Amor Líquido (“Amore Liquido”, Itália, 2009) é o primeiro longa-metragem do relativamente jovem diretor Marco Luca Cattaneo (33 anos), graduado e pós-graduado em cinema. Foi registrado em vídeo e, num primeiro momento, pode dar ao espectador desavisado desta Mostra de SP a mesma impressão de amadorismo do já comentado aqui no blog Os Amores de Um Zumbi. Mas, com um pouco de paciência (a qual muitos não tiveram, pois viam-se pessoas indo embora no meio da exibição, a todo instante – o ritmo deste filme é, de fato, um tanto quanto lento) descobrir-se-á uma película (ou melhor, um arquivo digital) de grande profissionalismo e potencial artístico.
A história é a de Mário, um solitário gari bolonhês que vive com a mãe, muito debilitada após um derrame. O homem divide as suas horas entre o trabalho, o cuidar da velha senhora, e um “hobby” muito peculiar: pornografia na Internet. Tudo vai equilibradamente bem, até o momento em que ele leva para casa alguns DVDs jogados fora por uma mulher em fase de divórcio (Ágatha). Os discos contém vídeos de viagens em família e gravações íntimas da vida sexual do casal. Mário muito se divertirá, naturalmente, com os últimos.
E o mais interessante é que o gari tentará se aproximar de fato de Ágatha, que é atendente em um café. Apaixonado, sua estratégia – ainda que bem tímida – será a do amigo / companheiro / cara legal, tendo em vista que a mulher já está separada e criando, sozinha, sua filha pequena (Viola). Mário despertará grandes simpatias e conquistará a confiança da menina e, não muito posteriormente, a da mãe. Nosso conhecimento de mundo nos leva, incontroladamente, a desconfiar das intenções e do caráter do protagonista: será ele um psicopata?
E acredito que o filme se compraz ao saber (e levar em conta) os pensamentos “sujos” que se passam pela mente do espectador. Mas a chave aqui é bem outra. Mário é, verdadeiramente, um homem de bom coração. Seu problema reside no fato de ser um incorrigível pobre diabo, um adolescente de 13 anos preso no corpo de um homem dos seus 35 – nada que alguns anos de terapia não pudesse ajudar a resolver. Mário é a figura de uma solidão muito típica dos grandes centros urbanos – e que é bastante discutida no Air Doll, que comentamos ontem.
Há algo de dostoievskiano neste personagem; e algo, mais ainda, dos personagens irremediavelmente solitários dos romances do também italiano Dino Buzzati (“O Deserto dos Tártaros”, “Um Amor”), absolutamente perdidos em meio aos seus desejos e expectativas, assim como entre toda a dinâmica e convenções das relações sociais, cuja complexidade está muito, muito além da capacidade e experiência de manejo por parte de tais pessoas, cuja ingenuidade-pureza (o naïf em sua forma mais pueril) chega quase ao nível do patológico. O resultado disso só pode ser a paralização mais completa. Mário fica – e termina – completamente sem ação.
A cena final é chocante e plena de significação. Ele não conseguirá engajar-se num relacionamento com Ágatha; por outro lado, também não conseguirá abandoná-la – pelo menos, não de uma forma decidida, segura, adulta. É triste, mas muito verdadeiro. É também muito interessante a maneira como o ritmo do filme – bastante arrastado – vai construindo gradativamente toda essa situação, até chegar à cena final, que exerce no espectador um choque quase como o de um coito interrompido, uma “broxada”, digamos assim.
Creio que esse efeito de anti-clímax tenha sido bem proposital, tendo em vista o leitmotif sexual do filme, explorado em algumas cenas com todo o incômodo do escatológico. O diretor Cattaneo explora muito os planos longos centrados nas atividades cotidianas e abjetas (o recolher do lixo nas ruas, o dar banho na mãe inválida), ou cotidianas e ignóbeis (a masturbação, a visualização de pornografia, o voyeurismo de garotas adolescentes pelas ruas, as conversas picantes, por comunicadores instantâneos tipo MSN, com uma mulher misteriosa).
Parece que o cineasta acionou sua formação em escola de cinema para tentar realizar o velho ideal neorrealista de Cesare Zavattini: um filme que mostra, em tempo real, todos os não-acontecimentos do dia-a-dia de um homem. Porém, de uma forma que nos faz pensar, antes, em um “neonaturalismo” (o indivíduo como escravo de seus instintos mais baixos). É como se Antonioni (o cineasta existencialista da “incomunicabilidade”) se associasse a Tinto Brass (o mestre pornógrafo de Calígula) para adaptar “O Homem do Subsolo” de Dostoiévski. Com alguns milhões de euros, para uma filmagem em película e uma grande distribuição, este filme estouraria.
muito interessante André, fã que sou do Buzzati, não pude deixar de lembar do pobre Giovanni Drogo enquanto você falava do filme, mesmo antes de citar o escritor italiano. Talvez auxiliado pela nacionalidade.
ResponderExcluirFiquei com vontade de assistir a obra, vou ver se encontro em algum lugar.
Vale a pena procurar, mas não deve ser muito fácil. Também sou muito fã do Buzzati.
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