Páginas

quinta-feira, setembro 23, 2010

Duas notas a respeito de Peckinpah


1.

É público e notório que os westerns de Sam Peckinpah tentam registrar o canto de cisne tanto do espaço geográfico e social do Velho Oeste, quanto do gênero cinematográfico que dele tanto se ocupara. A alegoria de Pauline Kael é mesmo bonita: “Pouring new wine into the bottle of the Western, Peckinpah explodes the bottle” (Ao colocar vinho novo na garrafa do Western, Peckinpah faz com que ela transborde). Isto se refere, é claro, à proverbial violência nos filmes do diretor.

Mas há outro aspecto da coisa que também vale citar. A sociedade rural, meio selvagem / meio patriarcal, do velho oeste vai encontrando o seu fim com a chegada da civilização urbano-industrial e suas máquinas, o que já está bem demonstrado na construção da ferrovia em Era Uma Vez no Oeste (“Once Upon A Time In The West”, 1968) do Sérgio Leone. Além disso, obsolescência do Oeste também será a da figura típica do bandoleiro, e é deste que Peckinpah tratará com lirismo e carinho dramático.

Mas não é dos velhos pistoleiros (e pistoleiros velhos) que queremos falar aqui. E sim, de um elemento que Peckinpah faz questão de associar à sua decadência e à transformação do locus amoenus do Oeste: trata-se do automóvel. Trazendo à lembrança toda a mitologia do far-west enquanto paisagem de uma natureza inóspita e convidativa à exploração e conquista, não ficarão de fora as figuras arquetípicas do cavalo e das carruagens, que sempre ajudaram a enformar os clichês do gênero:

quem se esquecerá da minúscula imagem da diligência atravessando soberba e temerariamente a vastidão desconhecida de um Monumental Valley dominado por índios pouco amistosos, em No Tempo das Diligências (“Stagecoach”, 1939) de John Ford? Bem, e o que é que faz Sam Packinpah, por seu turno? Ele faz questão de inserir, encaixar, meter e enfiar a massa e o volume de um veículo motorizado na paisagem “westeriana” que tanto conhecemos e amamos.

O impacto visual e a estranheza de tais imagens constituem, creio eu, talvez o aspecto mais violento da tão falada violência do cineasta. Tomando a liberdade e ousadia de emendar Kael, Peckinpah fabricou um verdadeiro coquetel molotov ao encher com gasolina a cânfora do western. Foi assim também que o diretor a “explodiu”. E ele é bem cuidadoso em colocar com irônica ênfase as figuras de automóveis em planos bastante significativos de seus filmes.

Além do mais, o automóvel não representa tão somente uma violência “simbólica”. Vejamos os exemplos. Em Pistoleiros do Entardecer (“Ride The High Country”, 1962), temos dois planos escarninhos: 1. Alguém sai de um saloon e, ao botar o pé na rua, é quase atropelado por um carro, se não fosse por outra pessoa que o puxasse pelo braço ao grito de “cuidado” (e o veículo invade o quadro pela lateral quase em primeiro plano, atropelando também os olhos do espectador);

2. Numa breve panorâmica, a câmera acompanha a corrida entre um cavalo e um dromedário (sendo este último conduzido por um dos heróis do filme) pelas ruas da cidade; no final de seu movimento, a câmera fixa um quadro no qual vemos, em primeiro plano e no ponto de ouro, um automóvel estacionado – enquanto, ao fundo, escapam os dois animais. A composição deste último plano é absolutamente intencional em seus menores detalhes e muito inteligente.

Peckinpah demonstra, de maneira exemplar, que cinema é mais do que “registro” do real; cinema é discurso construído. E o mais interessante é que as duas imagens estão no começo do filme, logo nos primeiríssimos minutos. O diretor não perde tempo em mostrar a que veio. No Meu Ódio Será A Tua Herança (“The Wild Bunch”, 1969), os (anti-) heróis encontram o corrupto general mexicano – para quem acabaram de fazer um serviço sujo – a se refestelar na própria ignomínia:

junto dos seus comparsas, o comandante desfila com irrepreensível desfaçatez a bordo de um luxuoso conversível que fica simplesmente dando voltas em círculos ao redor da pequena e miserável aldeia ocupada, arrastando por uma corda amarrada aos pulsos um dos membros da quadrilha dos “gringos” (os protagonistas), que teria trabalhado “desonestamente” (resumindo ao máximo a história). A cena é de uma violência impressionante, mesmo para os padrões de hoje: todos na aldeia, inclusive crianças, envolvem-se na “malhação do judas”.

Esse tipo de “castigo” nos faz lembrar de nossos cangaceiros (“dar um galope” em alguém, como diz o bandidão de O Cangaceiro – 1953, de Lima Barreto). Não obstante, em Peckinpah a violência do “arrastamento” será ainda maior, mais prolongada, simbólica (carregada de ostentação material) e sarcástica, por ser usado um automóvel no lugar de um cavalo. Por fim, em A Morte Não Manda Recado (“The Ballad of Cable Hogue”, 1970), os carros não vão mais martelar pregos no caixão dos bandoleiros.

Neste filme bastante sensível, o objeto-fetiche do capitalismo industrial do século XX apontará suas rodas para os velhos pioneiros, que desbravaram e ocuparam o Oeste a pé ou sobre os cascos de cavalos. O protagonista, Cable Hoghe (Jason Robards) é o herói do sonho americano no sentido mais tradicional: após ser assaltado, espancado e deixado para morrer no meio da aridez do meio-oeste, ele encontra um poço de água, contrói ao redor dele sua casa e passa a viver bem confortavelmente, junto com a mulher que conhecerá, oferecendo água e comida para os viajantes das diligências que passam por ali.

A chegada da ferrovia lhe trará o grande medo de falir (a estrada de ferro não passará próximo de sua propriedade), mas as esperanças serão renovadas quando os primeiros automóveis começam a tomar o lugar das diligências na velha estrada. Mas então... (spoiler!) Cable Hogue morrerá estupidamente atropelado pelo primeiro carro que vê na vida (ele tentará impedir, com o próprio corpo, que o veículo sem freios deslize por uma leve ladeira). A sua ignorância e simpática ingenuidade em relação às coisas “modernas” se mede pelo comentário irônico que faz logo após o acidente: “It kicks harder than a mule!” (O coice dele é mais forte que o de uma mula).

Cable Hogue é um homem simples, de um tipo em extinção, mas que ainda tenta dar uns fôlegos de sobrevida nos filmes de Peckinpah. De qualquer maneira, é neste filme que a presença ameaçadora do automóvel se faz mais elaborada e contundente, enquanto parte fundamental do desenrolar dos acontecimentos e do destino dos personagens. Qual a conclusão a que chegaremos a partir disso? Sam Peckinpah é simplesmente contra o “progresso”, como um novo Velho do Restelo?

Não creio que seja nada tão ideologizado. Peckinpah tem, com certeza, uma alma de poeta (o lado poético da violência nos filmes dele é algo que a sua fortuna crítica nos EUA já mostrou). E o lirismo do diretor é do tipo romântico, ou seja, ele lamenta com nostalgia o crepúsculo de velhos mundos, cuja simplicidade maior no sentir, no pensar e no viver está sendo maquinalmente substituída pela frieza de objetos de um engenho e indústria indiferentes às coisas mais profundas e intransigentes da alma.

2.

Existe algo da velha areté dos guerreiros homéricos nos heróis de Peckinpah: a virilidade e outras virtudes varonis que tornam inconcebível a ideia de um homem abandonar o campo de batalha, mesmo em desvantagem. Acredito que seja nesta chave que se deve pensar a tão falada violência nos filmes do diretor. O ato violento aqui não é aquele do profissionalismo de gângster, remetendo tampouco ao sadismo do psicopata. A violência em Peckinpah não é uma anomia social, mas um valor ético e moral, ligado – logicamente – a estruturas sócio-culturais mais “primitivas”.

A agressividade dos personagens exerce-se em função de uma honra e lealdade mais calcadas na proximidade das relações de indivíduo a indivíduo. Os heróis pekinpanianos deixam-se possuir pela violência, mergulhando nela como em um transe beatífico. Nisto, a autopreservação pouco importa; não há outra escolha para o guerreiro, ele deve defender o que é seu, ou morrer tentando. Em outros casos, trata-se de vingança. Vejamos. Em Meu Ódio Será A Tua Herança, a caminhada altiva do “wild bunch” rumo à autoimolação é um dos momentos mais poéticos de todo o cinema.

Eles não querem saber se vão vencer as tropas do “general” (já sabem que jamais vencerão); mas aqueles velhos e decadentes pistoleiros simplesmente não podem abraçar a aposentadoria tendo abandonado um dos seus nas garras do inimigo. Desse modo, tendo todas as razões práticas para irem embora (principalmente o dinheiro em mãos), eles decidem voltar atrás e tirar satisfações com o “general”, pois não podem passar por cima da razão ética. Algo bem parecido ocorre em Tragam-me A Cabeça de Alfredo Garcia (“Bring Me The Head of Alfredo Garcia”, 1974):

depois de ter cumprido (com imensas dificuldades) a missão, ter recebido o pagamento conforme combinado e estar pronto para ir embora, o herói decide subitamente se voltar contra o “patrão”, indignado com a quantidade de mortes (inclusive a da própria namorada) necessárias para que trouxesse a tal da cabeça. O último ato do herói é “kamikaze”: ele morre, mas leva junto o patrão e boa parte de seus asseclas. Talvez não seja nem o caso de entender esses “gran finales” como apenas um ato abnegado de auto-sacrifício na impossibilidade de se conquistar uma vitória mais prática e concreta.

Acredito que as escolhas de tais heróis constituem elas mesmas o ponto mais alto (ou verdadeiramente único) de seus atos guerreiros: é um outro tipo de vitória, baseada em outros valores. Mais exatamente, eles buscam não uma vitória de fatos, mas uma vitória de princípios. Os guerreiros gregos conquistavam a imortalidade através da memória que deixavam de seus feitos. Assim, morrer realizando uma façanha valorosa (ainda que de efeito prático frustrante) é mais sedutor do que viver na covardia e na obscuridade. No fundo, são códigos cavaleirescos que perpassam diversas culturas (mas todas elas distantes dos padrões da civilização urbano-industrial).

Os guerreiros de Peckinpah realizam seus grandes atos de violência como um rito, sacerdotes que são da pulsão de morte (a qual, no mesmo sentido psicanalítico, relaciona-se dialeticamente com a pulsão de vida): matar para dar vida; morrer para viver. O tão comentado aspecto gráfico e a câmera lenta nas cenas mais violentas do cineasta podem ser analisados como expressão dessa liturgia homérica. O paradoxo de tais sínteses remete, muito coincidentemente, ao clássico conto do nosso Guimarães Rosa: “A Hora e Vez de Augusto Matraga” (publicado originalmente no livro “Sagarana”, em 1946).

O ato final de Matraga tem o mesmo aspecto, qualidade e significado que os que vemos nos dois filmes acima citados (a fantasia é imaginar Peckinpah filmando uma adaptação de Rosa). O ocaso do Velho Oeste e de seus guerreiros não se consumará sem uma despedida à altura. Algo assim já se via, dentre os filmes do diretor, em Pistoleiros do Entardecer (“Ride The High Country”, 1962), ainda que de maneira menos elaborada que nas obras posteriores.

Mas o melhor e mais acabado exemplo da areté em Sam Peckinpah encontra-se em Sob O Domínio do Medo (“Straw Dogs”, 1971). Seria uma imprecisão dizer que o pacato matemático vivido pela figura pouco intimidante de Dustin Hoffman teria “perdido a cabeça” frente ao cerco de sua casa e partido para cima do bando de escoceses bêbados e sedentos de sangue. O fato é que: depois de se fazer diversas vezes submisso ao bullying dos seus vizinhos, o personagem de Hoffman, vendo que a agressividade primitiva daqueles atingiu o paroxismo, reconhece que instrumentos racionais e discursivos não lograrão dissuadi-los.

Sendo assim, ele decide (o filme coloca como um ato de decisão mesmo, ainda que muito indignada, e não como mera explosão nervosa) abandonar a justiça civilizada e partir para a mais primitiva: um homem jamais poderá permitir (de qualquer maneira) que sua casa seja invadida (não importa com quais razões). De pouco adiantam os apelos da mulher, que tenta colocar panos quentes na briga e forçar o marido a uma atitude mais “lógica”. Hoffman mergulhará com gosto na violência, entrando num transe quase orgásmico, lembrando, novamente, o Augusto Matraga de Rosa

(ambos são personagens que resistem ao máximo às pulsões violentas; mas, quando estas lhes são requeridas em favor da moral e da ética mais primitivas, eis que o guerreiro adormecido desperta). Ébrio de agressividade, Hoffman chega a ecoar o gesto do homem que estuprara sua mulher (e que é um dos que empreendem o cerco à casa, apesar de o protagonista desconhecer o atentado), tomando-a pelo pescoço e prometendo quebrá-lo se ela não colaborar com os seus planos de defesa.

No final do filme, após ter massacrado todos os invasores, Hoffman deixa a esposa em casa e leva de carro, até a cidade, o homem que escondia em sua residência e que o bando ensandecido queria capturar a todo custo (suposto estuprador). A última imagem, mostrando de frente, dentro do veículo, os rostos do homem e de Hoffman, este com um leve mas firme e soberbo sorriso de contentamento e de “missão cumprida”, ecoa muito ironicamente o final do popular A Primeira Noite de Um Homem (“The Graduate”, 1967, Mike Nichols), com o mesmo Hoffman contente com o ato corajoso e viril de “roubar” a noiva do altar, ambos indo embora num ônibus coletivo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário