A mais louca e mais poética fantasia não se distanciará muito da realidade, pois quando esta já é naturalmente dotada de um aspecto quase mágico, será acionado aquele olhar sensível – e raro – que desejará explorar o potencial expressivo de tudo que parece mentira, mas não é. Como dizia o mestre Alberto Caeiro: “Só a natureza é divina, e ela não é divina.” O verdadeiro poeta chama a atenção para as coisas, exercitando e estimulando um olhar constantemente renovado em relação a elas, descobrindo nelas sempre novas, diferentes e, principalmente, insuspeitadas facetas.
E o cinema é um dispositivo particularmente feliz para a aplicação de tais filosofias. Quando lemos a análise que André Bazin faz de dois grandes clássicos do cinema para as crianças (O Balão Vermelho – 1956; e O Cavalo Branco – 1953; ambos de Albert Lamorisse), no ensaio intitulado “Montagem Proibida” (presente na antologia: “O Cinema: ensaios”. 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1991), compreendemos a condenação quase moral que o grande crítico faz das trucagens que envolvem a montagem. Cremos que, hoje em dia, Bazin tomaria o mesmo posicionamento em relação ao uso indiscriminado dos efeitos especiais de computação gráfica.
Em vista disso, só temos que louvar as escolhas estéticas e humanas feitas para Iep! (Holanda / Bélgica, 2010, dir.: Ellen Smit). O filme está sendo exibido, em São Paulo, no 8º FICI (Festival Internacional de Cinema Infantil) e, segundo a Folha de S. Paulo de hoje, “ganhou o prêmio máximo no festival de cinema infantil de Montréal, no Canadá”. A história começa com um observador de pássaros (Warre) que vive com a mulher (Tine) numa casa de campo bem bucólica e um dia encontra, debaixo de uma árvore, um minúsculo e estranho ser: o corpo é de uma menina, mas no lugar dos braços veem-se asas. Ele leva o “bebê” para casa e passa a criá-lo, junto com a esposa – ambos não têm filhos.
A menina-pássaro recebe o nome de Dorinha (a versão que vi fora dublada exclusivamente para o FICI) e vai crescendo, até o dia em que precisa, literalmente, voar para longe do ninho. Isso, é lógico, provoca uma corrida dos “pais” para buscá-la, à qual se juntam outros personagens, espaços e acontecimentos inusitados, nem todos bem colocados e (ou) trabalhados. Mas tudo se perdoa e não compromete o resultado geral do filme, que não deixa de se fazer sensível, edificante e esteticamente bem dirigido. A narrativa tem um andamento comum em histórias infanto-juvenis, parecendo como que um novelo de lã que se arremessa e vai se desenrolando, passando por todos os lugares e despertando todas as reações.
Tirante uns planos gerais tarkovskianos, o melhor e mais chamativo neste filme é a escalação da jovem canadense Kenadie Jourdin Bromley para o papel principal. É em sua excepcional figura que se realiza aquele princípio poético do real que parece fantástico, de que falamos mais atrás. Bromley é portadora de uma condição genética muito rara denominada nanismo primordial, que faz com que todos os membros e órgãos do corpo possuam um tamanho muitíssimo reduzido e de modo proporcional (diferentemente das formas mais comuns de nanismo).
No Brasil, devemos nos lembrar do caso em que uma dessas pessoas foi explorada de maneira circense no “Domingão do Faustão”, em 1996 (o que virou até capa da – no geral infame – revista “Veja” e ajudou a suscitar um debate social que finalmente começou a impor limites à barbárie na TV aberta – um de seus melhores frutos é a campanha “Ética na TV – Quem Financia A Baixaria É Contra A Cidadania”). Porém, é lógico que no filme de Ellen Smit o registro é bem outro.
Quando vemos a pequena Bromley / Dorinha (a atriz tem sete anos de idade), com os seus braços de penas, inserida no mesmo plano que os outros atores (principalmente no colo da mãe adotiva), tornamo-nos imediatamente encantados pelo poder mágico de uma máquina que não faz nada mais do que registrar o que se coloca diante dela. Aqui não cabem truques de montagem ou de efeitos “especiais” (ambos só são – sabiamente – usados em algumas das cenas nas quais Dorinha precisa voar). Temos aqui a beleza e a diversidade naturais da figura humana expressas em função da arte, da fantasia e da sensibilidade. Enfim, o humano em favor do humano.
Compare-se isso com o abominável “freakshow” que, no geral, domina as mídias audiovisuais e se alcançará uma ideia da coragem e do valor deste pequeno e independente filme. O que é também muito interessante é que os conteúdos alegóricos de Iep! não aparecem senão muito pela tangente. Podemos, é claro, ler o filme como uma fábula sobre o processo de criação dos filhos; sobre o crescimento destes; sobre a convivência com o diferente, etc, etc, etc.
Mas, retomando mais uma vez as formulações do poeta Caeiro, é melhor deixarmos aqui em segundo plano (embora não tão menos importante) as metáforas e símbolos, para que não nos esqueçamos de prestar atenção à imensa experiência sensorial que esta película nos proporciona, através da força visual inusitada e única que possui. Num mundo em que ser “diferente” virou modinha, muito graças a golpes publicitários do naipe de Glee, é urgente que se produzam, descubram e valorizem tentativas como as de Iep!
Pequena digressão final: a verdadeira inclusão social não pode se realizar através do nivelamento por baixo na sociedade de consumo; não é macaqueando a cultura dos “winners” que os “losers” haverão de se auto-afirmar (é por isso que uns 80% dos livros de autoajuda que existem por aí não valem nem o papel em que são impressos). Imaginem se, ao invés de aprender a bater suas asas e voar para longe, Dorinha treinasse umas coreografias e fosse ostentar suas penas no “musical” da escola! Os velhos circos de aberrações continuam por aí, ainda que sob tendas de armação mais sofisticada e sutil...
P.S.: A família de Kenadie Jourdin Bromley mantém um site, o qual aceita doações em dinheiro. Maiores informações, clique aqui.
E o cinema é um dispositivo particularmente feliz para a aplicação de tais filosofias. Quando lemos a análise que André Bazin faz de dois grandes clássicos do cinema para as crianças (O Balão Vermelho – 1956; e O Cavalo Branco – 1953; ambos de Albert Lamorisse), no ensaio intitulado “Montagem Proibida” (presente na antologia: “O Cinema: ensaios”. 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1991), compreendemos a condenação quase moral que o grande crítico faz das trucagens que envolvem a montagem. Cremos que, hoje em dia, Bazin tomaria o mesmo posicionamento em relação ao uso indiscriminado dos efeitos especiais de computação gráfica.
Em vista disso, só temos que louvar as escolhas estéticas e humanas feitas para Iep! (Holanda / Bélgica, 2010, dir.: Ellen Smit). O filme está sendo exibido, em São Paulo, no 8º FICI (Festival Internacional de Cinema Infantil) e, segundo a Folha de S. Paulo de hoje, “ganhou o prêmio máximo no festival de cinema infantil de Montréal, no Canadá”. A história começa com um observador de pássaros (Warre) que vive com a mulher (Tine) numa casa de campo bem bucólica e um dia encontra, debaixo de uma árvore, um minúsculo e estranho ser: o corpo é de uma menina, mas no lugar dos braços veem-se asas. Ele leva o “bebê” para casa e passa a criá-lo, junto com a esposa – ambos não têm filhos.
A menina-pássaro recebe o nome de Dorinha (a versão que vi fora dublada exclusivamente para o FICI) e vai crescendo, até o dia em que precisa, literalmente, voar para longe do ninho. Isso, é lógico, provoca uma corrida dos “pais” para buscá-la, à qual se juntam outros personagens, espaços e acontecimentos inusitados, nem todos bem colocados e (ou) trabalhados. Mas tudo se perdoa e não compromete o resultado geral do filme, que não deixa de se fazer sensível, edificante e esteticamente bem dirigido. A narrativa tem um andamento comum em histórias infanto-juvenis, parecendo como que um novelo de lã que se arremessa e vai se desenrolando, passando por todos os lugares e despertando todas as reações.
Tirante uns planos gerais tarkovskianos, o melhor e mais chamativo neste filme é a escalação da jovem canadense Kenadie Jourdin Bromley para o papel principal. É em sua excepcional figura que se realiza aquele princípio poético do real que parece fantástico, de que falamos mais atrás. Bromley é portadora de uma condição genética muito rara denominada nanismo primordial, que faz com que todos os membros e órgãos do corpo possuam um tamanho muitíssimo reduzido e de modo proporcional (diferentemente das formas mais comuns de nanismo).
No Brasil, devemos nos lembrar do caso em que uma dessas pessoas foi explorada de maneira circense no “Domingão do Faustão”, em 1996 (o que virou até capa da – no geral infame – revista “Veja” e ajudou a suscitar um debate social que finalmente começou a impor limites à barbárie na TV aberta – um de seus melhores frutos é a campanha “Ética na TV – Quem Financia A Baixaria É Contra A Cidadania”). Porém, é lógico que no filme de Ellen Smit o registro é bem outro.
Quando vemos a pequena Bromley / Dorinha (a atriz tem sete anos de idade), com os seus braços de penas, inserida no mesmo plano que os outros atores (principalmente no colo da mãe adotiva), tornamo-nos imediatamente encantados pelo poder mágico de uma máquina que não faz nada mais do que registrar o que se coloca diante dela. Aqui não cabem truques de montagem ou de efeitos “especiais” (ambos só são – sabiamente – usados em algumas das cenas nas quais Dorinha precisa voar). Temos aqui a beleza e a diversidade naturais da figura humana expressas em função da arte, da fantasia e da sensibilidade. Enfim, o humano em favor do humano.
Compare-se isso com o abominável “freakshow” que, no geral, domina as mídias audiovisuais e se alcançará uma ideia da coragem e do valor deste pequeno e independente filme. O que é também muito interessante é que os conteúdos alegóricos de Iep! não aparecem senão muito pela tangente. Podemos, é claro, ler o filme como uma fábula sobre o processo de criação dos filhos; sobre o crescimento destes; sobre a convivência com o diferente, etc, etc, etc.
Mas, retomando mais uma vez as formulações do poeta Caeiro, é melhor deixarmos aqui em segundo plano (embora não tão menos importante) as metáforas e símbolos, para que não nos esqueçamos de prestar atenção à imensa experiência sensorial que esta película nos proporciona, através da força visual inusitada e única que possui. Num mundo em que ser “diferente” virou modinha, muito graças a golpes publicitários do naipe de Glee, é urgente que se produzam, descubram e valorizem tentativas como as de Iep!
Pequena digressão final: a verdadeira inclusão social não pode se realizar através do nivelamento por baixo na sociedade de consumo; não é macaqueando a cultura dos “winners” que os “losers” haverão de se auto-afirmar (é por isso que uns 80% dos livros de autoajuda que existem por aí não valem nem o papel em que são impressos). Imaginem se, ao invés de aprender a bater suas asas e voar para longe, Dorinha treinasse umas coreografias e fosse ostentar suas penas no “musical” da escola! Os velhos circos de aberrações continuam por aí, ainda que sob tendas de armação mais sofisticada e sutil...
P.S.: A família de Kenadie Jourdin Bromley mantém um site, o qual aceita doações em dinheiro. Maiores informações, clique aqui.
Nossa, fiquei extremamente envolvido.
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