo por trás do político, como que assumindo o seu ponto de vista subjetivo, enquanto nos é apresentada com grande grafismo a violência de Nascimento, sempre em primeiro plano e com alguns bons requintes de crueldade. Neste ponto, o espectador dá pulos de alegria na cadeira – mas dizendo, ao mesmo tempo: “só no cinema mesmo...” Padilha nos serve na bandeja exatamente o que mais sonhamos: um castigo “bem feito” para os donos corruptos do poder. Afinal, as massas sempre querem ver sangue, não? Que tal o de um deputado ladrão e assassino?

Padilha reescreve – melhor ainda, reinventa – a história social do Brasil, um país cujos detentores do poder nunca se sentiram lá muito ameaçados, o que só faz por aumentar os seus abusos e a sua desfaçatez (em relação a esta última, é incrivelmente bem pensado o personagem Fortunato, que encarna aquele tipo nojento do apresentador de noticiários policiais sensacionalistas da TV – Datena e laia; pesquise no Google e você verá que eles pipocam pelo Brasil inteiro, e alguns já foram até presos por crimes!). Mas pena que essa reinvenção não não vai além do território fantasioso do cinema. De qualquer maneira, Nascimento é o nosso “inglorious basterd” tupiniquim (valeu, Cris, pela sacada!).

Além de tudo, nesta cena em particular, mais do que em qualquer outra, Padilha parece responder muito sarcasticamente a certas críticas feitas em relação ao primeiro filme; eu duvido que muitos dos que chamaram o diretor de “fascista”, por causa da suposta condescendência com os métodos questionáveis do personagem Nascimento, repetirão a acusação agora que “o inimigo é outro” (para aproveitarmos o subtítulo da fita). Como é que fica? Definitivamente, o espectador também é um personagem do filme, tão metido no meio da “merda” quanto todos os outros. É tão tranquilizante quanto culposo refestelarmos nossos olhos e ouvidos no espancamento do deputado.

Se a cena toda tivesse sido elaborada a partir da posição do Nascimento, com a câmera mais perto dele, o efeito seria bem diferente: as acusações de “fascista” poderiam voltar. Porém, neste caso, a câmera colocada ao lado da vítima não despertará no espectador simplesmente a repulsa instintiva de quem está sendo violentado (o que acontece na última imagem de Tropa de Elite 1). Paradoxalmente, a câmera que assume o ponto de vista da vítima, neste caso, só faz com que nos identifiquemos ainda mais com o agressor: sentimos mais “na pele” a violência, e isso nos ajuda a sentir também, mais ainda, o valor moralmente legítimo dessa mesma violência; o agressor é o “anjo vingador” e a vítima é um “pecador incorrigível”.

Esta cena é quase um afresco medieval. Outra escolha de decupagem extremamente simples, mas com grandes efeitos expressivos, pode ser encontrada no momento em que aparece, pela primeira vez, o apresentador Fortunato em seu programa de TV / circo de horrores. Durante um tempo relativamente longo, a câmera de Padilha identifica-se com a câmera do próprio “noticiário”, centradas que permanecem ambas na figura burlesca do “show man” e na sua performance. Então, ocorre um corte seco e a câmera de Padilha passa a mostrar um plano de conjunto em que Fortunato está perfeitamente inserido – quase engolido – pelo cenário do programa, com seus tapumes e maquetes de aparência frágil e “tosca”, mal instalados dentro de um galpão muito maior e mais feio ainda, repleto de fios e cabos emaranhados, objetos mal dispostos, etc.

O contraste violento – potencializado pelo corte seco – entre a parte do cenário que se vê na telinha da televisão e o resto, ou seja, o seu todo verdadeiro, revela com grande sabedoria cinematográfica o caráter artificial do audiovisual (no caso, a TV), todo o aparato ativado para uma construção discursivo-ideológica, a fábrica de uma ilusão que, quanto mais se pretende real, mais se revela fantasiosa. Este cenário é uma alegoria – quase do tipo medieval, mais uma vez – para as diferenças entre o que se diz e o que se faz, entre o que se faz e o que se é, entre o que se escancara e o que se esconde, em relação a todo o debate político-social do filme – dentro do qual, logicamente, Fortunato exercerá um papel também bastante performático.

E já que falamos da montagem, vamos dizer que o ritmo alucinante de Tropa de Elite 2 também contribui para a criação do efeito de “terra em transe”. Como disse Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes. Enfim, pensemos em mais uma cena; esta, representativa do que falamos antes, a respeito da teia de discursos que compõem este filme, e de como o discurso do próprio autor se posiciona em relação a estes. Logo no começo, temos uma rebelião na penitenciária de Bangu I; um pelotão do BOPE já está posicionado e pronto para invadir, com Nascimento no comando; mas o governador do estado prefere enviar Fraga, como representante de uma ONG de direitos humanos, para tentar negociar a rendição dos presos rebelados.

De toda a sequência, recortemos os momentos iniciais. Nascimento narra os acontecimentos, antes de chegar ao presídio, e já começa a reclamar da irrepreensível intervenção de Fraga (esse “intelectualzinho de esquerda”, que é tudo o que o preso quer quando faz “merda”). Em paralelo, nos é mostrada uma palestra que este ministra, naquele mesmo momento, a respeito dos problemas do sistema carcerário. Assim, de um lado, fica posicionado o discurso da “direita” e, do outro, o da “esquerda”. O discurso do próprio filme começa a entrar logo em seguida, quando, num belo travelling lateral, a câmera vai percorrendo os diferentes monitores que mostram imagens das câmeras de vigilância do complexo, enquanto os movimentos iniciais do motim têm início.

Acompanha tais imagens a voz de Fraga, que continua a discursar na sua palestra. O efeito criado é ora de harmonia ora de contraponto entre o que este diz e o que as imagens da rebelião mostram. Por exemplo, no momento em que Fraga fala sobre a corrupção dos agentes de segurança, as imagens mostram exatamente um deles fazendo “vista grossa” para os presos que se rebelam. Neste ponto, o discurso audiovisual do filme confirma a posição da “esquerda” e concorda com ela. Em outro momento, Fraga fala dos presos enquanto cidadãos que nunca tiveram oportunidade, e por isso, teriam caído na criminalidade; mas as imagens do circuito interno da prisão não levam a crer que aquelas pessoas são apenas uns “coitados” sociais que não têm muita consciência ou poder de decisão sobre o que estão fazendo.

Então, o filme parece concordar com a “direita” e afirma que, independentemente das condições sociais, o criminoso age com todo o seu livre-arbítrio. Desse modo, usando os recursos audiovisuais para contrapor os argumentos verbais dos dois personagens, representantes que são de dois extremos no debate social brasileiro, José Padilha procura dialogar com ambos e apresentar a sua própria retórica como análise crítica não só da realidade, mas das interpretações que se fazem sobre ela. Sentimos que, com Tropa de Elite 2, o cinema brasileiro atingiu um patamar de sofisticação que seria inimaginável no início da retomada (1994), ou mesmo à época de Cidade de Deus (2002), o filme do período com melhor carreira internacional – tirando o fato de Tropa de Elite 1 ter faturado o Urso de Ouro no Festival de Berlim em 2008. A coisa tá esquentando.

sexta-feira, novembro 05, 2010

Ilha dos Mortos


Durante o século XIX, houve um costume sinistro: algumas famílias tiravam fotografias dos seus mortos, pouco após a hora derradeira, vestidos como costumavam se vestir e colocados em posições bem cotidianas, como se estivessem vivos e “posando”. Tais retratos eram emoldurados e expostos junto à mobília do lar. O procedimento era aplicado a parentes de todas as idades, inclusive crianças. Pois bem. George A. Romero demonstra, mais uma vez, a agudeza do seu pensamento colocado nos filmes, ao incorporar uma referência imagética e dramática a tal hábito em seu mais novo capítulo da saga dos mortos-vivos: Ilha dos Mortos (“Survival of the Dead”, EUA, 2009).

As questões familiares sempre estiveram presentes nas histórias de zumbis do diretor, desde o seminal A Noite dos Mortos-Vivos (“Night of the Living Dead”, 1968). O drama de se ter os entes mais queridos transformados em carniças antropófagas, e o que fazer em relação a isso – leia-se: matar ou ser morto –, comparece em todos os 6 filmes da cinessérie. Mas o que realmente interessa não é tanto a fantasia em si – que pode soar até um pouco ridícula –, perto do significado alegórico que os “mortos” de Romero sempre tiveram. Os zumbis não passam de pretextos para discutir as relações entre afeto e memória que permeiam, acorrentam e tensionam todas as estruturas familiares.

É por este cais que devemos aportar à Ilha dos Mortos, na qual o roteirista-cineasta-produtor desenvolve a temática das relações “de sangue” ao seu ponto mais alto, se comparado aos filmes anteriores. Para George A. Romero – principalmente na cena dos retratos dos falecidos a caráter –, a memória dos mortos é algo que não conseguimos simplesmente apartar de nós, da presença quase física de nossa consciência cotidiana. A memória é algo que irremediavelmente voltará para nos morder a carne, refestelar-se em nosso sangue, sugar-nos a vida. Eis a função simbólica dos zumbis de Romero. Faz-se dramaticamente expressiva em três ou quatro cenas deste filme – pelo menos.

Os mortos aqui já não são os excluídos da ordem social (como em Terra dos Mortos – “Land of the Dead”, 2005), nem os consumidores dentro dessa mesma ordem (Despertar dos Mortos – “Dawn of the Dead”, 1978; conforme o poeta José Paulo Paes diria: consumidoidos). No final das contas, a ironia do diretor também se faz muito presente no fato de, nesta última fita (que está saindo no Brasil somente em DVD), o maior número de mortes “matadas” acontecer pelo fato de os vivos atirarem uns nos outros, movidos por suas eternas rixas. A violência sanguinolenta das mortes causadas pelos ataques zumbis são bastante anêmicas perto da agressividade psicológica e moral dos que ainda respiram.

A narrativa já começa com uma grande ironia: vemos o sargento de um grupo da guarda nacional (que se tornaram bandoleiros de estrada) falar que o maior problema pós-despertar dos mortos são os assassinatos e suicídios. Falar em homicídio (mesmo o de vivo contra vivo) numa epidemia zumbi tem tanto significado quanto julgar alguém por homicídio dentro de uma guerra (há que lembrar a também alegoria do juízo final que é o Apocalipse Now de Coppola). Também é irônico o possível subtexto vegetariano que Romero destila desta vez: os seus zumbis não atacam animais (não mesmo?).

O comentário social também se faz presente na fábula distópica que Ilha dos Mortos apresenta (versão rural da distopia urbana que víamos em Terra dos Mortos). A tal ilha e sua natureza exuberante configuram-se muito ironicamente (é o tom central em todo o discurso de Romero) como um espaço anti-idílico por excelência. Não há lugar para a nostalgia e para o naïf românticos nos contos de Romero. A figura hedionda dos cadáveres ambulantes em plena decomposição infecta e polui, irremediavelmente, todo e qualquer cenário de possível escape. Não obstante, os sobreviventes não abandonam jamais a demanda.

Mas a maior mácula da ilha não são os mortos-vivos. E sim, os vivos-mortos. Estes são representados pelos dois latifundiários que (mal) dividem o pequeno território insular. O’Flynn e Muldoon são os grandes representantes da “Améria profunda”; na verdade, encarnam quaisquer resquícios putrefatos de sociedades tradicionais e patriarcais que ainda sobrevivem, à moda zumbi, no mundo contemporâneo. Desse modo, a ilha, longe de se apresentar como uma novíssima “Shangri-Lá”, está mais para um descabido e risível entrave arcaico-colonial numa civilização moribunda.

Agora, o melhor de tudo é que o Romero artista sabe que cinema é discurso, que se realiza segundo convenções de gênero, as quais, por sua vez, dialogam com as condições sociais em que se produzem os filmes, ou que emprestam a estes os temas. Assim, qual a maneira mais adequada de se mostrar, dramaticamente, os conflitos entre a família O’Flynn e a família Muldoon que não seja acionando os elementos constitutivos do western? Eis a mais recente sacada de George Andrew Romero: fazer um faroeste zumbi; o seu próprio “Gunfight at ‘Zombie’ Corral” (lembremos o clássico Sem Lei e Sem Alma – “Gunfight at O.K. Corral”, 1957, de John Sturges). Que o mostre para nós a incrível sequência final deste Ilha dos Mortos.

quarta-feira, novembro 03, 2010

The Walking Dead


A maior conquista de The Walking Dead é, paradoxalmente, não tentar “inovar” o velho e bom gênero dos filmes de zumbis. A brincadeira, muito bem-vinda, parece ser levar para o formato das séries de TV a história que George Romero – o grão-mestre – vem contando ao longo de 6 filmes de cinema (até agora). E isso é realmente entusiasmante – se for bem feito, é claro. Nada como a boa e velha narrativa seriada, da qual a TV norte-americana é mestre, para fazer o espectador viver o apocalipse dos mortos-vivos com as devidas doses de ansiedade e angústia. Se os produtores de The Walking Dead conseguirem fazer nada menos do que foi a recém-concluída Lost, os cinéfilos (no sentido amplo do termo, do qual não deverá ser excluído o velho aparelho televisor) terão muito a agradecer.

Não que a série de J. J. Abrams seja absolutamente impecável; mas, tendo em vista as vicissitudes trazidas pelo meio (a serialização numa TV comercial), o saldo é bem positivo. Assim, premio Lost como uma obra-prima contemporânea (quem discordar, pode xingar à vontade). Quanto a The Walking Dead, que estreou ontem na Fox, a primeira temporada compõe-se de 6 episódios, com a segunda já encomendada. O roteiro e direção ficam a cargo de Frank Darabont, que tem boa experiência em terror: escreveu os roteiros de A Hora do Pesadelo 3 (1987), A Bolha Assassina (1988), A Mosca 2 (1989) e Frankenstein de Mary Shelley (1994); dirigiu episódios da série televisiva Tales From The Cript (1990-1992); escreveu e dirigiu Um Sonho de Liberdade (1994), À Espera de Um Milagre (1999) e O Nevoeiro (2007), todos adaptados de livros de Stephen King.

Com tudo isso, do que já vimos no primeiro episódio da sua nova empreitada, a mise en scène é bem cinematográfica e o roteiro já vai semeando diversos elementos, bastante distintos (alguns bem dramáticos), os quais já deduzimos que entrarão em conflito dentro de algum ponto da série. Os ganchos foram todos muito bem plantados. Acompanhamos a história do policial Rick Grimes (Andrew Lincoln), que vive um casamento em crise. Abatido por um tiro durante uma chamada, ele fica algum tempo (longo, pelo que inferimos) em coma. Quando acorda, vê-se sozinho. O juízo final dos mortos-vivos já havia começado. Tendo de se virar por conta própria, Grimes parte em busca da esposa e do filho, que acredita estarem vivos.

Pelo caminho, vai encontrando outros sobreviventes, como um homem que, junto do seu filho pequeno, reluta em dar o coup de grâce na esposa, transformada em zumbi. Este pequeno drama familiar está bem ao tom e ao gosto dos filmes de Romero, fazendo-nos lembrar também o surpreendente A Estrada (“The Road”, EUA, 2009, dir.: John Hillcoat, sobre o romance de Cormac McCarthy – autor de “Onde Os Fracos Não Têm Vez”); sem contar que a história de um homem em busca da família num mundo pós-apocalíptico traz logo à memória A Guerra dos Mundos de Spielberg. Como se vê, Darabont buscou arvorar-se em troncos largos e muito bem plantados. De resto, se o começo de The Walking Dead lembra o de Extermínio (o despertar, no hospital, para o caos), cabe a consideração de que Frank Darabont parece menos disposto a brincadeiras e estrepolias do que Danny Boyle.

Não vimos, aqui, nenhum zumbi “atleta” (ainda bem). Darabont parece levar muito a sério o seu gênero; apesar de a série basear-se em graphic novels (histórias em quadrinhos), o diretor-roteirista parece estar pouco se lixando para a cultura “pop”. Ponto para ele. O conceito “biológico” dos zumbis de Walking Dead é aquele clássico de George A. Romero: ou seja, mortos-vivos incorrigivelmente “songos-mongos”. A pegada dramática da série também nos parece inspirada pelo criador da Noite dos Mortos-Vivos (1968). Resta a curiosidade de saber se Darabont aproveitará algo das alegorias sócio-políticas irreverentes e subversivas que Romero destila em todas as suas fitas. Pago para ver. Enfim, esqueça Danny Boyle e esqueça, mais ainda, Zack Snyder (o do “remake” de Dawn of the Dead de Romero, traduzido por “Madrugada dos Mortos”). Frank Darabont não perde tempo e morde logo as raízes. Muito bem.

terça-feira, novembro 02, 2010

Amor Líquido


Amor Líquido (“Amore Liquido”, Itália, 2009) é o primeiro longa-metragem do relativamente jovem diretor Marco Luca Cattaneo (33 anos), graduado e pós-graduado em cinema. Foi registrado em vídeo e, num primeiro momento, pode dar ao espectador desavisado desta Mostra de SP a mesma impressão de amadorismo do já comentado aqui no blog Os Amores de Um Zumbi. Mas, com um pouco de paciência (a qual muitos não tiveram, pois viam-se pessoas indo embora no meio da exibição, a todo instante – o ritmo deste filme é, de fato, um tanto quanto lento) descobrir-se-á uma película (ou melhor, um arquivo digital) de grande profissionalismo e potencial artístico.

A história é a de Mário, um solitário gari bolonhês que vive com a mãe, muito debilitada após um derrame. O homem divide as suas horas entre o trabalho, o cuidar da velha senhora, e um “hobby” muito peculiar: pornografia na Internet. Tudo vai equilibradamente bem, até o momento em que ele leva para casa alguns DVDs jogados fora por uma mulher em fase de divórcio (Ágatha). Os discos contém vídeos de viagens em família e gravações íntimas da vida sexual do casal. Mário muito se divertirá, naturalmente, com os últimos.

E o mais interessante é que o gari tentará se aproximar de fato de Ágatha, que é atendente em um café. Apaixonado, sua estratégia – ainda que bem tímida – será a do amigo / companheiro / cara legal, tendo em vista que a mulher já está separada e criando, sozinha, sua filha pequena (Viola). Mário despertará grandes simpatias e conquistará a confiança da menina e, não muito posteriormente, a da mãe. Nosso conhecimento de mundo nos leva, incontroladamente, a desconfiar das intenções e do caráter do protagonista: será ele um psicopata?

E acredito que o filme se compraz ao saber (e levar em conta) os pensamentos “sujos” que se passam pela mente do espectador. Mas a chave aqui é bem outra. Mário é, verdadeiramente, um homem de bom coração. Seu problema reside no fato de ser um incorrigível pobre diabo, um adolescente de 13 anos preso no corpo de um homem dos seus 35 – nada que alguns anos de terapia não pudesse ajudar a resolver. Mário é a figura de uma solidão muito típica dos grandes centros urbanos – e que é bastante discutida no Air Doll, que comentamos ontem.

Há algo de dostoievskiano neste personagem; e algo, mais ainda, dos personagens irremediavelmente solitários dos romances do também italiano Dino Buzzati (“O Deserto dos Tártaros”, “Um Amor”), absolutamente perdidos em meio aos seus desejos e expectativas, assim como entre toda a dinâmica e convenções das relações sociais, cuja complexidade está muito, muito além da capacidade e experiência de manejo por parte de tais pessoas, cuja ingenuidade-pureza (o naïf em sua forma mais pueril) chega quase ao nível do patológico. O resultado disso só pode ser a paralização mais completa. Mário fica – e termina – completamente sem ação.

A cena final é chocante e plena de significação. Ele não conseguirá engajar-se num relacionamento com Ágatha; por outro lado, também não conseguirá abandoná-la – pelo menos, não de uma forma decidida, segura, adulta. É triste, mas muito verdadeiro. É também muito interessante a maneira como o ritmo do filme – bastante arrastado – vai construindo gradativamente toda essa situação, até chegar à cena final, que exerce no espectador um choque quase como o de um coito interrompido, uma “broxada”, digamos assim.

Creio que esse efeito de anti-clímax tenha sido bem proposital, tendo em vista o leitmotif sexual do filme, explorado em algumas cenas com todo o incômodo do escatológico. O diretor Cattaneo explora muito os planos longos centrados nas atividades cotidianas e abjetas (o recolher do lixo nas ruas, o dar banho na mãe inválida), ou cotidianas e ignóbeis (a masturbação, a visualização de pornografia, o voyeurismo de garotas adolescentes pelas ruas, as conversas picantes, por comunicadores instantâneos tipo MSN, com uma mulher misteriosa).

Parece que o cineasta acionou sua formação em escola de cinema para tentar realizar o velho ideal neorrealista de Cesare Zavattini: um filme que mostra, em tempo real, todos os não-acontecimentos do dia-a-dia de um homem. Porém, de uma forma que nos faz pensar, antes, em um “neonaturalismo” (o indivíduo como escravo de seus instintos mais baixos). É como se Antonioni (o cineasta existencialista da “incomunicabilidade”) se associasse a Tinto Brass (o mestre pornógrafo de Calígula) para adaptar “O Homem do Subsolo” de Dostoiévski. Com alguns milhões de euros, para uma filmagem em película e uma grande distribuição, este filme estouraria.

segunda-feira, novembro 01, 2010

Air Doll


Mais uma da 34ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

A abertura deste filme faz lembrar, imediatamente, A Garota Ideal (“Lars And The Real Girl”, 2007, de Craig Gillespie). Temos um diálogo dos mais banais entre o casal sentado à mesa de jantar. A decupagem também é a mais cotidiana: um jogo simples de campo e contracampo. Porém, a mulher é uma boneca inflável. Para além do choque desta revelação, causa um estranhamento de grande efeito estético a maneira prosaica de representar o inusitado – o que só faz com que este pareça ainda mais absurdo.

Esvazie o inesperado do seu caráter de surpresa, mostre o peculiar no seio do típico, contamine o normal de uma gota de anormal; eis a fórmula de muitas formas de poesia. Não obstante, Air Doll (“Kûki Ningyô”, Japão, 2009, dir.: Hirokazu Koreeda) tomará rumos bem distintos de sua “prima” norte-americana. Ao invés de investigar as causas e consequências da vida solitária de um homem que resolve namorar uma boneca sexual, a narrativa do japonês mergulhará a fundo na vida e na “alma” da própria criatura de plástico.

Para tanto, logicamente, Koreeda (bem prestigiado por Depois da Vida – “Wandafuru Raifu”, 1998; e Ninguém Pode Saber – “Dare Mo Shiranai”, 2004) fará o filme se vestir de trajes fantásticos, que serão trabalhados dentro de uma chave alegórica bela e pertinente, porém, um tanto quanto simplista. A beleza se encontra em cenas como aquela na qual a boneca (batizada de Nozomi) estranha a sombra translúcida do seu corpo cheio de ar, ao lado da sombra perfeitamente opaca do homem pelo qual está apaixonada (que não é o seu dono, mas um atendente de video-locadora).

Ou a cena em que ela tenta descobrir em que parte do corpo do seu amado se encontra o “bico de ar” dele – para grande prejuízo do próprio. Quanto às mensagens veiculadas, o filme é uma fábula que não economiza tons emotivos e enfáticos para discutir o “vazio” interior das pessoas nas grandes cidades; o ar-sopro que preenche tanto Nozomi quanto a todos nós, representa o espírito de amor, de humanidade, etc; a solidão inviolável, dentre outros temas.

Nisto, as andanças de Nozomi pela cidade lembram as perambulações dos anjos de Wim Wenders, em Asas do Desejo (“Wings of Desire”, 1987), ambas retratadas com lirismo bem franco. Entretanto, o cineasta alemão é mais denso na apresentação e desenvolvimento dos seus temas, sem contar que o tom do filme, apesar de enfático, não chega nunca a se tornar cansativo. O mesmo já não se pode dizer de Air Doll, cujas intenções acabam sobressaindo-se aos resultados, tendo em vista o conjunto.

As questões existenciais colocadas, apesar de bem interessantes (como dissemos), não logram uma efabulação e discussão que vão muito além de uma forma apenas um pouco mais sofisticada de auto-ajuda – a fábula é contemporânea também, infelizmente, no que diz respeito à sua construção. O diretor carrega demais na emoção, naquela trilha sonora que orienta pela mão, o tempo todo, a reação emocional do espectador. Sem contar que praticamente todos os planos deste filme apresentam um leve travelling lateral de câmera, mesmo quando o assunto do quadro está completamente parado.

Este último – e irritante – recurso me faz acreditar que Koreeda tenta ser, para o cinema lírico, o que Michael Bay tenta ser para o épico. De qualquer maneira, os problemas de Air Doll não estão na raiz, mas nos galhos – digamos assim. Como proposta poética e sócio-filosófica dotada de grande sensibilidade, este filme vale o investimento. De resto, outros cineastas humanistas poderiam ensinar a Koreeda um pouco mais de ambiguidade, de meios-tons e um pouco menos de condescendência (cito o próprio Wenders e aqueles que ele elogiou no final de Asas do Desejo: Truffaut, Tarkovski e Ozu).

sábado, outubro 30, 2010

Minha Felicidade


Minha Felicidade (“Schastye Moe”, Alemanha / Ucrânia / Holanda, 2010) é o primeiro longa de ficção do diretor russo Sergei Loznitsa, mais conhecido – e premiado – por seus documentários. Foi exibido este ano em Cannes, provocando surpresa e polêmica, tanto entre seus compatriotas quanto na crítica estrangeira. A causa é aquela já tão batida visão misantrópica do homem e da sociedade, adotada por Loznitsa e manifestada, neste filme, sem maiores cuidados com as sensibilidades do espectador.

O fato é: se você gosta de Lars Von Trier e dos nossos Sérgio Bianchi e Cláudio Assis, terá uma boa tendência a se refestelar deliciosamente na miséria humana concentrada pelo cineasta russo como que numa piscina de excrescências morais. De qualquer maneira, não consigo mais cair naquela conversa – que parece trunfo na manga de muitos críticos – do artista “com uma visão profunda da verdadeira natureza humana”, com um olhar “que disseca impiedosamente a organização social”, etc e etc.

Juízos conteudísticos à parte – pelo menos, neste caso – o que interessa é argumentar a favor ou contra a realização formal da obra; já que se trata de cinema, e supondo que este seja mesmo a “sétima arte”, o essencial é julgar se o artista logrou expressar, esteticamente, sua visão de mundo, seja esta à lá “garoto enxaqueca”, ou à lá “Pollyanna”. Neste ponto, devemos dar a Loznitsa um crédito semelhante ao Von Trier de Anticristo (2009), e muito maior do que os aprendizes brasileiros que citamos acima.

Minha Felicidade parte da estrutura de um “road movie”, que nos conduz e atrai, com a força irrepreensível de um buraco negro, para os recônditos mais ctônicos do coração das trevas russo (esta indicação se encontra na resenha do crítico russo Anton Dolin, na Film Comment). O processo, bem gradativo, concentra-se na figura do caminhoneiro Georgy (Viktor Nemets), que empreende uma viagem pelo interior do país, rumo a um destino nunca revelado, para entregar uma carga de farinha.

Mas, ao prosaico do elemento material (incluindo a figura do pequeno caminhão, um velho Mercedes Benz que não vemos pelas ruas daqui há, pelo menos, uns vinte anos), opor-se-á o quase metafísico (infernal) processo de dissolução mental do protagonista, tornando-se mais “viajado” do que “viajante”, conforme vai adentrando mais e mais na densidade selvagem de um território no qual o Mal sopra e age como o vento, como uma força da natureza avessa a qualquer racionalização.

A última cena do filme é de grande – e simbólica – beleza: tornado definitiva e irremediavelmente mais coisa do que homem, sem memória e sem fala (ou seja, sem identidade), um vegetal ambulante carregado para lá e para cá pela vontade alheia, Georgy voltará a tomar uma atitude (consciente?) de homem – única e última. Uma atitude de violência quase divina, declaração de abandono final da humanidade e do mundo.

Após (tudo se passa à noite, num posto policial perdido no meio do nada), vemo-lo caminhar lentamente, como em transe, rumo à escuridão absoluta e desaparecer nela. Contribui muito, para o grande impacto visual desta narrativa, a fotografia do romeno Oleg Mutu (que também assinou Quatro Meses, Três Semanas e Dois Dias, ganhador da Palma de Ouro de Cannes em 2007). Enfim, a mensagem deste filme (em exibição na Mostra de SP) não tem nada de “inovadora”, mas a realização vale a conferida.

quarta-feira, outubro 27, 2010

Não Me Deixe Jamais


Existem dois tipos de narrativas de vôos dramáticos que decolam do chão da ficção científica. O primeiro diz respeito àquelas histórias que procuram rastrear o alcance dos efeitos humanos (psíquicos, sociais, filosóficos, etc) de uma dada situação científico-tecnológica inexistente em nosso tempo. Nestas, o fato material é de importância essencial e toda a fabulação crescerá tomando-o como raiz. É o gênero do “sci-fi”, propriamente dito (pelo menos, em seus melhores frutos). Um (bom) exemplo recente, e um tanto quanto aparentado do filme que discutiremos aqui, é o de Lunar (“Moon”, 2009, dir.: Duncan Jones).

O segundo tipo mal poderia ser rotulado de “ficção científica”. Corresponde às obras que tomam da “ciência” como nada mais do que pretexto: um chamariz muito oportuno para que prestemos atenção a coisas mais transcendentais. Tais narrativas possuem, via de regra, um caráter mais alegórico do que as primeiras. São fábulas no mais exato sentido do termo: seus elementos denotativos e particulares absolutamente não interessam – tanto é que histórias assim perdem pouco tempo com descrições épicas do espaço narrativo ou com efeitos especiais (no caso do cinema). Toda a significação se concentra nos âmbitos do conotativo e do universal.

Ótimos exemplos são as “ficções” de Andrei Tarkovski: Solaris (1972), Stalker (1979) e O Sacrifício (1986). Pois bem. Eis a família sobrenatural (para usar a expressão do poeta Murilo Mendes) à qual o diretor norte-americano Mark Romanek (de videoclipes e de Retratos de Uma Obsessão / “One Hour Photo” – 2002) se arvorou para dar à luz o seu Não Me Deixe Jamais (“Never Let Me Go”, Reino Unido / EUA, 2010), em exibição na Mostra de SP. Esteticamente, não há qualquer parentesco entre os dois cineastas: a “imagem-tempo” ainda é exclusividade do mestre russo, o qual foi beber em Bergman, Antonioni...

Já o filme de Romanek é o que podemos esperar de um biscoito fino assado sob os cuidados dos departamentos “cult” dos grandes estúdios (no caso, a Fox Searchlight): exige um requinte maior de paladar, mas não faz cuspir quem esteja acostumado a bolachas “passatempo”. Feito sob medida para óscares e globos de outro. Não obstante, vemos na tela uma natureza bucólica como único e acolhedor refúgio de párias em profunda crise existencial; no fora-de-campo, orbita a desumanidade da ciência e o mundo artificial que ela criou. O resumo é tosco, mas eis os ecos tarkovskianos que imaginei para este filme.

O roteiro de Não Me Deixe Jamais é adaptado do romance homônimo do escritor japonês Kazuo Ishiguro, publicado em 2005. Acompanha a curta trajetória de três jovens amigos: a inteligente Kathy (Carey Mulligan), o emotivo Tommy (Andrew Garfield) e a manipuladora Ruth (Keira Knightley), cujas vidas e função social são irremediavelmente determinadas desde o nascimento – ou melhor, desde a sua concepção; infelizmente a morte, para eles, não é aquela esperança que Roger Daltrey canta, na clássica My Generation, do The Who (“Hope I die before get old”).

O filme se divide em três atos: a infância, num bucólico colégio interno para alunos “especiais”; a adolescência, numa colônia rural igualmente remota, chamada apenas de “Cottages” (chalés); o início da fase adulta, quando finalmente terão maiores contatos com o mundo, antes de logo exercerem a razão de seu nascimento e criação. Sabemos que o sistema educacional no mundo ocidental foi, historicamente, se distanciando cada vez mais da vida e do mundo, ao mesmo tempo em que investia mais e mais na sua função de “preparar”, industrialmente, a mão-de-obra para este. Mas é a primeira vez – e muito bem vinda – que vemos a instituição escola sendo comparada simbolicamente a uma fazenda de gado.

Sabendo o quanto suas vidas são controladas e o seu destino, curto, a maior tragédia desses jovens não é procurar (e não conseguir) viver com a maior intensidade possível antes do fim inadiável. Seu desespero é que sequer sabem o que é “viver”, tampouco como viver; e não terão tempo de aprender. As poucas cenas do filme, em que eles exercem de fato, na vida e no mundo, a sua inquestionável, porém engatinhante humanidade (na sexualidade, no amor, na natureza, no contato com a civilização), são de uma força poética simples e potente. Vale a lição da professora que, “subversivamente”, lhes esclareceu a sua condição, para que procurassem viver uma vida “decente”.

Por isso, podemos dizer que Não Me Deixe Jamais é um filme muitíssimo triste, porém, digno. Não é uma ficção científica, porque em momento algum passa pelas cabeças dos protagonistas a ideia de questionar a ordem estabelecida (como em Blade Runner); eles a veem com a mais absoluta e triste naturalidade, assim como nós mesmos nos vemos ao pensar nas vicissitudes que a vida e a natureza nos colocam em frente (principalmente, é claro, nas relações entre o tempo e a morte). Dessa maneira, o drama daqueles personagens é o nosso próprio drama, como a narradora Kathy muito conscientemente afirma. Todos somos mortais e só nos resta fazer o possível com o tempo que nos é dado.

Em vista disso, Kathy não deixa de sentir e admitir até mesmo orgulho pelo “trabalho” que eles fazem. Um crítico malicioso poderia fazer disso uma leitura sócio-política e taxar o filme de reacionário. Mas repito: não se trata de uma ficção científica nos moldes de um Aldous Huxley. O modelo aqui é Stanislaw Lem (o autor do romance Solaris, que inspirou Tarkovski) e suas proucupações metafísicas. Não Me Deixe Jamais não é o drama de uma classe social, no caminho do matadouro, exercendo a função de “gado”. É o drama de todos nós, devorados pelo Cronos soberbo e, ao mesmo tempo, temeroso de que o destronemos.

terça-feira, outubro 26, 2010

Minhas Mães e Meu Pai


Irremediavelmente abalado por 500 Dias Com Ela (“500 Days of Summer”, EUA, 2009, de Marc Webb), eu me lembro de ter falado enfaticamente das “realidades humanas” que o filme soube representar de um jeito simples, honesto e profundo. Pois bem. Minhas Mães e Meu Pai (“The Kids Are All Right”, EUA, 2010, de Lisa Cholodenko) chega até nós como mais um exemplo desta forma poética e singela de “educação sentimental” exercida pelo cinema. A fita está em exibição na Mostra de SP e programada para já estrear em circuito no dia 12 de novembro.

O que vemos ali, antes de mais nada, é a vida sossegada, feliz e em perfeita harmonia de uma família não-convencional: um casal de duas mulheres (Nic, vivida por Annette Bening – que merece indicação para um Oscar, ou, pelo menos, para um Globo de Ouro –; e Jules, interpretada por Julianne Moore) e seus dois filhos adolescentes (Laser / Josh Hutcherson e Joni / Mia Wasikowska – a Alice de Tim Burton), concebidos no ventre de cada uma delas com o esperma de um doador anônimo.

Já de início, a maneira como Cholodenko retrata o cotidiano da casa revela o grau de atenção e cuidado profundamente humanos com que a cineasta aborda o seu tema. Ela está pouco interessada em romantizar e glamourizar o universo “alternativo” das pessoas “alternativas” – seu cinema é “indie” apenas no que toca aos custos da produção. Tampouco sua preocupação é fazer aquele cinema “naturalista”, com o bicho-homem refestelando-se na própria ignomínia. A diretora não trabalha com “tipos”; pelo menos, não da maneira como se poderia esperar de um filme “off-Hollywood”.

Em todos os aspectos, Lisa Cholodenko está anos-luz à frente de um Todd Solondz, por exemplo. Suas personagens não são “esquisitas”, “bizarras”, “párias”, “problemáticas”, “disfuncionais”, etc, etc, etc. A naturalidade, a normalidade e até a “caretice” pelas quais a família em questão lembra qualquer outra família que habita o universo urbano contemporâneo podem ser creditadas ao rico discernimento que o filme nos apresenta em relação aos fenômenos e relações humanas no que é a sua essência mais importante.

Para usar um conceito em voga, atualmente, na internet, Lisa Cholodenko procura sabotar, o tempo todo, a single history que o espectador poderia esperar vinda de uma família com duas mães (e nenhum pai). Ou seja, quaisquer preconceitos (e pré-conceitos), qualquer visão previsível, superficial, rígida, e sobretudo única, que se possa ter do assunto “lesbianismo”, é deixada absolutamente de lado pela diretora. Mesmo se tal visão for condescendente e dotada daquela fascinação que produz modas e “hypes”, os quais servirão, no fundo, apenas para erodir a complexidade e diversidade humanas.

Quem quer saber mais sobre os perigos da “história única”, confira este vídeo, no youtube, aqui e aqui. Há uma outra cena, em The Kids Are All Right, que ironiza tais armadilhas de julgamento: quando uma das amigas de Joni (que não parece ser rascista, propriamente dita, nem se julgaria a si mesma como tal, provavelmente) acha que a jovem e bela mulher (negra), com a qual está conversando numa mesa de restaurante, veio da África, só pelo fato de usar um colar “tribal”.

O fato é que Lisa Cholodenko não trabalha em cima de quaisquer rótulos, sejam eles positivos ou negativos. Seu filme não é – e passa longe de ser – uma mera “ação afirmativa” do homossexualismo feminino, da construção de famílias não-convencionais, da produção e consumo de alimentos orgânicos, e de todo o universo “moderno” que poderíamos conectar a esses temas; ainda que os personagens se encaixem, sociologicamente falando, dentro de tais categorias. Contudo, psicologicamente, o buraco é muito mais embaixo (com o perdão do trocadilho).

A cineasta dedica-se a um microrrealismo, que busca – de maneira que, em nenhum momento, deixa de ser problematizadora – as fundações da alma dos indivíduos: seus processos interiores, os comportamentos que resultam destes e as cadeias de resultados e efeitos nas subjetividades alheias. Neste ponto, em que o ser inconsciente de todos os seres humanos pode ser definido como “só sabendo desejar” (no ótimo resumo que Jung faz da psicanálise freudiana), o fato de a personagem em questão ser homem ou mulher, hétero ou homossexual, não passa de mero detalhe, com pouco a acrescentar.

Em uma matéria publicada na edição de julho / agosto da Film Comment, Cholodenko (que, só para constar, é lésbica e vive, atualmente, numa relação estável) diz que é totalmente “quadrada” (“I’m totally square”), ao explicar a sua proposta cinematográfica. Ela afirma que: “My films have been about temptation and the open spirit that takes you away from anything that’s binding. The Kids Are All Right is a meditation on what’s potentially exhilarating in the bind. It’s like a hope film. At least, I’d like that to be true. (...)

I also thought, I’m dealing with this gay two-mom family and I really want to explore those ideas in a way that completely offsets the spectacle of it being a two-mom family.” Traduzindo: “Meus filmes são sobre tentação e sobre o espírito livre que leva você para longe de tudo que seja um compromisso. The Kids Are All Right é uma meditação sobre o que pode ser divertido no compromisso. É um filme de esperança. Pelo menos, eu gostaria que isso fosse verdade. (...)

Eu também pensei: estou lidando com esta família gay de duas mamães e realmente gostaria de explorar tais ideias de um jeito que seja totalmente o contrário do espetáculo que poderia ser uma família com duas mães.” É através dessa esperança, de que fala a diretora, que o filme exerce o seu maior poder no espectador. A educação sentimental de que falei no começo se dá em uma forma seguramente adulta, ou seja, com todas as doses de vicissitudes, complexidades e problemas deste ser que só sabe desejar.

Não obstante todo o realismo (neurótico, que poderia desembocar num pessimismo, ou niilismo, ou coisa pior), a escolha que a diretora e as personagens fazem, e o resultado a que se chega, são ainda acreditar no amor e perseverar na busca da felicidade. O crítico mais impaciente talvez não enxergará essas nuanças e rotulará Cholodenko de “conservadora”, e ponto. Para tais espíritos, eu peço apenas que vejam Tudo Pode Dar Certo (“Whatever Works”, 2009, de Woody Allen), além do já citado 500 Dias Com Ela.

Acredito que estes filmes formam uma linha de direcionamento bem interessante que se está dando, atualmente, à velha comédia romântica norte-americana. De qualquer maneira, o poder da “tentação”, de que falou a cineasta no trecho reproduzido mais acima, usará como principal instrumento, em The Kids Are All Right, a figura do pai anônimo (Paul / Mark Ruffalo), o qual chegará como elemento desestruturador da paz e do equilíbrio da família de “duas mamães”.

Entendamos bem: Paul é uma força benigna em todos os aspectos intrínsecos, a relação de amizade e familiaridade que se cria entre ele, os filhos e as duas mães é absolutamente saudável, legítima, enriquecedora, e mesmo necessária. Não obstante, exercerá um poder destrutivo com o qual será muito difícil lidar, justamente quando o fator “tentação” entrar no jogo (o resto eu não conto). No trato do elemento “desejo” e das tempestades que ele, naturalmente, provoca, Lisa Cholodenko mistura muito bem a comédia de costumes e o drama de personagem.

E, nunca é demais reiterar, o mais importante de tudo é que a cineasta não se esquece de construir e desenvolver as personagens e situações sempre com uma dose revigorante de humanidade, de empatia e simpatia por tudo o que, afinal de contas, não é alheio a pessoa alguma. No que qualquer diretor menos sensível poderia descambar para o psicologismo ou sociologismo, Cholodenko mantém a abertura e a ambiguidade de quem sabe que não faz mais do que representar e compartilhar a vida. Pura e simplesmente.

segunda-feira, outubro 25, 2010

Os Amores de Um Zumbi


O intelectual (professor universitário) e cineasta haitiano Arnold Antonin já é veterano. Estreou em 1974 e conta, atualmente, com 34 filmes: a maioria, documentários de curta-metragem feitos em vídeo. Em 2002, foi premiado em Cannes com a fita Women of Courage (“Mulheres de Coragem”). Na Mostra de SP deste ano, temos a chance de conferir sua mais nova empreitada, um longa de ficção curiosamente intitulado Os Amores de Um Zumbi (“The Loves of a Zombi”, Haiti, 2009).

Trata-se da história picaresca de um malandro apaixonado que, mesmo depois de morto, não desiste de procurar e viver junto da mulher amada. Por suas peripécias, ele será conhecido e admirado em todo o país. E, uma vez celebridade, as portas da política se lhe abrirão de par em par – alguns homens poderosos tentarão fazê-lo, muito oportunamente, presidente da nação.

A sinopse é realmente estimulante, fazendo logo ecoar, em nossa memória, fatos bem recentes do nosso velho Brasil: quem é que precisa de um zumbi quando se tem Tiririca? No cinema, a tentação é estabelecer uma ponte com o clássico A Mulher Faz O Homem (“Mr. Smith Goes To Washington”, EUA, 1939, de Frank Capra), com o caipira Sr. Smith nadando entre tubarões no senado.

Infelizmente, o filme de Antonin absolutamente não investe na veia político-alegórica entreaberta em seu roteiro. No todo, passa como uma narrativa picaresca das mais elementares, com as típicas doses de humor burlesco na vertente mais escatológica. Nisto, um crítico com bastante paciência e condescendência poderia ver um fresco e revigorante sopro de naïf.

Mas as falhas técnicas, também das mais elementares (daquelas que mal seriam cometidas por adolescentes que fazem vídeos para o youtube), deixam qualquer um com um pé e meio atrás. Mesmo que a ideia fosse fazer um filme propositalmente “tosco” para abocanhar festivais (como Woody Allen brinca em Dirigindo no Escuro – “Hollywood Ending”, 2002), certas inconsistências deveriam ser “apenas” aparentes.

Não me refiro simplesmente ao fato de a captação ser em vídeo da pior qualidade, de a montagem quase revelar o momento em que o diretor grita “ação!”, dentre outros problemas constrangedores. Não sou daqueles que acreditam que qualquer “Full HD” garantirá uma produção “de qualidade”. O pior mesmo, em Os Amores de Um Zumbi, é o amadorismo do roteiro.

O final é inacreditavelmente confuso e desproposital, parece que tentaram criar uma ambiguidade do tipo como vemos no fechamento de A Origem (“The Inception”), mas o resultado é muito, muito mais bobo do que na fita de Christopher Nolan. À guisa de atenuante, coloca-se no créditos iniciais do filme como que um pedido de desculpas aos espectadores, preparando-os para a bomba que vem a seguir:

a produção argumenta, ironicamente, que o filme é produto exclusivo da fantasia dos seus produtores, alimentada e embriagada com altas doses de sal (como se o próprio diretor fosse um zumbi – logo mais explicaremos) e de rum. Enfim, está colocada a brincadeira. De qualquer forma, a hora e meia que se gasta vendo Os Amores de Um Zumbi não provoca qualquer arrependimento, acredito que a experiência (tanto a dos produtores, quanto a do espectador) seja válida.

Ademais, sinto-me muito mais idiota ao ver uma super-produção “ruim” (por não ter logrado atingir sua própria proposta estético-temática, ou que esta provoque nada mais do que abjeção – coloco neste mesmo balaio Lars Von Trier e Michael Bay), do que um filme praticamente caseiro, cujos defeitos estejam na técnica mais básica, de modo que mal se pode dizer que seja “profissional”.

Mas valeu a tentativa, companheiros haitianos. Talvez seja eu que não tenha captado o experimentalismo da proposta, mas não desistam. Sério. Consideração final: os fãs de George Romero não precisam perder tempo vendo esta fita. O conceito de zumbi trabalhado aqui está mais ligado à religião vodu do Haiti, o qual inspirou A Maldição dos Mortos-Vivos (1988), de Wes Craven. Vejam!

P.S. (um tanto quanto jocoso): Tirando as informações divulgadas pela Mostra de SP, não se encontra ABSOLUTAMENTE nada na Internet sobre este filme. Será que existe mesmo, ou somos todos zumbis?

domingo, outubro 24, 2010

Símbolo


Vou na Mostra para ver o novo do Woody Allen? Sofia Coppola? Amos Gitai? De jeito nenhum. Não tenho paciência alguma para filas, e essa história de “ver primeiro que todo mundo” absolutamente não me atrai. Agora, o que é verdadeiramente entusiasmante é o fato de poder conferir filmes estranhíssimos, de nomes estranhíssimos e que (provavelmente) jamais entrarão no mercado, mesmo em DVD. Não que eu cultive qualquer juízo de valor mais prestigioso ao cinema dito “alternativo”. É só curiosidade mesmo. E os festivais oferecem um cardápio bastante suculento da diversidade da produção cinematográfica mundial.

É neste espírito que gostaria de colocar algumas palavrinhas aqui a respeito de Símbolo (“Shinboru”, Japão, 2009), exibido ontem na 34ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (quem quiser passar pela experiência dele, ainda terá chances nos dias 01 e 02 de novembro, em salas e horários variados – consulte a programação em http://www.mostra.org/). O filme é dirigido e protagonizado por Hitoshi Matsumoto, comediante bastante popular na terra do sol nascente. Esta é a sua segunda incursão no cinema – o debute se deu com Big Man Japan (“Dai Nipponjin”, 2007), que também misturava de maneira bizarra o humor e o fantástico.

A história (tanto quanto se possa dizer que exista uma) é a de um homem (o próprio Matsumoto) que acorda numa sala absolutamente branca e asséptica, sem portas, nem janelas. Vestido de um colorido pijama de bolinhas, divertimo-nos com os exagerados gritos e gestos de surpresa, indignação, entusiasmo, frustração e, enfim, desespero, enquanto o pobre inominado tenta diferentes estratégias para escapar do seu estranho cativeiro. Nas paredes, só se vê pequenas protuberâncias em formato sugestivamente fálico as quais, se pressionadas com o dedo, fazem com que sejam arremessados dentro da sala a maior e mais nonsense variedade de objetos possíveis:

uma escova de dentes cor de rosa, um megafone, um bonsai, um guerreiro tribal africano que corre – e desaparece – de ponta a outra, uma quantidade insaciável de sushi (mas sem molho shoyu, para desespero do pobre homem), etc, etc, etc. É preciso não nos esquecermos de dizer que tais fatos são mostrados em paralelo com a vida de um lutador de luta-livre no México, o famoso “Escargot Man”, herói das crianças, que nunca mostra o rosto (até nas fotos de família ele aparece irremediavelmente mascarado). Ele é uma versão burlesca do “wrestler” interpretado por Mickey Rourke em O Lutador: pretende manter-se nos ringues, enfrentando oponentes cada vez mais jovens e violentos, contrariando as preocupações da família.

O choque linguístico dessas duas narrativas que correm lado a lado já traz uma cômica dose de estranhamento: o japonês e o castelhano em suas formas mais típicas, com as entonações exageradas das quais só um estrangeiro (não tão politicamente correto) saberá rir; na história do homem japonês sem nome, ainda há algumas incursões daquele não menos risível e empostado inglês americano típico dos “advertising”. Enfim, as duas histórias vão convergir – logicamente – em certo ponto do filme. Porém, mesmo creditando o suficiente à carga nonsense do roteiro, a convergência poderia se um pouco mais orgânica e significativa.

A impressão que se fica, em relação exclusivamente ao ponto de contato entre as duas narrativas paralelas, é de que se construiu e pavimentou uma larga e sofisticada rodovia para um vilarejo perdido no mapa. Felizmente (mas não tanto), este ponto de contato não se dá no final do filme; após, serão acrescentados outros elementos que desembocarão na mensagem e no sentido finais – os quais se fazem por demais claros, ainda que certos detalhes específicos da efabulação permaneçam no obscuro do nonsense e do surreal (por exemplo, que lugar é, de fato, o não-lugar em que o homem sem nome fica preso: o máximo que poderíamos tentar dizer é que se trata de uma “casa de máquinas” do universo).

Em relação à tal mensagem, podemos entender Símbolo como uma obra “esclarecedora” e “edificante”, num sentido muito pós-moderno, mais ou menos como se vê em certos filmes de Alejandro González Iñárritu ou Michel Gondry. Agora, ligar Matsumoto a Kubrick, a Jodorowsky, ou mesmo a David Lynch, acredito que seja exagero – não obstante, tal entusiasmo é bem compreensível. O importante é entendermos que não se trata de uma simples alegoria (com suas indigestas doses de didatismo); por outro lado, a simbologia poderia ser um pouco mais complexa e, sobretudo, aberta – que é o que define o melhor da produção mítica já empreendida por esta espécie que vos fala.

quinta-feira, setembro 23, 2010

Duas notas a respeito de Peckinpah


1.

É público e notório que os westerns de Sam Peckinpah tentam registrar o canto de cisne tanto do espaço geográfico e social do Velho Oeste, quanto do gênero cinematográfico que dele tanto se ocupara. A alegoria de Pauline Kael é mesmo bonita: “Pouring new wine into the bottle of the Western, Peckinpah explodes the bottle” (Ao colocar vinho novo na garrafa do Western, Peckinpah faz com que ela transborde). Isto se refere, é claro, à proverbial violência nos filmes do diretor.

Mas há outro aspecto da coisa que também vale citar. A sociedade rural, meio selvagem / meio patriarcal, do velho oeste vai encontrando o seu fim com a chegada da civilização urbano-industrial e suas máquinas, o que já está bem demonstrado na construção da ferrovia em Era Uma Vez no Oeste (“Once Upon A Time In The West”, 1968) do Sérgio Leone. Além disso, obsolescência do Oeste também será a da figura típica do bandoleiro, e é deste que Peckinpah tratará com lirismo e carinho dramático.

Mas não é dos velhos pistoleiros (e pistoleiros velhos) que queremos falar aqui. E sim, de um elemento que Peckinpah faz questão de associar à sua decadência e à transformação do locus amoenus do Oeste: trata-se do automóvel. Trazendo à lembrança toda a mitologia do far-west enquanto paisagem de uma natureza inóspita e convidativa à exploração e conquista, não ficarão de fora as figuras arquetípicas do cavalo e das carruagens, que sempre ajudaram a enformar os clichês do gênero:

quem se esquecerá da minúscula imagem da diligência atravessando soberba e temerariamente a vastidão desconhecida de um Monumental Valley dominado por índios pouco amistosos, em No Tempo das Diligências (“Stagecoach”, 1939) de John Ford? Bem, e o que é que faz Sam Packinpah, por seu turno? Ele faz questão de inserir, encaixar, meter e enfiar a massa e o volume de um veículo motorizado na paisagem “westeriana” que tanto conhecemos e amamos.

O impacto visual e a estranheza de tais imagens constituem, creio eu, talvez o aspecto mais violento da tão falada violência do cineasta. Tomando a liberdade e ousadia de emendar Kael, Peckinpah fabricou um verdadeiro coquetel molotov ao encher com gasolina a cânfora do western. Foi assim também que o diretor a “explodiu”. E ele é bem cuidadoso em colocar com irônica ênfase as figuras de automóveis em planos bastante significativos de seus filmes.

Além do mais, o automóvel não representa tão somente uma violência “simbólica”. Vejamos os exemplos. Em Pistoleiros do Entardecer (“Ride The High Country”, 1962), temos dois planos escarninhos: 1. Alguém sai de um saloon e, ao botar o pé na rua, é quase atropelado por um carro, se não fosse por outra pessoa que o puxasse pelo braço ao grito de “cuidado” (e o veículo invade o quadro pela lateral quase em primeiro plano, atropelando também os olhos do espectador);

2. Numa breve panorâmica, a câmera acompanha a corrida entre um cavalo e um dromedário (sendo este último conduzido por um dos heróis do filme) pelas ruas da cidade; no final de seu movimento, a câmera fixa um quadro no qual vemos, em primeiro plano e no ponto de ouro, um automóvel estacionado – enquanto, ao fundo, escapam os dois animais. A composição deste último plano é absolutamente intencional em seus menores detalhes e muito inteligente.

Peckinpah demonstra, de maneira exemplar, que cinema é mais do que “registro” do real; cinema é discurso construído. E o mais interessante é que as duas imagens estão no começo do filme, logo nos primeiríssimos minutos. O diretor não perde tempo em mostrar a que veio. No Meu Ódio Será A Tua Herança (“The Wild Bunch”, 1969), os (anti-) heróis encontram o corrupto general mexicano – para quem acabaram de fazer um serviço sujo – a se refestelar na própria ignomínia:

junto dos seus comparsas, o comandante desfila com irrepreensível desfaçatez a bordo de um luxuoso conversível que fica simplesmente dando voltas em círculos ao redor da pequena e miserável aldeia ocupada, arrastando por uma corda amarrada aos pulsos um dos membros da quadrilha dos “gringos” (os protagonistas), que teria trabalhado “desonestamente” (resumindo ao máximo a história). A cena é de uma violência impressionante, mesmo para os padrões de hoje: todos na aldeia, inclusive crianças, envolvem-se na “malhação do judas”.

Esse tipo de “castigo” nos faz lembrar de nossos cangaceiros (“dar um galope” em alguém, como diz o bandidão de O Cangaceiro – 1953, de Lima Barreto). Não obstante, em Peckinpah a violência do “arrastamento” será ainda maior, mais prolongada, simbólica (carregada de ostentação material) e sarcástica, por ser usado um automóvel no lugar de um cavalo. Por fim, em A Morte Não Manda Recado (“The Ballad of Cable Hogue”, 1970), os carros não vão mais martelar pregos no caixão dos bandoleiros.

Neste filme bastante sensível, o objeto-fetiche do capitalismo industrial do século XX apontará suas rodas para os velhos pioneiros, que desbravaram e ocuparam o Oeste a pé ou sobre os cascos de cavalos. O protagonista, Cable Hoghe (Jason Robards) é o herói do sonho americano no sentido mais tradicional: após ser assaltado, espancado e deixado para morrer no meio da aridez do meio-oeste, ele encontra um poço de água, contrói ao redor dele sua casa e passa a viver bem confortavelmente, junto com a mulher que conhecerá, oferecendo água e comida para os viajantes das diligências que passam por ali.

A chegada da ferrovia lhe trará o grande medo de falir (a estrada de ferro não passará próximo de sua propriedade), mas as esperanças serão renovadas quando os primeiros automóveis começam a tomar o lugar das diligências na velha estrada. Mas então... (spoiler!) Cable Hogue morrerá estupidamente atropelado pelo primeiro carro que vê na vida (ele tentará impedir, com o próprio corpo, que o veículo sem freios deslize por uma leve ladeira). A sua ignorância e simpática ingenuidade em relação às coisas “modernas” se mede pelo comentário irônico que faz logo após o acidente: “It kicks harder than a mule!” (O coice dele é mais forte que o de uma mula).

Cable Hogue é um homem simples, de um tipo em extinção, mas que ainda tenta dar uns fôlegos de sobrevida nos filmes de Peckinpah. De qualquer maneira, é neste filme que a presença ameaçadora do automóvel se faz mais elaborada e contundente, enquanto parte fundamental do desenrolar dos acontecimentos e do destino dos personagens. Qual a conclusão a que chegaremos a partir disso? Sam Peckinpah é simplesmente contra o “progresso”, como um novo Velho do Restelo?

Não creio que seja nada tão ideologizado. Peckinpah tem, com certeza, uma alma de poeta (o lado poético da violência nos filmes dele é algo que a sua fortuna crítica nos EUA já mostrou). E o lirismo do diretor é do tipo romântico, ou seja, ele lamenta com nostalgia o crepúsculo de velhos mundos, cuja simplicidade maior no sentir, no pensar e no viver está sendo maquinalmente substituída pela frieza de objetos de um engenho e indústria indiferentes às coisas mais profundas e intransigentes da alma.

2.

Existe algo da velha areté dos guerreiros homéricos nos heróis de Peckinpah: a virilidade e outras virtudes varonis que tornam inconcebível a ideia de um homem abandonar o campo de batalha, mesmo em desvantagem. Acredito que seja nesta chave que se deve pensar a tão falada violência nos filmes do diretor. O ato violento aqui não é aquele do profissionalismo de gângster, remetendo tampouco ao sadismo do psicopata. A violência em Peckinpah não é uma anomia social, mas um valor ético e moral, ligado – logicamente – a estruturas sócio-culturais mais “primitivas”.

A agressividade dos personagens exerce-se em função de uma honra e lealdade mais calcadas na proximidade das relações de indivíduo a indivíduo. Os heróis pekinpanianos deixam-se possuir pela violência, mergulhando nela como em um transe beatífico. Nisto, a autopreservação pouco importa; não há outra escolha para o guerreiro, ele deve defender o que é seu, ou morrer tentando. Em outros casos, trata-se de vingança. Vejamos. Em Meu Ódio Será A Tua Herança, a caminhada altiva do “wild bunch” rumo à autoimolação é um dos momentos mais poéticos de todo o cinema.

Eles não querem saber se vão vencer as tropas do “general” (já sabem que jamais vencerão); mas aqueles velhos e decadentes pistoleiros simplesmente não podem abraçar a aposentadoria tendo abandonado um dos seus nas garras do inimigo. Desse modo, tendo todas as razões práticas para irem embora (principalmente o dinheiro em mãos), eles decidem voltar atrás e tirar satisfações com o “general”, pois não podem passar por cima da razão ética. Algo bem parecido ocorre em Tragam-me A Cabeça de Alfredo Garcia (“Bring Me The Head of Alfredo Garcia”, 1974):

depois de ter cumprido (com imensas dificuldades) a missão, ter recebido o pagamento conforme combinado e estar pronto para ir embora, o herói decide subitamente se voltar contra o “patrão”, indignado com a quantidade de mortes (inclusive a da própria namorada) necessárias para que trouxesse a tal da cabeça. O último ato do herói é “kamikaze”: ele morre, mas leva junto o patrão e boa parte de seus asseclas. Talvez não seja nem o caso de entender esses “gran finales” como apenas um ato abnegado de auto-sacrifício na impossibilidade de se conquistar uma vitória mais prática e concreta.

Acredito que as escolhas de tais heróis constituem elas mesmas o ponto mais alto (ou verdadeiramente único) de seus atos guerreiros: é um outro tipo de vitória, baseada em outros valores. Mais exatamente, eles buscam não uma vitória de fatos, mas uma vitória de princípios. Os guerreiros gregos conquistavam a imortalidade através da memória que deixavam de seus feitos. Assim, morrer realizando uma façanha valorosa (ainda que de efeito prático frustrante) é mais sedutor do que viver na covardia e na obscuridade. No fundo, são códigos cavaleirescos que perpassam diversas culturas (mas todas elas distantes dos padrões da civilização urbano-industrial).

Os guerreiros de Peckinpah realizam seus grandes atos de violência como um rito, sacerdotes que são da pulsão de morte (a qual, no mesmo sentido psicanalítico, relaciona-se dialeticamente com a pulsão de vida): matar para dar vida; morrer para viver. O tão comentado aspecto gráfico e a câmera lenta nas cenas mais violentas do cineasta podem ser analisados como expressão dessa liturgia homérica. O paradoxo de tais sínteses remete, muito coincidentemente, ao clássico conto do nosso Guimarães Rosa: “A Hora e Vez de Augusto Matraga” (publicado originalmente no livro “Sagarana”, em 1946).

O ato final de Matraga tem o mesmo aspecto, qualidade e significado que os que vemos nos dois filmes acima citados (a fantasia é imaginar Peckinpah filmando uma adaptação de Rosa). O ocaso do Velho Oeste e de seus guerreiros não se consumará sem uma despedida à altura. Algo assim já se via, dentre os filmes do diretor, em Pistoleiros do Entardecer (“Ride The High Country”, 1962), ainda que de maneira menos elaborada que nas obras posteriores.

Mas o melhor e mais acabado exemplo da areté em Sam Peckinpah encontra-se em Sob O Domínio do Medo (“Straw Dogs”, 1971). Seria uma imprecisão dizer que o pacato matemático vivido pela figura pouco intimidante de Dustin Hoffman teria “perdido a cabeça” frente ao cerco de sua casa e partido para cima do bando de escoceses bêbados e sedentos de sangue. O fato é que: depois de se fazer diversas vezes submisso ao bullying dos seus vizinhos, o personagem de Hoffman, vendo que a agressividade primitiva daqueles atingiu o paroxismo, reconhece que instrumentos racionais e discursivos não lograrão dissuadi-los.

Sendo assim, ele decide (o filme coloca como um ato de decisão mesmo, ainda que muito indignada, e não como mera explosão nervosa) abandonar a justiça civilizada e partir para a mais primitiva: um homem jamais poderá permitir (de qualquer maneira) que sua casa seja invadida (não importa com quais razões). De pouco adiantam os apelos da mulher, que tenta colocar panos quentes na briga e forçar o marido a uma atitude mais “lógica”. Hoffman mergulhará com gosto na violência, entrando num transe quase orgásmico, lembrando, novamente, o Augusto Matraga de Rosa

(ambos são personagens que resistem ao máximo às pulsões violentas; mas, quando estas lhes são requeridas em favor da moral e da ética mais primitivas, eis que o guerreiro adormecido desperta). Ébrio de agressividade, Hoffman chega a ecoar o gesto do homem que estuprara sua mulher (e que é um dos que empreendem o cerco à casa, apesar de o protagonista desconhecer o atentado), tomando-a pelo pescoço e prometendo quebrá-lo se ela não colaborar com os seus planos de defesa.

No final do filme, após ter massacrado todos os invasores, Hoffman deixa a esposa em casa e leva de carro, até a cidade, o homem que escondia em sua residência e que o bando ensandecido queria capturar a todo custo (suposto estuprador). A última imagem, mostrando de frente, dentro do veículo, os rostos do homem e de Hoffman, este com um leve mas firme e soberbo sorriso de contentamento e de “missão cumprida”, ecoa muito ironicamente o final do popular A Primeira Noite de Um Homem (“The Graduate”, 1967, Mike Nichols), com o mesmo Hoffman contente com o ato corajoso e viril de “roubar” a noiva do altar, ambos indo embora num ônibus coletivo.

sexta-feira, setembro 10, 2010

Iep!


A mais louca e mais poética fantasia não se distanciará muito da realidade, pois quando esta já é naturalmente dotada de um aspecto quase mágico, será acionado aquele olhar sensível – e raro – que desejará explorar o potencial expressivo de tudo que parece mentira, mas não é. Como dizia o mestre Alberto Caeiro: “Só a natureza é divina, e ela não é divina.” O verdadeiro poeta chama a atenção para as coisas, exercitando e estimulando um olhar constantemente renovado em relação a elas, descobrindo nelas sempre novas, diferentes e, principalmente, insuspeitadas facetas.

E o cinema é um dispositivo particularmente feliz para a aplicação de tais filosofias. Quando lemos a análise que André Bazin faz de dois grandes clássicos do cinema para as crianças (O Balão Vermelho – 1956; e O Cavalo Branco – 1953; ambos de Albert Lamorisse), no ensaio intitulado “Montagem Proibida” (presente na antologia: “O Cinema: ensaios”. 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1991), compreendemos a condenação quase moral que o grande crítico faz das trucagens que envolvem a montagem. Cremos que, hoje em dia, Bazin tomaria o mesmo posicionamento em relação ao uso indiscriminado dos efeitos especiais de computação gráfica.

Em vista disso, só temos que louvar as escolhas estéticas e humanas feitas para Iep! (Holanda / Bélgica, 2010, dir.: Ellen Smit). O filme está sendo exibido, em São Paulo, no 8º FICI (Festival Internacional de Cinema Infantil) e, segundo a Folha de S. Paulo de hoje, “ganhou o prêmio máximo no festival de cinema infantil de Montréal, no Canadá”. A história começa com um observador de pássaros (Warre) que vive com a mulher (Tine) numa casa de campo bem bucólica e um dia encontra, debaixo de uma árvore, um minúsculo e estranho ser: o corpo é de uma menina, mas no lugar dos braços veem-se asas. Ele leva o “bebê” para casa e passa a criá-lo, junto com a esposa – ambos não têm filhos.

A menina-pássaro recebe o nome de Dorinha (a versão que vi fora dublada exclusivamente para o FICI) e vai crescendo, até o dia em que precisa, literalmente, voar para longe do ninho. Isso, é lógico, provoca uma corrida dos “pais” para buscá-la, à qual se juntam outros personagens, espaços e acontecimentos inusitados, nem todos bem colocados e (ou) trabalhados. Mas tudo se perdoa e não compromete o resultado geral do filme, que não deixa de se fazer sensível, edificante e esteticamente bem dirigido. A narrativa tem um andamento comum em histórias infanto-juvenis, parecendo como que um novelo de lã que se arremessa e vai se desenrolando, passando por todos os lugares e despertando todas as reações.

Tirante uns planos gerais tarkovskianos, o melhor e mais chamativo neste filme é a escalação da jovem canadense Kenadie Jourdin Bromley para o papel principal. É em sua excepcional figura que se realiza aquele princípio poético do real que parece fantástico, de que falamos mais atrás. Bromley é portadora de uma condição genética muito rara denominada nanismo primordial, que faz com que todos os membros e órgãos do corpo possuam um tamanho muitíssimo reduzido e de modo proporcional (diferentemente das formas mais comuns de nanismo).

No Brasil, devemos nos lembrar do caso em que uma dessas pessoas foi explorada de maneira circense no “Domingão do Faustão”, em 1996 (o que virou até capa da – no geral infame – revista “Veja” e ajudou a suscitar um debate social que finalmente começou a impor limites à barbárie na TV aberta – um de seus melhores frutos é a campanha “Ética na TV – Quem Financia A Baixaria É Contra A Cidadania”). Porém, é lógico que no filme de Ellen Smit o registro é bem outro.

Quando vemos a pequena Bromley / Dorinha (a atriz tem sete anos de idade), com os seus braços de penas, inserida no mesmo plano que os outros atores (principalmente no colo da mãe adotiva), tornamo-nos imediatamente encantados pelo poder mágico de uma máquina que não faz nada mais do que registrar o que se coloca diante dela. Aqui não cabem truques de montagem ou de efeitos “especiais” (ambos só são – sabiamente – usados em algumas das cenas nas quais Dorinha precisa voar). Temos aqui a beleza e a diversidade naturais da figura humana expressas em função da arte, da fantasia e da sensibilidade. Enfim, o humano em favor do humano.

Compare-se isso com o abominável “freakshow” que, no geral, domina as mídias audiovisuais e se alcançará uma ideia da coragem e do valor deste pequeno e independente filme. O que é também muito interessante é que os conteúdos alegóricos de Iep! não aparecem senão muito pela tangente. Podemos, é claro, ler o filme como uma fábula sobre o processo de criação dos filhos; sobre o crescimento destes; sobre a convivência com o diferente, etc, etc, etc.

Mas, retomando mais uma vez as formulações do poeta Caeiro, é melhor deixarmos aqui em segundo plano (embora não tão menos importante) as metáforas e símbolos, para que não nos esqueçamos de prestar atenção à imensa experiência sensorial que esta película nos proporciona, através da força visual inusitada e única que possui. Num mundo em que ser “diferente” virou modinha, muito graças a golpes publicitários do naipe de Glee, é urgente que se produzam, descubram e valorizem tentativas como as de Iep!

Pequena digressão final: a verdadeira inclusão social não pode se realizar através do nivelamento por baixo na sociedade de consumo; não é macaqueando a cultura dos “winners” que os “losers” haverão de se auto-afirmar (é por isso que uns 80% dos livros de autoajuda que existem por aí não valem nem o papel em que são impressos). Imaginem se, ao invés de aprender a bater suas asas e voar para longe, Dorinha treinasse umas coreografias e fosse ostentar suas penas no “musical” da escola! Os velhos circos de aberrações continuam por aí, ainda que sob tendas de armação mais sofisticada e sutil...

P.S.: A família de Kenadie Jourdin Bromley mantém um site, o qual aceita doações em dinheiro. Maiores informações, clique aqui.

quinta-feira, setembro 02, 2010

Blogueiro não é maloqueiro...


É isso aí, galera! O que é que nós, blogueiros cinéfilos de Pindorama, podemos aproveitar da profissão de fé empreendida pelo nosso companheiro americano Paul Brunick, no texto de ontem? Bem, vou tecer, mais ou menos livremente, algumas digressões um pouco idiossincráticas a respeito de coisas que ele discute, seguindo mais ou menos a ordem da apresentação delas no artigo dele. De resto, engajar-nos-emos (nossa, essa palavrinha não saiu o que eu esperava) em uma conversa através dos eventuais comentários de vocês. Vamos que vamos...

Que a decadência da crítica – e do próprio cinema – tenha encontrado as catracas liberadas com a geração “blockbuster” a partir dos anos 80, isso não é novidade alguma. Mas o “profissional” que escreve resenhas de filmes não pode deixar que a banalização dos meios contamine os seus enunciados, emprenhando-os de lugares-comuns – ainda que estes sejam de crítica e oposição. Desse modo, não dá para simplesmente despachar das vistas qualquer nova empreitada hollywoodiana sob a mira de exclamações do tipo: “o cúmulo da infantilização de Hollywood”, dentre outras que recombinam mais ou menos as mesmas palavras e parecem fazer parte central no caderninho de notas de alguns críticos de grandes jornais.

É cansativo, não? Em princípio, porque tais sentenças, que costumam ser impressas fora de qualquer contextualização e argumentação em formato de texto (naqueles malfadados quadros de “cotações”), parecem sumariamente desqualificar em termos de expressão cultural qualquer coisa ligada à “criança”. Quero dizer, se o crítico não gosta de filmes pueris, os pimpolhos certamente gostarão. O cinema dirigido para estes não é um cinema “menor” – assim como, logicamente, a sua literatura. O problema, na real, é: uma certa “Hollywood”, que costumava dar atenção à gente grande, decidiu mudar de rumo e levar seu espetáculo para outras plateias.

Mas, parafraseando Brunick, uma parcela da crítica parece preferir trabalhar com “nostalgia pré-fabricada”, ao invés de “pensamento histórico aplicado”. De qualquer modo, pode ser que eu é que esteja sendo ingênuo: talvez nenhum jornal ou revista, hoje em dia, se proponham a discutir um pouco mais a fundo e a sério as coisas, cotidianamente (polemização fácil vende bastante, e desconfio que “experts” da estirpe de Diogo Mainardi saibam bem disso).

Enfim, concordamos que os anos 80 foram invadidos por pepitas da natureza de Willow – Na Terra da Magia (“Willow”, EUA, 1988, dir.: Ron Howard); mas havemos de concordar também que a década dos altivos e amedrontadores yuppies também produziu um – verdadeiro – autor como John Hughes, que compôs arranjos mais sofisticados para os “teen movies” (principalmente em O Clube dos Cinco – “The Breakfast Club”, 1985, sua obra-prima), ainda que todo mundo depois dele só tenha avacalhado a melodia – exceto, talvez, por Gus Van Sant.

Então, ninguém discordará de que seja inglória a tarefa de procurar pelos nos ovos de Brett Ratner e Michael Bay (aproveitando-nos do exemplo de Brunick), mas tal situação deverá ser modulada em duas frequências: 1. Há diretores que são comerciais e vão além do comercial – sem deixar de serem comerciais, tais como o supra-citado Hughes (o juízo de valor que se dará a esse paradoxo é justamente um trabalho para o “super-crítico”); 2. Em qualquer porcaria (pense nas piores porcarias mesmo, naqueles pantagruélicos desperdícios de celulose fílmica, como as fitas de Uwe Boll, ou aquelas com Jean-Claude Van Damme), podem ser encontrados ecos de forma e de conteúdo que já animaram as mais altas obras-primas já produzidas pela espécie que domina este planeta – ainda que tais ecos se façam ouvir bem de longe.

É por isso que preciso fazer aqui e agora uma pequena sessão de puxasaquismo sedarasgativo: uma de minhas maiores inspirações para começar a escrever sobre filmes e dar início a este blog foi a coluna Ponto de Fuga, assinada pelo professor e historiador da arte Jorge Coli, publicada aos domingos no caderno “Mais” da Folha de S. Paulo (e que, infelizmente, foi para o saco, na mais recente reforma gráfico-editorial do jornal; não obstante, graças a alguma alma caridosa, uma antologia de seus textos foi reunida em livro e lançada recentemente pela editora Perspectiva).

Coli dedicava-se, na maior parte do tempo, à música e às artes plásticas; mas, quando falava sobre cinema, procurava apontar e estimular reflexões e comparações estético-filosóficas a partir das produções mais rasteiras da indústria (e não estou aqui falando daqueles filmes “ruins” que viram “cult” entre os cinéfilos, estou falando das sessões habituais de “Temperatura Máxima” e “Domingo Maior”). O próprio autor explicou, uma vez, os bem arrazoados motivos de tal proposta. Até hoje, não me esqueço de como ele demonstrou que certa película estrelada por Van Damme – Hell, 2003, dir.: Ringo Lam (?) – era mais FILME do que o “hype” nacional da época, Carandiru (2003, dir.: Hector Babenco).

Assim que inaugurei o Sombras Elétricas, escrevi para ele e conquistei um comentário seu na resenha que fiz do Superman Returns (a terceira postagem deste blog – confira aqui). Que alegria! Enfim, acredito que, para a sobrevivência e desenvolvimento da crítica de cinema – e dos próprios filmes, por que não? – o crítico não deva ter preconceitos, não importa o quão densas sejam as trevas da idade na qual vivemos. Ele pode e deve ter preferências pessoais, é claro, mas isso já é outra coisa.

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É mesmo aterrorizante a intolerância presente nos depoimentos de velhos críticos do “mainstream” e citados por Brunick, a respeito da crítica feita em blogs e seus autores. Por outro lado, como o articulista não deixa de reconhecer, existem de fato bobagens escritas na rede – minha veia professoral sente algum prazer em separar o joio do trigo. E o fato mais importante é que, se a velha guarda não pode ter essa atitude condescendente em relação aos mais jovens, é da responsabilidade destes mostrar que a carapuça não lhes serve, através de muito estudo, leituras e filmes que contribuam para a formação estética, histórica e intelectual do aspirante a crítico de cinema (a tirada que o autor faz com o “Encouraçado Pokémon” é hilária).

Acho, sobretudo, orgasticamente inspirador (um verdadeiro tesão) o exemplo que Brunick toma em relação a Andrew Sarris e Pauline Kael, dois grandes ban-ban-bans da crítica norte-americana. É reconfortante saber que ambos começaram escrevendo DE GRAÇA para qualquer lugar que se dispusesse a publicá-los. E não só concordo com Brunick de que Sarris e Kael não enxergariam os blogueiros como penetras, como acredito piamente que, se eles estivessem começando suas carreiras hoje em dia, muito provavelmente seriam eles próprios donos de blogs. A nova “era de ouro” pode não estar chegando (diferentemente do que acredita o autor); mas, se não houver tais suportes na Internet, com certeza perderemos um ou dois gênios da crítica.

É por esta razão também que, sendo professor, boto muita confiança no poder de cursos, oficinas, grupos de estudo, (cine-) clubes, etc. Não sou tolo o suficiente para achar que educação formal resolve tudo (muito pelo contrário), creio bastante no autodidatismo e no diletantismo “desinteresseiro” (acho que o neologismo é autoexplicativo); mas não há nada como a troca e o exercício coletivo de experiências, dúvidas e pontos-de-vista. O apoio mútuo é o que mais ajuda a despertar e fazer deslanchar novos talentos, seja em comunidades virtuais (sites de relacionamento, associações de blogs), seja nas reais. Mas nestas, é beeeeeem difícil encontrar alguma coisa: em São Paulo, alguém realiza uma oficina de crítica de vez em nunca.

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Outro braço que devemos dar a torcer por Paul Brunick será em relação aos seus tristes comentários sobre o tamanho reduzido dos textos publicados hoje em dia nas mídias impressas. De fato, quando abro a Folha ou o Estado de São Paulo às sextas-feiras, fico quebrando a cabeça para tentar imaginar como é que eu poderia falar sobre, por exemplo, Wall.E (2008) – que eu adorei –; ou sobre Besouro (2009) – que eu odiei –, nas parcas linhas daquelas caixas de texto. Mas que nada! Eu? Eu sou apenas um... rapaz latino-americano. Fico imaginando é Paulo Emílio Salles Gomes escrevendo para a Veja! – (hahaha).

De qualquer maneira, entendamos bem as coisas: a ideia não é que, quanto mais palavras, mais neurônios; mas faço coro a Brunick, quando este diz que “críticos de cinema trabalham melhor quando são capazes de escrever numa variedade de formatos que variam enormemente em volume, estilo retórico e público presumido”. E, retomando o conteúdo dos textos, tendo em vista a enfadonha tarefa de ter que escrever sobre Michael Bay, às vezes os críticos parecem esquecer mesmo de suas outras funções, as quais acho recomendável que sejam exercidas, principalmente, pelo pessoal desamarrado dos blogs. Nas palavras do articulista:

“1. proselitismo em favor dos criativamente triunfantes, mas comercialmente marginais; 2. garimpagem em velhos catálogos à busca de obras-primas não-apreciadas em seu tempo; 3. colocação dos filmes dentro das narrativas mais abrangentes da história das ideias; 4. transformação de gosto pessoal em arte ensaística para o benefício de si própria”. Na imprensa de papel, é natural que tais práticas sejam exceção. Quanto à “blogosfera”, já vi e vejo páginas bem interessantes que se dedicam com coragem e abnegação a esse trabalho “nerd”. Não obstante, a coisa poderia ser mais generalizada, se é para que a próxima era dourada da crítica nasça dentro da rede.

Finalmente, reflitamos um pouco sobre a citação otimista que Brunick faz de Oscar Wilde: “É somente o moderno que sempre sai de moda”. Isso pode ser lido em duas chaves: 1. A auto-indulgência de qualquer vanguardismo masturbatório é estéril, seja este encarnado na forma de um filme, diretor ou movimento (já fui taxado de reacionário por defender tais posições, mas tenhamos um pouco de discernimento aqui, pessoal: existem vanguardas e “vanguardas” – dentre as últimas, os epígonos constituem a espécie mais abjeta que rasteja pela face da Terra);

2. Por mais que o capitalismo permaneça nos empurrando goela abaixo Brett Ratners e Michael Bays da vida, não são eles que ficarão para a história, assim como não ficaram nenhum dos “romancistas” que escreviam rentáveis folhetins como deviam usar papel higiênico, durante o industrioso século XIX – no lugar deles, temos hoje um Balzac. Pense nisso. Ousando contrariar Brunick, vamos dizer que nem sempre o capitalismo “acha um jeito”. Ufa! Acho que, por hoje, é isso mesmo. Assim que sair o próximo número da Film Comment (e eu conseguir comprá-lo, logicamente), tentarei traduzir, publicar e comentar aqui a parte final do texto de Paul Brunick. Falou!