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quinta-feira, março 06, 2014

O Menino e O Mundo


Aos olhos de uma criança

O Menino e O Mundo (Brasil, 2013, dir.: Alê Abreu) é um poema em prosa audiovisual. E aqui voltamos para a questão pouco falada e menos compreendida do cinema de poesia. Andrei Tarkovski, autor de O Espelho (1975, filme que também trata, a seu modo, de um menino e um mundo), confessa o que mais lhe agrada no cinema: as articulações poéticas, a lógica da poesia(1). Mas o que seria essa "lógica" tão peculiar ao discurso chamado de poético? É a lógica da analogia. AnaLÓGICA(2).

A imaginação poética é toda feita de associações, de metáforas e alegorias: de Homero a Saramago, de Méliès a "Joe" Weerasethakul(3). Pensamento mitopoético. Eis a senha que nos dá acesso à dupla realidade, já desvelada no próprio título, de O Menino e O Mundo: infância e maturidade; inocência e experiência; encanto e desencanto; o mágico (sonho/inconsciente) e o real (vigília/consciência); o individual e o coletivo; o micro e o macro; o eu e o outro (mesmo quando esse outro é o próprio eu); o ser e o (estar no) mundo; a natureza e a cultura; a carência e a opulência; o pátrio e o estrangeiro; a liberdade e a opressão; a vida e a morte.

O filme - todo som, todo música - vai articulando, vai cadenciando, vai ritmando os elementos de todos esses pares em uma narrativa poética, ou seja: inventando (melhor seria dizer: reconhecendo) correspondências simbólico-afetivas, em um procedimento que passa longe do lógico-dedutivo e do linear. Não é uma demonstração, a resolução de um teorema, defesa de uma tese. Trata-se, em verdade muito singela, de uma expressão. O desnudar de uma alma, seus movimentos. Avanços e retomadas. Transformação e permanência. Tradição e ruptura. Paradoxos. Sínteses. O fim é o começo. O universo cíclico no pensamento dos povos da infância da humanidade. Pensamento, afinal, de todas as infâncias, de todos os tempos.

O particular, o universal; o temporal, o atemporal. A história de O Menino e O Mundo é uma e são muitas. "Somos muitos Severinos", dizia João Cabral, poeta de poema. História de vida e morte, de morte e vida severinas, "aos olhos de uma criança", como diz o rapper Emicida na trilha sonora. Uma certa criança que havia, como houve certa vez "um certo Miguilim", no dizer de outro João, o Rosa, poeta de prosa. O horror ainda há, a ave negra que destroça a ave multicolorida (cujos pigmentos fecundarão a terra, não obstante). Mas ainda há, também, meninos. Ainda há meninas. Eles plantarão sementes. Ainda bem.

Notas:
1. "Voltemos, porém, ao nosso tema: o que me agrada extraordinariamente no cinema são as articulações poéticas, a lógica da poesia. Parecem-me perfeitamente adequadas ao potencial do cinema enquanto a mais verdadeira e poética das formas de arte. Estou por certo muito mais à vontade com elas do que com a dramaturgia tradicional, que une imagens através de um desenvolvimento linear e rigidamente lógico do enredo." TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.16. 
2. "A ideia da correspondência universal é provavelmente tão antiga quanto a sociedade humana. Isso é compreensível: a analogia torna o mundo habitável. À contingência natural e ao acidente ela contrapõe a regularidade; à diferença e à exceção, a semelhança. O mundo não é mais um teatro regido pelo acaso e pelo capricho, pelas forças cegas do imprevisível: o ritmo e suas repetições e conjunções o governam. É um teatro feito de acordes e reuniões em que todas as exceções, mesmo a de ser homem, encontram seu duplo e a sua correspondência." PAZ, Octavio. Os filhos do barro. São Paulo, Cosac Naify, 2013, p.74-75. 
3. Diretor de Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010).

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