quarta-feira, julho 02, 2014

Herdeiros da Morte


Ao sugo

Dentre os melhores exemplos da moderníssima antropofagia cultural, fora dos territórios tupiniquins, está a maneira como cineastas italianos se apropriaram de gêneros tradicionais do cinema de Hollywood. A história da sétima arte enriqueceu muito com as obras-primas do western spaghetti de Sergio Leone (como se dizia antigamente: “bang-bang à italiana”) e com o terror/suspense/policial giallo de Dario Argento e Mario Bava. Entre os anos 60 e 70, o sucesso artístico e comercial desses estilos foi tão grande, que chegaram mesmo a retroalimentar a produção californiana: sem eles, dificilmente teríamos um Sam Peckinpah ou um Wes Craven.

Mas tudo isso já é bem sabido. Agora, as criaturas esquisitas que habitam as fossas abissais da produção cinematográfica mundial e ainda esperam (ou não) por seu Jacques Costeau são os filmes do “sci-fi spaghetti” (o termo circula na web). Entre a década de 70 e 80, muitos diretores italianos tentaram se impulsionar no forte deslocamento de ar provocado pelas maiores realizações da ficção científica hollywoodiana do período, de Star Wars (1977) e Alien (1979) a Fuga de Nova York (“Escape From New York”, 1981), Mad Max (a trilogia: 1979, 1981, 1985) e Robocop (1987).

Quem foi criança ou adolescente na época há de se lembrar com carinho, ainda que vagamente, de pérolas como Os Caçadores de Atlântida (“I Predatori di Atlantide”, 1983, de Ruggero Deodato) e Keruak, O Exterminador de Aço (“Vendetta dal Futuro”, 1986, de Sergio Martino). Tais filmes são clássicos das velhas sessões da tarde ou das 22 hs., no SBT (na época, TVS) ou na extinta TV Manchete. E são, sobretudo, paradigmas do baixo orçamento, filmes B na acepção mais orgulhosa do termo. No geral, apresentavam-se como versões genéricas dos grandes sucessos hollywoodianos supra-citados, com efeitos especiais deliciosamente sofríveis e roteiros que são um verdadeiro suplício.

Imperam a incoerência, a inverossimilhança paroxística, a confusão narrativa, nos diálogos (pronunciados em inglês por atores norte-americanos sempre desconhecidos) e na montagem. Além do exagero: na trilha sonora, na atmosfera, na “seriedade” das histórias e dos temas, que, no final das contas, só leva o espectador a rir. Em uma palavra, o estilo camp, famoso também nos EUA, com os “midnight movies”, a exploitation... Enfim, são filmes que, de tão ruins, ficam bons, ainda mais quando se tornam documento de uma época (na história, no cinema), ou entram para a memória afetiva dos espectadores que vão se distanciando cada vez mais da infância. A cobra morde a própria cauda.

Talvez o mais peculiar de todos os sci-fi spaghettis seja Herdeiros da Morte (“Stridulum” – em inglês: “The Visitor” –, 1979), dirigido por Giulio Paradisi, que assina como Michael J. Paradise – procedimento comum entre os realizadores do gênero. Por um lado, este filme preserva todas as características básicas da ficção científica “à italiana” acima enumeradas; por outro, tenta algumas ousadias que deixam o público (e o crítico) com a pulga atrás da orelha. Tentar entender, de maneira unívoca, a premissa e a identidade estilística deste longa-metragem já é o começo de uma muito divertida aventura. Vamos lá.

Imagine um grande “mash up” entre os seguintes clássicos: A Profecia (“The Omen”, 1976, com elementos de O Exorcista – “The Exorcist”, 1973), O Bebê de Rosemary (“Rosemary’s Baby”, 1968), Os Pássaros (“The Birds”, 1963) e Contatos Imediatos do Terceiro Grau (“Close Encounters of the Third Kind”, 1977); tudo isso temperado com filmes de Alejandro Jodorwsky: El Topo (1970) e The Holy Mountain (1973). Já dá, quem sabe, para começar a fazer uma certa ideia. Mas, até aí, os sci-fi spaghettis costumam ser essa salada mesmo de referências, influências, plágios, etc.

O primeiro grande diferencial de Herdeiros da Morte está em seu elenco, que ostenta nomes pesados como os de Glenn Ford, Lance Henriksen, John Huston (sim, o grande diretor), Sam Peckinpah (sim, o grande diretor) e Shelley Winters, além de um não-creditado Franco Nero interpretando uma espécie de Jesus Cristo cósmico... O que é que todos eles estão fazendo aqui é daquelas perguntas indiscretas que talvez seja melhor deixar para lá. Curiosidade: o diretor, Giulio Paradisi, tem no currículo nada menos que o 8 e meio de Federico Fellini (como diretor-assistente).

E quanto ao enredo? Bem, depois de ver o filme duas vezes e pesquisar bastante na web, eis o que é possível deduzir (a narrativa é mesmo bastante confusa, dizem que por causa dos cortes na montagem impostos para o lançamento nos EUA). Há muito tempo atrás (em uma galáxia muito, muito distante?), havia um ser que era a própria encarnação da maldade e do poder. Ele se chamava Sateen. Após uma terrível guerra interestelar, Sateen foi finalmente capturado pelo comandante Yemen. Porém, durante o transporte para a prisão, ele fugiu e veio parar no velho planeta Terra, onde (por algum motivo) nunca mais foi incomodado.

Antes de enfim morrer, Sateen tomou a precaução de fertilizar o maior número de mulheres possível, para espalhar e perpetuar seus genes mutantes e super-poderosos (além de sua infinita maldade) por incontáveis gerações futuras. Desde então, os descendentes do heroico comandante Yemen (que parecem formar uma seita à lá Charles Manson) se dedicam muito monasticamente a vigiar, em segredo, a espécie humana, prontos para detectar e eliminar os frutos de Sateen (que costumam ter poderes telecinéticos). O alvo, na era contemporânea, é uma menina de oito anos, muito malcriada, chamada Katy.

John Huston psicodélico.
O trabalho de espioná-la e fazer o que for necessário, quando chegar o momento, fica para Jerzy Colsowicz (John Huston, que assume o papel com firmeza e carisma), uma espécie de Gandalf, O Cinzento cósmico, que comanda um grupo de acólitos carecas treinados pelo “Jesus Cristo” cósmico (Franco Nero – o personagem não tem nome). Enquanto isso, na sociedade humana, um grupo secreto de distintos cavalheiros tem como missão fazer de tudo para proteger os descendentes de Sateen e garantir que cheguem ao poder (supremo). Mas tais cavalheiros não admitem Katy, preferem um anti-messias masculino.

Assim, o plano é fazer com que a mãe de Katy se case com Raymond Armstead (Lance Henriksen), um noviço na seita, e tenha com ele o tão esperado rebento macho. O problema é que ela não quer assumir compromisso com ele; mesmo assim, só pode haver a fecundação após casamento (!). Shelley Winters vive uma babá de Katy (na verdade, ela é uma espiã disfarçada, enviada pelo Jesus Cristo extra-terrestre), Glenn Ford interpreta um detetive que vai investigar as maldades da jovem, e Sam Peckinpah um médico amigo da mãe da menina (o qual a ajudará num momento difícil da trama).

Jesus "Django" Cristo e seus padawans skinheads.
Como se pode ver, trata-se de uma premissa e tanto, que faz o espectador surfar num comprimento de onda que vai de Roman Polansky a Steven Spielberg. Pena que essa premissa seja conduzida e desenvolvida, ao longo do filme, por uma narrativa que vai se acertando aos tropeços: muito do que está lá não precisaria estar, ao passo que coisas fundamentais ficam de fora, ou são muito pouco trabalhadas: os buracos são imensos, é de provocar risos. Realmente, seria interessante saber se existe mais material filmado que pudesse ajudar na digestão dessa história.

De qualquer maneira, os resultados estilísticos são muito mais interessantes. O filme abre com uma cena absolutamente psicodélica, entre o personagem de Huston e a menina Katy, envolvidos num tipo de tour de force de proporções cósmicas, em uma paisagem que pode tanto ser um deserto alienígena, quanto um plano mental, astral, transcendental: verdadeiro cenário de um Salvador Dalí sob efeito de ácido lisérgico... Parte desse surrealismo voltará na batalha final, com o acréscimo de uma revoada de pássaros assassinos à lá Hitchcock (descontando-se, naturalmente, os efeitos especiais toscos, que revelam a identidade B deste filme).

Lance Henriksen em "os Pássaros" à italiana.
De resto, tirando-se os efeitos apetitosos do estilo camp, Herdeiros da Morte apresenta duas outras cenas dignas de memória e que revelam uma maturidade cinematográfica por parte do seu diretor que não se vê todo dia. Na primeira, temos uma fina ironia transmitida através da montagem em uma bela rima visual: Katy está treinando exercícios de ginástica olímpica nas barras, completamente despreocupada, depois de ter baleado (acidentalmente?) a própria mãe pelas costas; após um close nas mãos da menina segurando a barra, corta-se para as mãos da progenitora, no hospital e paraplégica, segurando uma barra suspensa para se levantar da cama.

Mas a segunda cena é ainda mais interessante, pois aqui o achado estilístico estará a serviço de um comentário político-social surpreendentemente subversivo, digno dos melhores filmes de Samuel Fuller. A mãe de Katy vai até um hospital, não público, porque não existe isso nos EUA, mas um hospital que, visivelmente, atende prioritariamente a população das classes mais baixas. Ela é rica, mas está à procura de um médico amigo seu, para pedir uma ajuda que será essencial para a conclusão da trama. Esse médico é Sam Peckinpah, vestido de jaleco branco e botas de cowboy (!).

Ele se surpreende de vê-la ali (faz tempo que ambos não se encontram) e lhe pergunta, com aquela ironia amiga, o que ela pode desejar de um pobre médico tão ocupado atendendo em um hospital tão mal equipado, ele que mal poderia passar pelas portas dos hospitais sofisticados a que ela tem acesso, justamente ela que normalmente gosta de circular entre gente tão “bonita”... A sabedoria do cineasta é: enquanto Peckinpah diz essas coisas (sua voz em off), há um corte na edição e vemos a câmera se aproximar em travelling, até chegar num close, de um homem negro balançando nervosamente nos braços um bebê desacordado, nos corredores – já havíamos visto esse mesmo homem logo antes, assim que a mãe de Katy entra no hospital.  

Um grande diretor faria deste um grande filme, pois multiplicaria e espalharia momentos como o acima descrito por toda a sua extensão, além de integrá-los em uma narrativa orgânica que transformaria o próprio plot principal em uma alegoria inquietante, forçosamente relativizando a luta do “bem” contra o “mal”. É o que vemos na saga Star Wars (tomando os seis episódios em conjunto, até agora), em O Bebê de Rosemary, em Alien, em Robocop, em Fuga de Nova York... Mas, tanto quanto se pode dizer a respeito de sci-fi spaghettis, Herdeiros da Morte é um filme bastante sofisticado até. Vale a pena dar uma espiada.

segunda-feira, maio 19, 2014

Amor Pleno


Fascinação

A assinatura estética de Malick nos faz lembrar o velho debate entre o cinema “puro” e o cinema narrativo, em uma época na qual a sétima arte ainda lutava para se autoafirmar. Procurando libertar-se das perigosas influências literárias e teatrais, muitos vanguardistas defendiam um cinema feito apenas de fotogenia, de encanto visual, eliminando-se completamente os elementos de narração – ou, pelo menos, reduzindo-os ao mínimo. Abel Gance dizia que o cinema é a “música da luz”. Desse modo, a escolha e disposição das imagens na tela obedeceria não à pertinência lógica de uma estrutura narrativa (ou dissertativa, tratando-se do cinema de ideias soviético), mas à sua força sinfônica: o tom, o ritmo, a harmonia, que nascem de um caráter intrínseco às próprias imagens, de qualidade sensorial acima de tudo. A montagem cinematográfica deve ser encarada como uma composição musical.

Eis que nasce o cinema de poesia, o cinema feito a partir de analogias poéticas (pensando mais na força estético-sensorial das imagens, do que no seu conteúdo simbólico-metafórico), muito antes de Pasolini e Tarkovski. O filme enquanto “poema sinfônico de imagens” (Germaine Dulac, cineasta e teórica que também cunhou a expressão “sinfonia visual”). Nem todos os cineastas levaram a ferro e a fogo essas ideias; reservou-se espaço para uma história ou mensagem a ser transmitida, mas estas tinham que estar subordinadas ao “específico cinematográfico”: mais uma vez, o fotogênico (veja-se o épico Napoleão, realizado por Abel Gance em 1927). Um gênero particular desse cinema “musical” é o das “sinfonias urbanas”: seus grandes mestres são Dziga Vertov (O Homem com A Câmera, 1927) e Walter Ruttmann (Berlim, Sinfonia de Uma Metrópole, 1929).

Terrence Malick é um tipo raro de cineasta, pois suas fontes de inspiração não são imediatas, contrariando 99,9% dos diretores que sofrem de muito “hype” e repertório míope. Quer entender um filme como A Árvore da Vida (2011)? Vá ver filmes dos anos 1920 para trás. Poucos cinéfilos (ou críticos) terão a paciência... A conexão mais próxima com o cinema de Malick talvez seja o de Stanley Kubrick: ambos procuram resgatar um encanto primordial, a fascinação pelas imagens em movimento, um cinema que pensa – e se pensa – como os sonhos, sem restrições, sem lógica: o “cinema do diabo” (Jean Epstein). Amor Pleno (“To The Wonder”, 2012) é o último rebento nessa empreitada (sem contar a produção atualíssima do cineasta-compositor-poeta tailandês Apichatpong Weerasethakul). Sua missão é difícil: ser o filme seguinte à A Árvore da Vida, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes e é, até o momento, o projeto mais ambicioso de Malick, na estética e nos temas.

Amor Pleno, nessas circunstâncias, representa uma baixada de tom. Talvez passe à história como um filme menor na obra do diretor, sem que isso signifique perda de inspiração ou qualidade. A metafísica, as analogias entre o individual e o cósmico apenas se fazem aqui de um modo mais intimista, em uma escala menor do que no longa anterior. Se A Árvore da Vida é composição para orquestra sinfônica, Amor Pleno é para quarteto de cordas. O “wonder” do título representa o caráter paradoxal e transcendente da experiência amorosa: como seres amados, nós reconhecemos nossa plena identidade no olhar carinhoso de quem nos ama; como seres que amam, nós nos dissolvemos completamente na criatura amada para a qual nos doamos plenamente. Entre concentração (identidade) e dissolução (doação), existe um lampejo de eternidade – também presente no orgasmo – que faz com que o amor seja a (única) vitória que possuímos contra o tempo, contra a morte. Mas não passará de um lampejo; as vicissitudes do ser-estar no mundo e no tempo haverão de prevalecer.

quarta-feira, abril 30, 2014

A Regra do Jogo

“Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo.” Walter Benjamin, Sobre o conceito da História, in Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política, vol. 1.

A gente já sabe que a história é escrita pelos vencedores, que fazem valer o seu próprio ponto de vista e costumam produzir uma linha interpretativa de acontecimentos que segue pauta única: o “progresso”. Assim sendo, a história geral da humanidade seria a história de uma caminhada essencialmente homogênea, contínua. Uma caminhada vazia. O outro lado dessa moeda é o tempo histórico observado em seus acidentes, paradas, retornos (retrocessos), saltos; ou seja, em sua inerente heterogeneidade, descontinuidade. Uma história não-triunfalista, fragmentada, plena de tensões e contradições. Assumindo a visão dos “derrotados”, legitimando-a, preservando-a, divulgando-a, o historiador materialista deverá então escovar a história a contrapelo, desfazendo a sua superfície predominantemente homogênea.

Circula na internet um video curto (menos de 4 minutos), com imagens amadoras da cidade de São Paulo em 1944 e 1945. A filmagem é bastante caseira (em 8mm, com boa qualidade e em cores) e revela cenas familiares: um pai segurando seu bebê, uma criança brincando, uma família acenando, tendo como pano de fundo as ruas da cidade. Tudo com muita singeleza, lembrando bastante os primeiros filmes dos irmãos Lumière (“Le Déjeuner de Bébé”). Não encontrei referências aos autores ou pessoas filmadas, apenas à empresa que fez a telecinagem a partir do original em 8mm. O caráter prosaico e íntimo das cenas espontâneas, junto com o aspecto quase bucólico de uma São Paulo que ainda podia se vestir do epíteto de “terra da garoa”, fazem ambos o encanto dessa pequena relíquia cinematográfica, anônima.

Contudo, há algo nela que não dá para esquecer, que é impossível de não chamar a atenção de um observador atento. Quando o filme bate a marca de 1 minuto, vemos um pai (ou tio, avô, enfim) caminhando de mãos dadas com uma criança pequena (um menino), pela calçada, em direção à câmera. Poucos instantes depois, ele o tomará nos braços, beijando-o e olhando para ele com um afeto comovente. Enquanto a cena se desenrola, vemos surgir em plano de fundo, e com uma profundidade de campo extraordinariamente nítida, uma mulher – negra – que vem caminhando também rumo à câmera, na mesma direção do homem e do menino. Ela vem calmamente pelo lado de dentro da calçada, quase rente ao muro das casas. De repente (à meia distância do “assunto” da cena), ela faz uma curva de 90 graus à direita e parece que vai atravessar a rua, quando sai do quadro.

Eu disse que não consegui descobrir a identidade pessoal  dos cidadãos paulistanos que aparecem na filmagem, mas a sua identidade social pode ser facilmente deduzida. A família mostrada é branca e, é bem provável, de uma condição social minimamente confortável, uma vez que podem dispor de uma câmera para eternizar momentos de intimidade (também deviam ter acesso, logicamente, ao material de projeção), em meados dos anos 40. Lembremos também que a cena em questão se passa na rua José Maria Lisboa, no bairro nobre dos Jardins. A esses personagens, supostamente típicos de uma classe média paulistana da época, contrapõe-se a mulher negra que passa, carregando um embrulho nas mãos. Quanto a ela, sobram especulações.

Quem é essa mulher, socialmente falando? Seria também moradora dos Jardins, da rua José Maria Lisboa? Teria ido apenas até a padaria mais próxima, para comprar pão para si e para os filhos? O fato é: sabemos que a “gente diferenciada” até hoje não é residente típica de bairros nobres paulistanos, sequer bem-vinda neles (a não ser, é claro, para trabalhar sem maiores direitos legais nas casas dos “patrões”): reveja-se a polêmica da construção do metrô em Higienópolis. Se atualmente, 126 anos depois da abolição da escravatura, a questão social e racial no Brasil ainda sofre bastante para ser debatida e resolvida, como é que deviam ser as coisas em 1944 – apenas 56 anos passados da Lei Áurea? E principalmente: por que essa mulher desvia seu caminho, de maneira tão brusca? Não é estranho isso?         

Experiência de pedestre: quem vem andando, de maneira calma, firme e em linha bastante reta (sem aquele leve ziguezaguear de quem passeia à esmo, ainda mais do lado de dentro da calçada), sabe muito bem para onde está indo e não vai, normalmente, desviar-se em uma curva de 90 graus, de repente. Pelo menos, não sem algum gesto de cabeça, mãos ou tronco indicando que a pessoa esqueceu algo muito importante em outro lugar, fora do seu caminho; ou que viu algo chamativo do outro lado da rua e decidiu rumar para lá. Na filmagem que vemos, a mulher vem de cabeça e (provavelmente) olhar firmes na direção da câmera – não dá para ver seu rosto em detalhe. Experiência de pedestre: quem anda e olha de modo tão reto assim, e muda de direção de repente, é porque viu algum obstáculo à frente (real ou presumido – o medo, por exemplo, de algum pedestre “suspeito” caminhando na direção contrária).

O que será que essa mulher viu? Será que o cinegrafista – ou alguém da família, ao lado dele – teria feito para ela aquele gesto sutil de “chega para lá, a genta tá filmando um negocinho aqui, coisa rápida”? Ou será que ela percebeu a filmagem e, por gentileza (ou constrangimento), decidiu passar pelo outro lado da rua, para “não atrapalhar”? E principalmente: qual o significado simbólico disso, tendo em vista os preconceitos e desigualdades sociais e raciais, no Brasil e em São Paulo, ao longo da sua história? Tendo em vista também nossa “cultura”, ainda muito viva em 2014, da divisão social dos espaços, tanto os públicos quanto os privados: os apartamentos de luxo com “quartinho de empregada”, os elevadores “de serviço”, os “rolezinhos” em shopping centers, etc, etc, etc. Imagine em 1944!

Essas perguntas poderão parecer inúteis para muita gente, mas o fato é que este pedaço de fita de cinema de 8 milímetros ilustra um dos grandes poderes da imagem audiovisual, ainda que por acaso (entre os grandes cineastas, a coisa é bem proposital): as relações – principalmente de contraponto – entre o primeiro plano e o plano de fundo, usando uma lente que possibilite a profundidade de campo. Temos aqui duas narrativas, dois universos temáticos, dois conjuntos (tipos) de personagens, que vão se desenrolando e construindo suas relações paralelamente, em um mesmo plano. São duas histórias, completamente independentes, e uma terceira: aquela que nasce do contato (para não dizer o choque) entre ambas, quando a mulher percebe a câmera e procura sair do seu próprio caminho, o caminho da lente.

Para aqueles que gostam de escovar a história e o cinema à contrapelo, no dizer de Walter Benjamin, a história dessa mulher negra será bem mais interessante, enquanto narrativa cinematográfica. É a história dela que deverá ser trazida e focalizada, através da reflexão crítica, para o primeiro plano, ao contrário do que seria a história “principal” nesse filme (o homem e o menino). Em cinema, muitas coisas importantíssimas – para não dizer as mais importantes – residem nos pequenos detalhes, nas laterais ou no fundo do quadro, fora do âmbito do assunto / drama principal. É à contrapelo que se descobrem e se comunicam coisas que nos fazem realmente entender o conjunto de uma realidade cujo recorte, aparentemente ingênuo, temos na frente dos olhos.

No fundo de uma cena tão idílica e clara da vida da classe média paulistana (cena essa de valor humano naturalmente incontestável), percebemos quase que literalmente uma mancha. Uma coisa que, em princípio, parecer ser nada (e pode ser nada mesmo); mas que, por outro lado, pode revelar algo terrível: uma tensão incômoda, um elemento de desagregação no tecido de uma sociedade que, em primeiro plano, parece tão homogênea, harmônica, tranquila, feliz... No fundo da imagem, pulsa uma outra cena, que logo será praticamente varrida para fora do quadro, mas cujo valor humano também precisa ser lembrado, enaltecido, eternizado com o mesmo poder dos instrumentos da sétima arte, sob pena de... Bem, a História já se cansou de nos tentar ensinar.

O link para o vídeo é:


P.S.: A sutileza de Woody Allen nos dá outro exemplo, este perfeitamente irônico, do poder da imagem cinematográfica em condensar e equilibrar, dentro de um único plano, duas narrativas, dois universos opostos – e de pesos diferentes, tendo em vista as estruturas sociais. Em Blue Jasmine (seu filme mais recente), vemos a irmã e o cunhado da protagonista chegarem para fazer uma indesejável visita; ambos são pobres, enquanto ela é uma socialite nata, casada com um milionário. Com a câmera fixa em um plano incomodamente longo, vemos todos se cumprimentarem e engatarem aquela conversa inicial sobre amenidades, parados na entrada do apartamento, enquanto a pobre da empregada segura a porta aberta, sem que ninguém entre ou saia completamente, absolutamente ignorada por todos, objeto de cena...

sábado, abril 26, 2014

Mekong Hotel


Cinepoesia

Há diretores que aprendem o seu ofício sentados nas carteiras de alguma escola de cinema, ou, para sermos mais precisos, audiovisual. Há diretores que nascem já no “mercado de trabalho”, particularmente o publicitário. Já o arquiteto Apichatpong Weerasethakul (também graduado em filmmaking, por sinal) certamente aprendeu a fazer filmes assistindo a Wim Wenders, Andrei Tarkovski, Yasujiro Ozu, Carl Th. Dreyer; é o que parece. Cada vez que paramos em frente a um de seus longa-metragens, ficamos a admirar, embasbacados, a nua rigidez de sua construção: blocos de tempo-concreto esculpidos com sensibilidade, paciência e humilde elegância (tomando emprestado o princípio do “esculpir o tempo”, de Tarkovski).

A única materialidade que interessa a “Joe” Weerasethakul é materialidade viva, pulsante, cambiante, do próprio mundo, da existência, dos instrumentos que a recortam: a câmera “rodando”, os cortes-secos na montagem. Materialidade pura, simples. Vamos evitar o clichê de chamá-la “minimalista”, pois a única coisa mínima aqui é a técnica-tecnologia, justamente o que não importa, em absoluto, para a expressão. O cinema de Joe é antes “maximalista”: o natural e o sobrenatural habitam em massa o território de seus filmes. A técnica sem fetiche, a forma a serviço da substância, sem contribuição da obsolescência programada de dispendiosos hardwares ou sofisticados softwares para criação de efeitos fáceis de “expressividade” na captação ou edição das imagens.

O arquiteto Joe poderia epigrafar-se dos versos de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa:

“Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.”

Mekong Hotel (2012) é seu longa mais recente, depois de ganhar a palma de ouro em Cannes com Tio Boonme, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010). O filme caminha na fronteira tênue entre ficção e documentário. A sinopse é praticamente impossível, pois não se baseia em um enredo de articulações lógicas (causa-consequência); o que dá alma a este filme são antes as associações poéticas (analogias alegórico-simbólicas), que vão se enredando como numa composição musical – figurativizada pela onipresente trilha incidental de um violão dedilhado.

Desse modo, seus elementos-versos-estrofes são: o hotel, título do filme, onde se apresentam os outros elementos; um violonista que toca para o host do documentário (servirá de trilha para o filme inteiro); um rapaz cujo cão de estimação foi devorado por um monstro-fantasma mitológico que habita às margens do rio Mekong; o próprio rio Mekong, em sua largura sublime; uma senhora que distila lembranças de um passado individual e histórico (ela é também o monstro-fantasma); a filha dessa senhora (também a mesma criatura mitológica e uma “alma nômade”), que se relaciona amorosamente com o rapaz que perdera o cão (o moço também se transformará).

Em Apichatpong Weerasethakul, o físico e o metafísico, o histórico e o mitológico se sobrepõem, fundem-se de maneira a desaparecerem as marcas de suas fronteiras, mas sem perderem suas identidades particulares. Tornam-se, paradoxalmente, uma coisa só, sem deixar de ser o que são. São pouquíssimos os cineastas, hoje em dia, que enveredam por tais sendas. Joe é dos raros guardiões de um antigo fogo, o artista-xamã que resiste firme, na coragem quixotesca de deitar-se como ponte de ligação entre nós e o que resta do divino.

segunda-feira, abril 21, 2014

TV vs. Cinema


Les cahiers de la télévision?

Pode não parecer, mas o crítico não escreve só para si mesmo. Também não escreverá tão somente para um “público”, seja lá o que esse palavrão queira dizer. O tempero – sempre agridoce – com que muitos escribas de cinema carregam seus textos serve mais para estimular (dizendo o mínimo) as papilas gustativas de outros críticos. De sutis alfinetadas ao combate aberto, fica instaurada a polêmica, já histórica: Cahiers du Cinéma vs. Positif (quiçá as duas maiores revistas cinematográficas de todos os tempos, onde se definiu o que entendemos hoje por crítica); Jean-Luc Godard vs. François Truffaut (cinema de política vs. cinema de poesia); Andrew Sarris vs. Pauline Kael (os dois grandes pesos-pesados do lado de cá do Atlântico), e por aí vai.

O mês que passou nos trouxe um interessantíssimo exemplo desse tipo de debate, que lá fora é comum, executado com grande classe (síndrome de vira-lata à parte, seguimos ganindo frente à troca de insultos chã que parece definir a mídia tupiniquim, para além da crítica de cinema). No website da prestigiada The New Yorker, apareceu um artigo em que Emily Nussbaum (crítica de TV da casa) carrega orgulhosamente a bandeira da segunda “era de ouro” da TV, que vem sendo propalada desde The Sopranos (que estreou em 1999) até True Detective (o grande hype de 2014, até agora). Declarando como princípio – óbvio – que o crítico, seja na frente da tela pequena, seja na grande, deve apontar seus instrumentos não só para abstrações como tema, enredo e personagens, mas também para a materialidade muito específica dos recursos não por outro motivo chamados de audiovisuais, ela segue afirmando que TV é uma coisa e o cinema outra, ridicularizando o que todos querem saber: “a TV é o novo cinema?”

É verdade que as séries de TV estão ficando cada vez mais “cinematográficas”, mas ainda são produções majoritariamente coletivas, onde muita gente mete os palpites e outros dedos, por razões pragmáticas (= mercadológicas); assim, fica complicado pensar em séries “de autor” do mesmo modo como adoramos os “filmes de autor” (ainda mais os não-hollywoodianos). Nussbaum não diz que não possa haver apuro de linguagem audiovisual na TV, mas é preciso analisá-la na relação com os elementos de seu meio específico de produção, divulgação e recepção, que a autora descreverá na sequência. Sua tese é que o encanto estético puramente cinematográfico pode se sustentar nas duas horas médias de um filme, uma forma altamente concentrada; mas se for diluído nas múltiplas temporadas de uma série de TV, por anos a fio, não será capaz de tomar muito do tempo e da atenção de ninguém.

Por isso, a TV não seria uma mídia muito favorável a diretores, mas recebe de braços abertos os roteiristas que estão trazendo consigo a nova era de ouro: daí a profundidade e complexidade de personagens, seus diálogos e suas histórias, que seguimos acompanhando com paixão folhetinesca. A crítica do New Yorker se refestela com o exemplo da série Buffy: A Caça-Vampiros (1997-2003, criada por Joss Whedon); o título do texto é, justamente: “Cahiers du Buffy”, procurando se arvorar na tradição rebelde dos críticos dos Cahiers du Cinéma nos anos 50 (Godard, Truffaut, Rohmer), que revolucionaram a maneira como se vê e se escreve sobre cinema (posteriormente, mudaram também o modo como se fazem filmes), ao enxergar autoria artística em diretores de Hollywood (Hitchcock, Ford, Hawks) até então tidos pela crítica “highbrow” como meros funcionários de estúdio. Para Emily Nussbaum, há autoria na TV, mesmo em um “teen drama” como Buffy, mas trata-se de uma autoria diferente daquela que vemos no cinema, por ser principalmente centrada na figura do roteirista-idealizador das séries.

Ela termina o texto fazendo uma provocação direta a Richard Brody, companheiro crítico na mesma revista, chamando sarcasticamente de “religião” a sua crença incondicional na política dos autores (a famosa teoria que François Truffaut desenvolveu, durante os seus anos escrevendo para a Cahiers). Brody teria dito que as imagens das séries de TV fazem os seus olhos vomitar. Nussbaum responde que ele não aprecia TV porque segue uma estética audiovisual excessivamente formalista, baseada exclusivamente no virtuosismo técnico (“craftsmanship”, palavra de conotações intraduzíveis).

Alguns dias depois, Richard Brody publica, em seu blog no portal da New Yorker, um belo texto intitulado: “Um grande filme se revela em cinco minutos”. A proposta é: assista a quaisquer cinco minutos (não necessariamente os iniciais) de qualquer filme de Welles, Kubrick, Ozu, Ford, Dreyer ou Vertov, e você terá revelada e concentrada a essência da sétima arte, em todo o seu poder de despertar encanto e amor. Uma amiga minha tem uma tese parecida: um grande filme, daqueles pelos quais a gente se apaixona perdidamente, se mostra como tal já nos seus dez primeiros minutos, sempre. Para não passar a impressão de que ele é um cinéfilo fanático (e, portanto, preconceituoso para com a TV, per se), Brody aplica a mesma teoria para a literatura, música e artes plásticas. A natureza fundamental que anima uma obra de arte (poderíamos bem dizer: sua alma) está presente em todas as suas partes e elementos constitutivos, por igual, sem que haja qualquer divisão, diminuição ou resumo dessa mesma natureza. Isso é quase uma teologia.

A essência da arte é sua beleza estética, a qual não nada tem a ver com formalismo ou perícia técnica, nas palavras do crítico. Essa beleza proporciona um prazer, que despertará o desejo de fruir a obra em sua totalidade, assim como outras obras igualmente belas. Mas ele não consegue ver tal beleza em séries de TV, não obstante concorde com a sua colega quando ela busca parâmetros estéticos específicos para a tela pequena (ou já não tão pequena). TV e cinema, enquanto formas de expressão, não podem se julgar pelas medidas uma da outra. Linguagem audiovisual, em todas as suas formas, é algo em constante construção e redefinição; o crítico deve ter a mente aberta e vanguardista dos “jovens turcos” da Cahiers du Cinéma, que souberam enxergar a beleza da arte verdadeira, mesmo por trás de toda a fuligem da indústria cultural. Brody encerra o texto com o compromisso de continuar vendo TV, à espera de algo que lhe desperte prazer estético, assim como Nussbaum assumira o compromisso de prestar mais atenção à importância da forma, e não apenas do conteúdo, em seu trabalho de crítica de TV.

Bem, o que podemos dizer a respeito? Trata-se de um debate para lá de estimulante, em um campo temático vasto e relativamente inexplorado: a fortuna crítica da televisão é ainda paupérrima se comparada à do cinema, mesmo levando em consideração a diferença de idade entre ambos os meios (é preciso lembrar, não obstante, que a TV já venha sendo levada a sério, por críticos e acadêmicos desprovidos de preconceitos, desde o século passado). Conclusões ainda levarão o seu tempo para chegar, mas podemos, enquanto isso, ir apontando caminhos, ainda que pisando em terreno pouco firme.

Parece que a TV, pelo menos no formato das narrativas seriadas (para usar a expressão de Arlindo Machado, crítico e professor universitário), não se presta muito ao encanto do cinema que por algum tempo foi chamado de “puro” por realizadores e teóricos que, próximos à sua origem, buscavam o grande diferencial da “sétima arte” (expressão, aliás, criada pelo pioneiro Ricciotto Canudo em 1912): no cinema puro, ou cinema total, as imagens (e sons) em movimento valeriam quase que exclusivamente por si sós, com pouco ou nenhum suporte narrativo; cinema-vanguarda, cinema-sinfonia (basta pensar em Dziga Vertov), cinema que é a “música da luz” (Abel Gance). Como ficaria a TV pensada e realizada segundo esses ideais? Bem, tente imaginar o delírio (audio)visual e de pouquíssimos diálogos dos 150 minutos do 2001 de Kubrick esticado pelos cerca de 2600 minutos que durou Breaking Bad: será que alguém teria a paciência, tirando os cinéfilos já muito bem iniciados?

No entanto, existem precedentes para uma teleVISÃO relativamente mais pura, feita por cineastas à sua própria maneira (alguém poderá objetar, com razão, que não se trata de séries, mas de minisséries, coisa que todo mundo já considera como o “filé” da TV, ou seja, investimento de retorno certo): os 910 minutos de Berlin Alexanderplatz (1980) dirigidos por Rainer Werner Fassbinder em 14 episódios para a TV alemã, especialmente o surreal episódio de encerramento; os 286 minutos de The Kingdom (“Riget”, 1994 e 1997) dirigidos por Lars Von Trier em oito episódios para a TV dinamarquesa; os 550 minutos de Decálogo (“Dekalog”, 1989) dirigidos por Krzysztof Kieslowski em dez episódios para a TV polonesa. Com isso, podemos dizer que há (algum) espaço para diretores na TV, mas o mais comum são cineastas de peso que idealizam ou abraçam uma série e dirigirão – ou escreverão – apenas o primeiro episódio, ou alguns episódios-chave, ou ainda sentarão tão somente na cadeira de produtor. Todos os casos que seguem são da TV norte-americana.

O mais clássico e melhor exemplo é Alfred Hitchcock, que apresentou (à moda de Rod Serling em Twilight Zone) os 268 episódios de Alfred Hitchcock Presents (1955-1962), assumindo as rédeas da direção de 17 deles. O maior cineasta de todos os tempos soube reconhecer, logo cedo, o potencial de expressão e divulgação da TV, além de usar a equipe técnica da série para filmar Psicose (1960) a toque de caixa, como se fosse mais um episódio. Hitchcock também foi, à sua maneira, um ferrenho defensor do cinema puro: nas famosas entrevistas dadas a Truffaut, ele despreza colegas que ignoram o potencial expressivo da câmera e resolvem todas as questões da narratividade através de diálogos, e não por meios exclusivamente cinematográficos. No episódio de sua série intitulado Back for Christmas (exibido em 04 de março de 1956), o “mestre do suspense” dá um grande exemplo da sua arte: um homem planeja assassinar a sua esposa e cava o buraco onde pretende enterrá-la, no porão da casa onde moram. Surpreendido por ela, ele mede com os olhos o tamanho da cova, e Hitchcock nos mostra isso através de uma panorâmica subjetiva que percorre toda a extensão do buraco e vai parar no rosto da pobre mulher, parada de pé em uma de suas pontas.

Em segundo lugar, temos Twin Peaks (1990-1991), criada por David Lynch em trinta episódios, divididos em duas temporadas. Ele escreveu todos e dirigiu seis. Como é comum na TV dos EUA, nos episódios que não escreve ou dirige, o criador age como revisor / orientador / parâmetro para os trabalhos, o que faz com que a série mantenha uma identidade temática / de enredo e visual bastante forte e coerente. Isso vale muito bem para Hitchcock e para Lynch. De resto, seguem, dentre muitos outros que não vamos enumerar aqui: Michael Mann, que foi produtor-executivo de Miami Vice (1984-1990) e dirigiu o filme homônimo em 2006; Martin Scorsese, produtor e diretor do episódio piloto de Boardwalk Empire (2010 – ainda em exibição); Steven Spielberg – esse é prolífico na TV: produziu, dentre várias séries e minisséries, Amazing Stories (1985-1987), Band of Brothers (2001), Terra Nova (2011, infelizmente cancelada), Falling Skies (2011-2013); Robert Altman, que produziu Combat! (1962-1967), além de produzir e dirigir Tanner’88 (1988) e Gun (1997, dirigiu apenas um episódio).

Também há séries de alta qualidade e criatividade que contaram com a direção de grandes cineastas em alguns de seus episódios. Alguns exemplos: Columbo (1968-2003), que contou com Steven Spielberg (um episódio), John Cassavetes (um episódio, não-creditado) e Jonathan Demme (um episódio); Amazing Stories (1985-1987): Steven Spielberg (dois episódios), Clint Eastwood, Martin Scorsese, Robert Zemeckis, Joe Dante (um episódio cada); Twilight Zone (a segunda versão, de 1985 a 1989): Wes Craven (cinco episódios), Joe Dante, William Friedkin (um episódio cada). Vale a pena citar o caso único de M*A*S*H (1972-1983), série genial derivada do genial longa-metragem de Robert Altman (M.A.S.H, 1970), mas na qual ele não tem, aparentemente, nenhuma participação direta. Todos esses diretores se expressam, na TV, de diferentes e desiguais maneiras, se formos comparar com suas obras no cinema. O mesmo encanto que vemos no cinema de Alfred Hitchcock – aquela teoria do grande filme que se revela em cinco minutos – vemos nos episódios que ele dirigiu para a sua série de televisão. Por outro lado, é claro que o encanto do cinema hitchcockiano de Um Corpo Que Cai (“Vertigo”, 1958) é consideravelmente superior ao de Marnie, Confissões de Uma Ladra (“Marnie”, 1964), por exemplo. O consolo é que o pior filme – ou episódio de TV – de Hitchcock vence de goleada o melhor longa-metragem de, digamos, M. Night Shyamalan.

Sinceramente, não acho que devamos procurar na TV a mesma epifania que encontramos em um Tarkovski, Bergman, Tati, Bresson, Resnais, Pasolini ou Antonioni. Estaríamos latindo para a árvore errada. E isso não desmerece, de forma alguma, as narrativas seriadas de televisão enquanto meio expressivo, cultural, artístico. O fato é que muitos e diversos diálogos entre a tela pequena e a grande já foram travados, com benefícios para ambas as partes, e outros ainda o serão. Além do mais, como bem disse o crítico da New Yorker, a linguagem audiovisual é algo em constante mudança, em frequente reelaboração prática e teórica. Como um todo, esteticamente a TV ainda se encontra na era da narrativa clássica de Hollywood, cujo período de ouro foi dos anos 30 aos 50. Ou seja, um audiovisual que se pensa e se apresenta como “janela” para determinada realidade, exercitando mecanismos de identificação catártica entre os personagens, suas histórias e os espectadores, com todo o devido cuidado para que permaneçam imperceptíveis os elementos que poderiam quebrar essa ilusão e revelar ao público a artificialidade das séries enquanto discurso elaborado, recorte de mundo e persuasão quanto a pontos de vista historicamente determinados: a montagem é “invisível”, as narrativas são lineares, a “quarta parede” fica sempre de pé, etc.

Naturalmente, sempre houve e continua havendo gloriosas exceções – cada vez mais, nesta segunda era de ouro da TV: desde as alegorias dos direitos civis em Star Trek (1966-1969), passando pelo anti-belicismo da já citada M*A*S*H e pela luta de classes em Columbo (os criminosos são sempre os ricos e poderosos), até as armadilhas catárticas de Arrested Development (2003-2013), Mad Men (2007 – ainda em exibição) e Breaking Bad (2008-2013), além dos virtuosos mise en abyme metalinguísticos de Community (2009 – ainda em exibição). Não obstante, sentimos que a TV ainda não descobriu a fundo as vanguardas cinematográficas, a nouvelle vague, o neorrealismo italiano, etc. Mas será que precisa mesmo descobrir? Em que medida? Por outro lado, a TV pode pensar e desenvolver suas próprias vanguardas, através de questionamentos que levem em conta seu próprio meio, questionamentos esses não iguais aos que o cinema já empreendeu, mas equivalentes; algumas séries já realizadas podem apontar caminhos: por exemplo, Lost (2004-2010) e The Office (2005-2013), que incorporam, misturam e reescrevem inversamente a lógica do reality show, da soap-opera e do documentário-reportagem.

Enfim, eu tinha dito que, “como um todo”, a TV (norte-americana) coninua parada na Hollywood dos anos 50; corrijo-me: falo apenas dos melhores e sempre poucos exemplos dentre o grosso do que é televisionado – tirando também os casos ainda mais raros de séries “vanguardistas”. Quando se diz, falando da nova era de ouro, que a criatividade e qualidade do cinema de Hollywood migraram para a TV, eu entendo como: assistir a um bom seriado, hoje em dia, é como assistir a um bom filme hollywoodiano de antigamente. Mas, deixando de lado esses bons seriados, o que sobra não vale mais do que os velhos folhetins, vaudevilles e circos de aberrações do século XIX, ou ainda o “teatro filmado” dos primórdios do cinema, antes de aparecer um Griffith. A televisão vem se tornando, sim, cada vez mais cinematográfica. Contudo, apesar dos J. J. Abrams, Vince Gilligan, Ricky Gervais, Dan Harmon, Mitchell Hurwitz e outros, a TV ainda não produziu os seus Sergei Eisenstein, Orson Welles, Roberto Rossellini, Jean-Luc Godard, etc. – pensando numa Arte que transcenda o seu próprio contexto e se iguale às grandes produções do pensamento e da sensibilidade humana, de todos os tempos. De qualquer maneira, esses gênios podem estar apenas esperando que alguma emissora leia seus roteiros e decida bancar a produção de um piloto...

sexta-feira, março 07, 2014

Robocop (2014)


Em Roma. Como os romanos?

O cinema de Paul Verhoeven é uma delicada construção de ironias em abismo (mise en abyme), caindo em espiral. Um cinema pós-moderno, por excelência. Tomemos o seu Robocop (1987, o original): o futuro próximo ali fabulado faz escárnio não apenas da realidade ideológica da era Reagan / Tatcher (o capital privado conquistando todas as esferas da respública: da polícia à reurbanização completa de uma cidade[1]), como também dos próprios discursos de propaganda daquela mesma ideologia: os anúncios nos intervalos comerciais do telejornal mostrado dentro do filme e a própria estrutura narrativo-estilística deste último, enquanto “filme de gênero” (ação, policial), cinema de indústria. Verhoeven se mune dos melhores clichês do meio apenas para desconstruí-los um a um, não pela sua inversão, mas pelo exagero caricatural.

Assim, muitos não entenderam – e ainda não entendem – o primeiro Robocop. Ele terá lá os seus fãs, que sonharão com o dia em que o “policial do futuro” se tornará presente; mas terá igualmente os seus sofisticados esnobadores, que o atirarão à cova rasa do cinema “hollywoodiano”[2]. Colocando em termos literários, Verhoeven é um Flaubert; Robocop é a sua Madame Bovary, o romance anti-romanesco. Situação colocada, José Padilha foi sábio em se manter longe do cineasta holandês e de maiores referências que arrastem a ele. Obviamente, não é esse o cinema do documentarista de Ônibus 174 (2002). O fato é que, em Tropa de Elite (o primeiro e o segundo: 2007 e 2010), Padilha buscava preencher uma das grandes lacunas do nosso cinema, com a maior das boas vontades: fazer filmes de gênero bons (quero dizer: conseguir fazê-los, antes de mais nada; em segundo lugar, fazer bem feito).

Conseguiu. Naturalmente, acabaria desviando para si o olho de Sauron... Digo, dos producers da Cidade dos Anjos. Mas, levado à terra onde se fabricam sonhos, deu conta do recado (esteticamente, pelo menos; não me interessa aqui o box office). Padilha não é um Gustave Flaubert, mas pode muito bem passar por um Aldous Huxley ou George Orwell – dentre outros ficcionistas dotados de consciência política cuja literatura fica no limiar entre o gênero (“sci-fi”) e a coisa séria, ao elaborarem retratos detalhados de sociedades distópicas. A narrativa cinematográfica do novo Robocop devolve, ironicamente, ao espectador muitos dos mais adoráveis lugares-comuns da ideologia dominante, divertindo-se com as dinâmicas da identificação (a velha catarse) entre público e personagens ou situações narradas.

É desse modo que o Capitão Nascimento já tinha virado herói nacional, conquistando boa parcela das plateias para cujos rostos encantados o primeiro Tropa de Elite apontava e disparava uma escopeta, em sua última cena. Paul Verhoeven também fazia uso dessas artimanhas. E ia além. Mas José Padilha não permite que a acidez da ironia venha a corroer sua câmera, sua mesa de edição. Tudo bem. Teremos um ótimo filme de ação / policial / ficção científica com conteúdo. O fato de um brasileiro fazer isso na Hollywood da segunda década do século XXI já é mais do que uma (rara) vitória, para o cinema nosso e para o deles. Conclusão: o primeiro Robocop é um filme de autor, camuflado sob o uniforme do gênero; o segundo é um filme de gênero, armado até os dentes de autoria.


Notas:

[1] A mesma Detroit que, recentemente, declarou falência.

[2] A coisa foi ainda pior com Tropas Estelares (1997), quando, às custas de ter tomado emprestados alguns ângulos de Leni Riefenstahl (a conhecida “cineasta de Hitler”) para satirizar os heróis de uma sociedade futura altamente militarizada, Verhoeven foi tachado de “nazista” por mais de um crítico da grande mídia na época.

quinta-feira, março 06, 2014

O Menino e O Mundo


Aos olhos de uma criança

O Menino e O Mundo (Brasil, 2013, dir.: Alê Abreu) é um poema em prosa audiovisual. E aqui voltamos para a questão pouco falada e menos compreendida do cinema de poesia. Andrei Tarkovski, autor de O Espelho (1975, filme que também trata, a seu modo, de um menino e um mundo), confessa o que mais lhe agrada no cinema: as articulações poéticas, a lógica da poesia(1). Mas o que seria essa "lógica" tão peculiar ao discurso chamado de poético? É a lógica da analogia. AnaLÓGICA(2).

A imaginação poética é toda feita de associações, de metáforas e alegorias: de Homero a Saramago, de Méliès a "Joe" Weerasethakul(3). Pensamento mitopoético. Eis a senha que nos dá acesso à dupla realidade, já desvelada no próprio título, de O Menino e O Mundo: infância e maturidade; inocência e experiência; encanto e desencanto; o mágico (sonho/inconsciente) e o real (vigília/consciência); o individual e o coletivo; o micro e o macro; o eu e o outro (mesmo quando esse outro é o próprio eu); o ser e o (estar no) mundo; a natureza e a cultura; a carência e a opulência; o pátrio e o estrangeiro; a liberdade e a opressão; a vida e a morte.

O filme - todo som, todo música - vai articulando, vai cadenciando, vai ritmando os elementos de todos esses pares em uma narrativa poética, ou seja: inventando (melhor seria dizer: reconhecendo) correspondências simbólico-afetivas, em um procedimento que passa longe do lógico-dedutivo e do linear. Não é uma demonstração, a resolução de um teorema, defesa de uma tese. Trata-se, em verdade muito singela, de uma expressão. O desnudar de uma alma, seus movimentos. Avanços e retomadas. Transformação e permanência. Tradição e ruptura. Paradoxos. Sínteses. O fim é o começo. O universo cíclico no pensamento dos povos da infância da humanidade. Pensamento, afinal, de todas as infâncias, de todos os tempos.

O particular, o universal; o temporal, o atemporal. A história de O Menino e O Mundo é uma e são muitas. "Somos muitos Severinos", dizia João Cabral, poeta de poema. História de vida e morte, de morte e vida severinas, "aos olhos de uma criança", como diz o rapper Emicida na trilha sonora. Uma certa criança que havia, como houve certa vez "um certo Miguilim", no dizer de outro João, o Rosa, poeta de prosa. O horror ainda há, a ave negra que destroça a ave multicolorida (cujos pigmentos fecundarão a terra, não obstante). Mas ainda há, também, meninos. Ainda há meninas. Eles plantarão sementes. Ainda bem.

Notas:
1. "Voltemos, porém, ao nosso tema: o que me agrada extraordinariamente no cinema são as articulações poéticas, a lógica da poesia. Parecem-me perfeitamente adequadas ao potencial do cinema enquanto a mais verdadeira e poética das formas de arte. Estou por certo muito mais à vontade com elas do que com a dramaturgia tradicional, que une imagens através de um desenvolvimento linear e rigidamente lógico do enredo." TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.16. 
2. "A ideia da correspondência universal é provavelmente tão antiga quanto a sociedade humana. Isso é compreensível: a analogia torna o mundo habitável. À contingência natural e ao acidente ela contrapõe a regularidade; à diferença e à exceção, a semelhança. O mundo não é mais um teatro regido pelo acaso e pelo capricho, pelas forças cegas do imprevisível: o ritmo e suas repetições e conjunções o governam. É um teatro feito de acordes e reuniões em que todas as exceções, mesmo a de ser homem, encontram seu duplo e a sua correspondência." PAZ, Octavio. Os filhos do barro. São Paulo, Cosac Naify, 2013, p.74-75. 
3. Diretor de Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010).