quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Reefer Madness


O uso do cinema como veículo de propaganda ideológica já foi por demais ressaltado, especialmente em se tratando da indústria norte-americana, para que eu aqui possa acrescentar alguma idéia ou informação relevantes. Entretanto, visto que o cinema é uma forma de arte, e sendo a estética o fator essencial em qualquer reflexão sobre artes, é interessante acima de tudo destacar os valores estéticos dos filmes de propaganda. Os filmes de Leni Riefenstahl – particularmente O Triunfo da Vontade (1934) – são debatidos nos meios cinematográficos, elogiados ou criticados independentemente do seu conteúdo, seus temas ou supostas mensagens.

É claro que o fator formal-estético não é tão estanque em relação ao conteúdo; ambos se inter-relacionam dialeticamente. É por isso mesmo que temos que reconhecer que o mais eficiente filme de propaganda será aquele funcionar melhor enquanto filme, sendo respeitados e elaborados criativamente nele os elementos da linguagem cinematográfica. Não basta de maneira alguma simplesmente “colar” um determinado discurso (qualquer que seja este, seja comunista ou nazista) às imagens mostradas na tela.

O filme tem que provocar o envolvimento profundo, até mesmo emocional, do espectador; é o que pode ser chamado de catarse. Tal envolvimento pressupõe uma elaboração estilística / artística elevada. O universo diegético do filme deve ser bem construído e crível, os personagens devem ser elaborados e críveis, a narrativa (a não ser no documentário) deve se fazer em uma progressão gradativa com vistas a um clímax; enfim, a junção de técnicas literárias e cinematográficas é da mais extrema importância aqui. Eisenstein é o grande exemplo de como deve ser o cinema ideologicamente motivado.

Durante os anos 20 e 30, nos EUA, muitos filmes narrativos de ficção foram feitos dentro da ampla e contundente campanha anti-maconha. Reefer Madness (“A Loucura do Baseado”, também entitulado “Tell Your Children”; EUA, 1936, dir.: Louis J. Gasnier) é apenas o mais famoso e interessante exemplo.

Salta à vista e aos ouvidos a ingenuidade das idéias e da visão de mundo, assim como o ódio, verdadeiro ódio em relação à “erva do diabo”, “mais viciante e letal do que a heroína” (é sério, o filme propaga “informações” assim). O filme é uma caixa de pandora de desinformações, preconceitos e intolerâncias diversas mal disfarçados sob a capa da moral e dos bons valores da família e da sociedade, da preocupação com os rumos da juventude, futuro da nação, que tristemente cai vítima de traficantes de drogas, do sexo “impuro” e do jazz...

O engraçado é o filme mostrar esses mesmos adolescentes fumando cigarros de nicotina como se fosse a coisa mais natural do mundo, mas quando se fala em maconha... Enfim, eram outros tempos.

A maneira como “Reefer Madness” defende as suas idéias (e também essas próprias “idéias”, em si mesmas) beira curiosa mas perigosamente as raias do fascismo. E estamos falando da América em 1936...

Mas tudo isso não é o ponto nevrálgico aqui. “Reefer Madness” é um filme ruim porque é cinematograficamente mal feito. O roteiro é repleto de elementos forçosamente encaixados apenas para que a fita transmita “melhor” a sua mensagem; os acontecimentos não são naturais, os personagens não são naturais (estes são apenas cascas sem espírito usadas apenas para se provar uma “tese”), enfim, tudo no filme é artificial, ficando pra lá de gritante o intuito propagandístico.

A decupagem não é feita em função de um universo, de uma história e personagens a serem mostrados que irão, por sua própria força e vez, comover o espectador e fazê-lo aceitar os fatos e idéias veiculadas por trás deles (como ocorreria num filme bom de verdade). A decupagem aqui, pelo contrário, trabalha incansavelmente apenas para martelar, da maneira mais forte, descarada e didática possível, a ideologia pretendida.

Os únicos momentos em que a fita mal se aproximaria de um cinema de verdade são: 1. quando um dos jurados, ao discutir o veredicto a ser dado ao “maconheiro matador”, vê a cordinha da lâmpada transformar-se numa forca (metáfora bem pobrezinha essa...); 2. quando o viciado-mor em maconha é levado ao tribunal, num estado mental totalmente ensandecido, temos vários planos rápidos e sucessivos captando, de diversos ângulos, seu rosto e seus olhares insanos sob uma luz e maquiagem quase expressionistas... (é uma montagem quase digna de Eisenstein essa...)

“Reefer Madness” em tudo não convence a quem tem um mínimo de senso, assim como não convence de jeito nenhum o Dr. Carroll (apesar de seus louváveis esforços), personagem aliás bem ridícula.

Aqui faremos a passagem mais interessante. “Reefer Madness”, apesar desses absurdos todos, não é um filme que desperta o nosso rancor. Talvez por ser obra de uma época e mentalidade já distantes (embora ainda resista uma parte delas maior do que gostaríamos), nós achamos o filme “engraçadinho”... Seu ridículo, seu risível, desperta a nossa simpatia: a partir dos anos 70, “Reefer Madness” virou um cult entre o público do cinema alternativo e também entre o público “alternativo” do cinema.

Assista e tire as suas próprias conclusões.

sábado, fevereiro 24, 2007

Turistas


Antes de mais nada, quero deixar claro que Turistas (“Turistas”, EUA, 2006, dir.: John Stockwell) é um filme ruim. Contudo, qualquer filme, por pior que seja (e não importa o motivo de ele ser ruim), é dotado de questões que – se discutidas sabiamente – alçarão, não o próprio filme, mas o nosso conhecimento de mundo. E não é essa a função da arte, boa ou ruim que seja? Por isso, vamos viajar um pouco (o possível trocadilho não é intencional, ou, como diriam os “gringos”: no pun intented).

Podemos conectar “Turistas” à mitologia do Coração das Trevas (“The Heart of Darkness”). Dou a palavra a Joseph Conrad, autor dessa magnífica novela:

‘And this also’, Said Marlow suddenly, ‘has been one of the dark places of the earth.’
(...)
I was thinking of very old times, when the Romans first came here, nineteen hundred years ago – the other day... (...) Imagine the feelings of a commander of a fine – what d’ye call’em? – trireme in the Mediterranean, ordered suddenly to the north; (...) Imagine him here – the very end of the world, a sea the colour of lead, a sky the colour of smoke, (...) Here and there a military camp lost in a wilderness, like a needle in a bundle of hay – cold, fog, tempests, disease, exile, and death – death skulking in the air, in the water, in the bush. (...) Or think of a decent young citizen in a toga – perhaps too much dice, you know – coming out here (...) Land in a swamp, march through the woods, and in some inland post feel the savagery, the utter savagery, had closed round him, - all that mysterious life of the wilderness that stirs in the forest, in the jungles, in the hearts of wild men. There´s no initiation either into such mysteries. He has to live in the midst of the incomprehensible, wich is also detestable. And it has a fascination, too, that goes to work upon him. The fascination of the abomination – you know, imagine the growing regrets, the longing to scape, the powerless disgust, the surrender, the hate.’

Ah, se John Stockwell tivesse lido apenas esse trecho de Heart of Darkness antes de fazer o seu filme... Supondo que o tenha lido, nossa colocação será a seguinte: ah, se John Stockwell tivesse conseguido pôr em imagens e sons essas palavras, idéias, emoções, atmosferas, personagens... “Turistas é uma lacuna, um esboço, uma sombra; se essa lacuna tivesse sido preenchida com o “decent young citizen” de Conrad, teríamos então em mãos um grande filme! Possivelmente, uma obra-prima. Mas...

Não obstante, o trecho acima de “O Coração das Trevas” descreve a Inglaterra nas primeiras visitas dos romanos; o grosso da narrativa da novela se passa em outro coração selvagem das trevas: o Congo africano na época da exploração imperialista do marfim. O ponto nevrálgico aqui é a “fascination of the abomination” que temos por lugares selvagens, inóspitos, exóticos em todos os aspectos. Junte isso ao universo do turismo com suas paisagens belíssimas, sublimes e atraentes (para quem vê de longe) e descobriremos o potencial de maneira alguma não-realizado pelo filme de Stockwell.

Ainda que deixemos à parte todo o lado filosófico, se “Turistas” procurasse inspirar-se apenas na atmosfera, no estilo narrativo e na caracterização psicológica dos personagens da novela de Joseph Conrad (tal como fez Apocalipse Now, a livre adaptação de Francis Ford Coppola), já seria um ótimo filme de terror, muito envolvente e catártico. E não é isso o que ele pretende de fato ser, já que se trata de uma produção da subsidiária da Fox dedicada ao público de 17 a 24 anos? Vejamos bem, não estou tentando reclamar do filme algo que ele nunca objetivou ser – o que é um erro muito grave e comum da crítica –, apenas mostrando que, dentro de suas próprias ambições, esta película não decola.

Quanto à polêmica “visão do Brasil” que haveria neste filme, digo apenas que, se eu fosse um nova-iorquino que tivesse pouquíssimo conhecimento de mundo e visse “Turistas” logo após ter visto “O Massacre da Serra Elétrica” (The Texas Chainsaw Massacre, EUA, 1974, dir.: Tobe Hooper), eu ficaria com muito mais medo de ir ao Texas do que ao Brasil. No Texas, absolutamente ninguém da população daqueles campos inóspitos quis ajudar os jovens perseguidos; pelo contrário, até. Já no Brasil, como o filme de Stockwell bem mostra, nem todos são vilões, e até mesmo alguns dos vilões se arrependem e voltam atrás (desculpem pelo spoiler). O interessante em “Turistas” é o fato de o verdadeiro vilão-mor ser um homem branco (sendo que a maioria dos outros brasileiros no filme são negros, pardos ou índios), médico, culto (ou pseudo-culto), dotado de todo um discurso sócio-político-filosófico, mas que alicia, explora e maltrata seus subordinados, todos eles da comunidade pobre ao redor. Pensemos nisso...

Assumamos de vez a nossa hipocrisia e acabemos com ela. Não adianta tomarmos as dores pelo Brasil mostrado “ofensivamente” neste filme, pois esse “Brasil” não é o nosso Brasil, de nós da classe média urbana e razoavelmente esclarecida que nos dedicamos a ver filmes de cinema e a refletir sobre eles. É muito mais pertinente nos identificarmos com os turistas “gringos”, do que com os brasileiros do filme (à exceção do já citado médico, que, pelo discurso, lembra-me muito certas pessoas “cultas”). Ou contribuímos verdadeiramente para a melhora do Brasil, ou largamos o ridículo da hipocrisia e calamos de vez a boca. Mas aí já não seríamos malandros...

Um crítico de cinema (cujo nome eu não lembro), em um veículo de imprensa que não vem ao caso eu citar, disse uma vez a respeito de um filme nacional (do qual eu também não me lembro) que nele se fazia muito presente a periferia urbana, com sua profusão confusa de telhados e antenas “que a gente costuma ver da estrada quando vai para a praia”. Disse isso na maior naturalidade... “A gente” quem, pergunto eu? Pois eu nasci e sempre morei justamente nessa profusão de telhados e antenas. Serão essas a visão, o conhecimento de mundo e a experiência de vida das nossas classes esclarecidas, de nossa elite intelectual, de nossos jornalistas e críticos de arte e de cultura? Meu Deus!...

Então, quem for reclamar patrioticamente de “Turistas”, pense bem: talvez o seu ponto de vista esteja bem mais próximo do dos norte-americanos do que você imagina, ou gostaria de assumir.
Anyway, os filmes “sérios” de Cláudio Assis (“Amarelo Manga”) mancham muito mais a imagem do Brasil e do povo brasileiro do que este filmeco “B” do baixo-clero hollywoodiano.

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Carros

É indiscutível que o automóvel seja um dos maiores (senão o maior) fetiche da nossa sociedade. A indústria, a cultura, o universo automobilístico trazem, não raro, o pior do ser humano, como bem mostrava um desenho antigo da Disney em que Pateta, cidadão ordinariamente pacato, ao assumir o volante do seu carro transformava-se num monstro de ansiedade, agressividade e stress. Isso sem falar na poluição, na ocupação escandalosa que os veículos automotores fazem do espaço urbano em muitas cidades, relegando aos cantos das calçadas, às (poucas) praças e aos interiores a população humana. O que começou como um raro luxo, como um prodígio da civilização industrial, veio se transformando, no último século, em dependência que beira o doentio. As perspectivas de futuro não são nada animadoras quando pensamos no esgotamento dos combustíveis fósseis.

A ficção científica sempre tratou do robô com sua inteligência artificial como o grande duplo, o grande outro do ser humano. Mas o nosso verdadeiro e forte “duplo” encontramos aqui e agora, convivemos com ele cotidianamente, sem muitas vezes darmo-nos conta do fundo da relação que temos com ele: o automóvel. São poucas as vezes em que o cinema retratou o automóvel no papel psíquico que ele exerce em nós, mas essas vezes foram muito bem elaboradas. Posso me esquecer ou não conhecer algum exemplo fundamental (alguém, por favor, me ilumine, se for esse o caso), mas aqui vão os melhores (e únicos) filmes que mostram a – estranha – relação entre os homens e os carros, entrando mesmo na dimensão psicológica:


1. As aventuras de Ms. Hulot no trânsito louco (“Trafic”, França / Itália, 1971. Dir.: Jacques Tati): Toda a genialidade, a graça, a fina mas corrosiva ironia de Jacques Tati apontada para a cultura do automóvel. Tati, que em outros filmes já havia desmascarado outros confortos da vida e do mundo modernos (o turismo, as moradias com todas as suas parafernálias tecnológicas, a indústria, os restaurantes e a vida noturna urbana), agora ataca a nossa paixão doentia pelos carros e por tudo o que diz respeito a eles.


2. Christine, o carro assassino (“Christine”, EUA, 1983. Dir.: John Carpenter). O terror é um gênero particularmente prolífico para retratar o automóvel como duplo do homem. Baseado no romance de Stephen King, este filme é o que mais entra a fundo no lado psicanalítico da relação entre um homem e seu carro, que aqui é amorosa. Que o homem sente um ciúmes doentio por seu automóvel, isso é fato que todos nós já observamos; agora, que o automóvel sinta esse ciúmes e passe a agir para “proteger” o seu homem, eis o que assusta e muito. O design antropomórfico que os carros curiosamente já possuem é neste filme destacado e exagerado (isso contribui muito para o terror), particularmente numa cena em que Christine, o plymouth psicopata, assume um “rosto” de terrível nervosismo e ódio, graças ao trabalho de arte feito com a frente do carro, batida e meio destruída em pontos muito bem escolhidos.

3. Comboio do Terror (“Maximum Overdrive”, EUA, 1986. Dir.: Stephen King). Sim, o filme é dirigido pelo próprio autor de “Christine” e de “O Iluminado”, baseando-se em um conto seu (“Trucks”). Quando a Terra é engolida pela cauda de um cometa, todas as máquinas adquirem comportamento homicida. A narrativa concentra-se num grupo de pessoas encurraladas em um posto de gasolina por uma “gangue” de caminhões muito nervosos. A frente do líder deles é decorada com uma imensa cara de palhaço...

4. Encurralado (“Duel”, EUA, 1971. Dir.: Steven Spielberg). Um pacato – mas não tanto – cidadão passa a ser perseguido em seu carrinho nas desérticas estradas do meio-oeste americano por um grande caminhão, cujo motorista nunca se vê e que age de modo profundamente sádico para com o pobre cidadão. Versão automotiva dos duelos nos “westerns”.


5. Carros (“Cars”, EUA, 2006. Dir.: John Lasseter e Joe Ranft). A mais recente animação computadorizada da Disney / Pixar é algo especial não só no aspecto tecnológico (que é estontenate). Nos outros filmes, o automóvel é tratado de maneira antropomórfica, ou seja, são-lhe dadas características humanas, sendo ele inserido no mundo do homem. Aqui, por outro lado, é o homem que é tratado de maneira COSMOmórfica, ou seja, são-lhe dadas características automobilísticas, uma vez que se tem um mundo em tudo correspondente ao nosso, exceto por ser habitado exclusivamente por veículos automotores. O homem é inserido em um fictício mundo do automóvel. Não devemos ver esse filme como carros que assumem a forma humana (antropomorfismo), mas como homens que assumem a forma de carros (cosmomorfismo). Um universo onde até os insetos são minúsculos fuscas mexe muito com a nossa fantasia e fetiches contemporâneos. É engraçadíssimo e inteligente o uso de metáforas (tais como “living in the fast lane”) que, ditas por aqueles personagens-carros, deixam de ser metáforas e passa a ter um sentido bem próprio. O filme critica os exageros não só da cultura automobilística mas de toda a nossa civilização contemporânea, como a preocupação exclusiva com a “chegada” enquanto que o interessante é viver o “caminho”. Também critica o progresso que destrói ou abandona tudo o que é “velho” e “antiquado” e o excesso de um individualismo egoísta. Enfim, o pragmatismo cego e incondicional é o alvo aqui. São mensagens que servem bem tanto às crianças quanto aos adultos. O pequeno documentário que acompanha o DVD é bastante esclarecedor quanto às fontes e os propósitos de “Carros”. Grande filme!

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Miami Vice


Graças a Deus que o cinema ainda tem gente como Martin Scorsese e Michael Mann. É muito fácil gostar de filmes policiais noirs; fazê-los já é outra história: é preciso um feeling e um discernimento. Sem tais sabedorias, o que teremos são filmes (e cineastas) posers. Atitude “poser” em oposição a um fazer artístico mais elaborado: a mesma diferença que há, no rock and roll, entre – digamos – Led Zeppelin e Whitesnake, podemos colocar entre este Miami Vice de Michael Mann e outras fitas policiais “moderninhas”.

O legal é termos Linkin Park e Jay-Z na trilha sonora de um filme que – aposto – não será compreendido por numerosa parte dos fãs de Linkin Park e de Jay-Z. “Miami Vice” aproveita-se de e engole a atitude e estilo “poser” do nu-metal e do hip-hop. Estilo e conteúdo audaciosos: “Miami Vice”, desde a série original nos anos 80, destaca-se entre o gênero policial de uma maneira que nos faz lembrar da diferença que há entre Star Trek: A Série Clássica e outros seriados de ficção científica.

“Miami Vice” é o que todo filme de gênero deveria ser: acessível e dinâmico sem deixar de ser rigoroso e perscrutador; divertido sem deixar de ser estimulante. Tudo misturado com muita classe e segurança de quem sabe o que faz e aonde quer chegar. “Miami Vice” é como uma música de hip hop, mas o hip-hop misturado com jazz, do grupo US3 (sucesso nos anos 90).

Enfim, o filme pode ser definido por uma fala do detetive Ricardo Tubbs: “Smooth. That’s how we do it”. Michael Mann parece estar se explicando aí.

Perto do que predomina em Hollywood hoje em dia, o roteiro de “Miami Vice” é até rocambolesco; e juntamente com Os Infiltrados de Scorsese, lembramo-nos, aqui, dos filmes mais antigos: De Sam Peckimpah e Samuel Fuller até John Huston e Michael Curtiz. Eis a linha que ainda (bem) sobrevive em Scorsese e Mann.

Os policiais e os bandidos desta mais recente obra do diretor de Fogo contra Fogo (“Heat”, 1995) não são muito diferentes entre si, nos pensamentos e nas atitudes, e por trás de suas máscaras “posers” reside e vaza uma profunda insegurança, de si mesmos e do que fazem. Isso é o mais importante nos filmes de Michael Mann. O tormento, o drama dessa insegurança pode ser ligado ao seu “trabalho”: Mann é o cineasta que discute o universo do trabalho do ponto de vista do sujeito que se vê preso a um fazer profissional (ou profissionalizado) no qual ele não acredita 100%; disso decorrem dilemas, atitudes desesperadas, erros, dores, mas também acertos e mudanças positivas.

O trabalho que parece fazer mais mal do que bem, o trabalho que não faz o menor sentido, mas que ainda assim deve ser encarado a sério como um trabalho, pois não se trata de brincadeira (ainda que, às vezes, se pretenda isso em busca de um suposto alívio; aliás essa questão da “brincadeira” é discutida em “Miami Vice” na mesma cena em que o detetive Ricardo Tubbs lamenta-se do seu trabalho, e lamenta-se porque não acredita nele); enfim, o trabalho em um mundo onde não se sabe mais direito qual a medida de “emprego” e qual a dose de ideologia que há em um “trabalho” é um tema central e forte em (quase) todos os filmes de Michael Mann. Desde Profissão: Ladrão (1981; título bem sugestivo) até O Informante (1999), em que o químico da indústria tabagista reconhece o mal do qual o seu trabalho é responsável, e também Colateral (2004), onde o taxista Jamie Foxx não aceita que seu trabalho seja conduzir um assassino profissional às suas vítimas e o assassino profissional Tom Cruise aceita bem a sua profissão pois enxerga nela apenas um “trabalho”...

Os detetives Sonny Crockett e Ricardo Tubbs mantêm os seus empregos, o figurino alinhado e os carros esporte. Mas estão mais sérios e melancólicos. O preço que pagam para serem “cool” é alto...

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Candeias e Dante


Trecho do texto de José Geraldo Couto, publicado sábado passado na Folha de S. Paulo, sobre o recém-falecido Ozualdo Candeias:

Sua carreira como diretor começou de modo explosivo, com A Margem (1967), tragédia de dois homens e duas mulheres que sobrevivem nas franjas mais miseráveis da sociedade paulistana.

Malgrado o próprio autor, o filme acabou sendo visto como marco inicial do “cinema marginal”. O longa ganhou vários prêmios e a crítica viu no bote que transporta os personagens referências ao barco de Caronte, no “Inferno” de Dante. Anos depois, Candeias rebateu: “Isso é ignorância. Não sabem que antigamente, quando não havia tantas pontes nem as marginais do Tietê, pequenos barcos transportavam pessoas e cargas de uma margem à outra”.

Magnífica a resposta de Candeias! Entretanto, temos que analisar mais a fundo o fenômeno aqui revelado. A obra de arte tem vida por si própria. Mas ela oferece essa vida de maneiras diferentes a cada apreciador, que liga a obra de arte à sua própria experiência individual, seu estado de espírito, seu conhecimento de mundo e idéias. Assim, a riqueza das análises e interpretações só têm a enriquecer o universo artístico.

Não obstante, as interpretações devem ser feitas com cuidado. Mais importante do que o cuidado científico da análise (sua pertinência em relação à própria obra) que tanto nos ensinam da escola à universidade, é o cuidado do próprio analista com as suas intenções em relação ao estudo da obra artística. Tomemos, como ótimo exemplo, a visão que a crítica teve do bote de Candeias em “A Margem”: se o crítico reconheceu espontaneamente a figura da barca de Caronte no filme de Candeias, motivado inconscientemente pelo conhecimento de mundo e bagagem cultural específicos do indivíduo enquanto crítico de cinema, e fez tal colocação de maneira natural e despretensiosa, enriquecendo a fortuna do filme, então está tudo bem. É saudável.

Agora, por outro lado, se o crítico pretendeu “desvendar” as fundações e os segredos do filme de Candeias, tentando fazer-lhe uma verdadeira exegese, dando à comparação Candeias-Dante um caráter de verdade, de tese, de elucidação; entendendo a dimensão dantesca do filme como um procedimento proposital e consciente do diretor, ou ainda entendendo que a única ou melhor maneira de se compreender o filme é através dessa comparação, então só temos a lamentar. São críticos assim (e existem muitos, principalmente nas universidades) que merecem a resposta do cineasta: “Isso é ignorância”.

É o crítico (cuja tarefa seria fazer uma análise objetiva) que aplica, de maneira incondicional, exclusiva e excludente, a sua própria visão de experiência de mundo à obra de arte. Essa estreiteza de pensamento é realmente lamentável e imperdoável em pessoas que são tomadas por “esclarecidas”.

Por outro lado, que interessante simplesmente descobrirmos uma relação entre Dante e Candeias! (Quanto a detalhes do “como” e “porquê” dessa relação, não vem absolutamente ao caso). Não interessa se o diretor pretendeu realmente fazer uma citação à Divina Comédia ou à mitologia clássica; a coincidência é mais importante, pois nos revela que as duas obras estão no mesmo patamar, são por natureza comparáveis e semelhantes. Essas semelhanças inconscientes entre obras artísticas (sem que haja influência ou citação) é o que, para mim, dá a maior graça e sabor à Arte.

sábado, fevereiro 10, 2007

Poesia e Espiritualidade

A Queda da Casa de Usher (Jean Epstein, 1928)
É fascinante ler os primeiros pensadores do cinema, os pioneiros na teoria cinematográfica; a visão deles é maravilhada como a das crianças, e eles a traduzem com a sensibilidade dos poetas. O prazer que eles proporcionam ao estudante de cinema é inversamente proporcional à náusea provocada pelos textos e pela abordagem dos intelectuais da semiótica cinematográfica.

Os pioneiros não tinham método ou eficácia científica? Eles mal sabiam o que estavam fazendo e do que estavam falando? Isso não interessa! A arte não deve ser tão submetida ao jugo da “ciência” como o fazem certas linhas de pesquisa bastante famosas e queridinhas da segunda metade do século XX. Argumento final: a poesia dos primeiros teóricos do cinema (Canudo, Delluc, Dulac, Gance, Epstein) está mais próxima da poesia do próprio cinema (sendo assim mais eficaz a compreendê-la e explicá-la) do que as taras, os fetiches racionalizantes dos semióticos.

Eu troco fácil todos os volumes de estudos “científicos” de cinema por esta única frase de Abel Gance: O cinema é a música da luz.

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Reproduzo a seguir um trecho de O Cinema ou o Homem Imaginário, em que Edgar Morin cita Jean Epstein:

O cinema, ao reencontrar a sobreposição mais ou menos exata da percepção prática e da visão mágica (...), opera uma ressurreição da visão primitiva do mundo. O cinema apela, permite, tolera e inscreve o fantástico no real. De tal modo ele renova, como muito bem diz Epstein, o espetáculo da natureza, que “o homem nele reencontra algo da sua infância espiritual, do antigo frescor da sua sensibilidade e do seu pensamento, dos primitivos choques de surpresa que provocaram e dirigiram a sua compreensão do mundo (...) A explicação que primeiro se impõe ao espectador é fruto da velha ordem animista e mística”.

Conecto o parágrafo acima com os abaixos, de Andrei Tarkovski em Esculpir o Tempo – fazendo coro com o lado espiritual do cinema:

O que hoje passa por arte é, em sua maior parte, mentira, pois é uma falácia supor que o método pode tornar-se o significado e o objetivo da arte. Não obstante, a maior parte dos artistas contemporâneos passa seu tempo em exibições auto-complacentes de método.

A questão da vanguarda é peculiar ao século XX, à época em que a arte vem progressivamente perdendo sua espiritualidade. (...) A opinião corrente é a de que esta situação reflete a “desespiritualização” da sociedade moderna, um diagnóstico com o qual, a nível de simples constatação da tragédia, concordo plenamente: trata-se mesmo de um reflexo da atual situação. A arte, porém, não deve apenas refletir, mas também transcender (...) (Grifo meu)

Grande e pobre Tarkovski! Quem é que hoje acredita na transcendência?

É preciso coragem para defender uma posição dessas em nossa época. Digo isso, porque, em todos os meus anos de estudos, dentro e fora da universidade, não conheci pessoalmente NINGUÉM que assumisse tal postura. Eis o caminho da nova revolução: trazer de volta o espiritual para o seio do material, equilibrando-o. Essa revolução é tão necessária quanto aquela que veio trazendo, desde o Iluminismo (e principalmente durante o século XX), o materialismo racional e formalista. Nos meios “inteligentes”, a visão de mundo racional e científica tornou-se dogma. É preciso, então, combatê-lo com a mesma força e medida com que se combateu (e se continua combatendo) o dogmatismo religioso-espiritualista.

É “batata” que filmes metalingüísticos, ou do tipo “mundo cão” (vide as obras de Cláudio Assis), caiam como luvas nas graças dos apreciadores “inteligentes” de cinema; enquanto películas mais sutis como “A Oitava Cor do Arco-Íris” amargam prejuízo e esquecimento. Cineastas como Steven Spielberg e Walter Salles até são elogiados, mas geralmente por seus métodos, criticando-se neles o “sentimentalismo” e a “ingenuidade”. Quantas vezes já não vi críticas de filmes apontarem o final “edificante” como um defeito, deslize ou compromisso mercadológico...

Há algo de podre no reino da Dinamarca.


A queda da Casa de Usher (Jean Epstein, 1928)

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Rimas

Stalker (Andrei Tarkovski, 1979)


Andrei Tarkovski, em Esculpir o Tempo:

Nenhuma mise en scène tem o direito de se repetir, da mesma forma que duas personalidades jamais serão idênticas. Assim que uma mise en scène transformar-se num signo, num clichê, num conceito (por mais originais que possam ser), a coisa toda – personagens, situações, psicologia – torna-se falsa e artificial.

Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa), em O Guardador de Rebanhos:

Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior

Olho e comovo-me,
Comovo-me como água corre quando o chão é inclinado,
E a minha poesia é natural como o levantar-se vento...

“Simplicidade divina”... Não é a mesma que Andrei Tarkovski busca em seus filmes? E a naturalidade comovente da poesia, não é a mesma presente em cenas que focalizam bem de perto a natureza em Solaris e Stalker, por exemplo?

O artista que se propõe a um olhar simples e comovido das coisas não pode desenvolver um método estético muito elaborado e demasiado rígido (o “exagero consciente” de que fala Valéry, citado pelo cineasta russo e reproduzido por nós no texto de ontem). O método, a forma estilística deve ser apenas aquela necessária, adequada e coerente à visão de mundo e aos conteúdos que o artista almeja tratar. Assim, para uma natureza simples, casual e comovente, só mesmo uma estética simples, casual e comovente.

Caeiro e Tarkovski são grandes artistas, pois ambos unem em suas obras “a teoria e a prática, através da perseguição coerente e uniforme de um só fim” (Tarkovski, a respeito de Robert Bresson).

terça-feira, fevereiro 06, 2007

O Tao de Tarkovski

O Sacrifício (1986)

Ontem falei da lógica do pensamento mágico / mítico e da sua influência na estética da poesia e do cinema, citando como base as idéias de Edgar Morin na obra capital O Cinema Ou O Homem Imaginário. Hoje chamo ao microfone do Sombras Elétricas o grande cineasta russo Andrei Tarkovski, um dos meus “filmmakers” prediletos. O livro Esculpir O Tempo é, ao mesmo tempo, autobiografia, ensaio estético, confissão... enfim, é o coração, a mente, a vida e a obra de uma grande artista desnudados por ele mesmo.

Cito alguns trechos onde Tarkovski compartilha das visões e das idéias tratadas ontem, que eu acredito estarem na base da grande poesia, do grande cinema e da Arte como um todo.

Voltemos, porém, ao nosso tema: o que me agrada extraordinariamente no cinema são as articulações poéticas, a lógica da poesia. Parecem-me perfeitamente adequadas ao potencial do cinema enquanto a mais verdadeira e poética das formas de arte. Estou por certo muito mais à vontade com elas do que com a dramaturgia tradicional, que une imagens através de um desenvolvimento linear e lógico do enredo.
(...)
O material cinematográfico, porém, pode ser combinado de outra forma, cuja característica principal é permitir que se exponha a lógica do pensamento de uma pessoa. (...) A origem e o desenvolvimento do pensamento estão sujeitos a leis próprias e às vezes exigem formas de expressão muito diferentes dos padrões de especulação lógica. Na minha opinião, o raciocínio poético está mais próximo das leis através das quais se desenvolve o pensamento e, portanto, mais próximo da própria vida, do que a lógica da dramaturgia tradicional.
(...)
Quando falo de poesia, não penso nela como gênero. A poesia é uma consciência do mundo, uma forma específica de relacionamento com a realidade. Assim, a poesia torna-se uma filosofia que conduz o homem ao longo de toda a sua vida.
(...) Pensemos em Mandelstam, em Pasternak, Chaplin, Dovjenko, Mizoguchi, para nos darmos conta da imensa força emocional dessas figuras sublimes que pairam altíssimo sobre a terra, e nas quais o artista aparece não como um mero explorador da vida, mas como alguém que cria incalculáveis tesouros espirituais e aquela beleza especial que pertence apenas à poesia. Tal artista é capaz de perceber as características que regem a organização poética da existência. Ele é capaz de ir além dos limites da lógica linear, para poder exprimir a verdade e a complexidade profundas das ligações imponderáveis e dos fenômenos ocultos da vida. (...) Um artista pode alcançar a ilusão de uma realidade exterior, e obter efeitos cuja naturalidade os faça em tudo semelhantes à vida, mas isto será ainda muito diferente de examinar a vida que está sob a sua superfície.


Eis a explicação para o cinema “meditativo” que Tarkovski pratica. A fotografia e a montagem, em seus filmes, não estão meramente condicionadas à elucidação de uma narrativa. Tarkovski gosta de olhar, contemplar longamente as coisas, e estabelecer entre elas relações que intuímos serem bem peculiares ao seu espírito – ou ao espírito de todos nós.

É um cinema filosófico, mas desprovido por completo daquele racionalismo preponderante na filosofia ocidental. Tarkovski não cria tratados filosóficos; apenas ensaios, meditações, ou simplesmente poemas. O olhar e a filosofia do autor de Andrei Rublev estão mais próximos do pensamento oriental: os filmes de Tarkovski parecem muitas vezes profundamente taoístas. O Tao de Tarkovski: essa é a idéia.

Eis a prova:

Paul Valéry talvez estivesse pensando em Bresson quando escreveu: “A única maneira de alcançar a perfeição é evitar tudo que possa levar a um exagero consciente”. Aparentemente, nada além da observação simples e despretensiosa da vida. O princípio tem algo em comum com a arte Zen, na qual, da forma como a percebemos, a exata observação da vida transforma-se paradoxalmente em sublimes imagens artísticas. (...) E, quanto à poesia do cinema, Bresson, melhor que qualquer outro, uniu em sua obra a teoria e a prática, através da perseguição coerente e uniforme de um só fim.

Preciso dizer mais alguma coisa? Por hoje é só, pessoal.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

O Homem Imaginário

Lilian Gish em Way Down East
O pensamento mítico trabalha com um raciocínio analógico. Ele busca as eternas correspondências entre todas as coisas. Uma visão de mundo com essa base pode ser encontrada nas sociedades “primitivas”, na cultura milenar do extremo Oriente, nas crianças de todas as épocas e lugares, assim como em certas psicopatologias e também nos processos mentais do artista ao compor sua obra (especialmente o poeta). Naturalmente, esse pensamento está muito longe do Racionalismo Causal que organiza nossas vidas na sociedade industrializada.

A natureza do mito, estudada em Antropologia por Joseph Campbell e em Psicologia por C. G. Jung, corresponde à natureza da magia e do pensamento mágico, estudados por Edgar Morin a propósito de descobrir a natureza mais essencial do Cinema (no livro O cinema ou o homem imaginário).

O pensamento mágico é lançado por um movimento de projeções e de identificações. Projetamo-nos (os mais diversos elementos de nossa subjetividade) nas coisas, ao mesmo tempo que nos identificamos com elas (ou seja, enxergamos nelas elementos que correspondem aos de nossa própria subjetividade). A projeção é um movimento de dentro para fora (do interior ao exterior), enquanto a identificação é um movimento de fora para dentro (do exterior ao interior).

A esses movimentos se ligam, numa ampla orquestração dialética, o que Edgar Morin chama de Antropomorfismo (a humanização das coisas, dar ao universo características da subjetividade humana) e o que o autor define como Cosmomorfismo (a coisificação do homem, isto é, enxergar o homem e suas questões subjetivas como aspectos particulares de uma natureza que é, na verdade, universal).

A figura de linguagem conhecida como metáfora (um procedimento estilístico que traduz todo um processo de pensamento e uma visão de mundo) e o seu ato de criação são carregados desse movimento duplo de subjetivar a objetividade (Antropomorfismo) e objetivar a subjetividade (Cosmomorfismo). Por exemplo, o fogo de que fala Camões (“Amor é fogo que arde sem se ver”) transforma-se em sentimento amoroso (Antropomorfismo) tanto quanto o sentimento amoroso se transforma em fogo (Cosmomorfismo).

Transcrevo dois trechos elucidativos de O Cinema Ou O Homem Imaginário:

Homens cosmomórficos e objetos antropomórficos são função uns dos outros, tornando-se uns símbolos dos outros, segundo a reciprocidade do microcosmo e do macrocosmo. Sobre um pedaço de gelo à deriva é levada Lílian Gish, a abandonada, no degelo do rio (“Way Down East”, D. W. Griffith, 1920), “misturando-se intimamente o drama humano com o drama dos elementos, cuja força cega adquiria aspecto de personagem de tragédia cinematográfica”. Assim se torna a heroína uma coisa à deriva. Assim o degelo se torna ator.
(...) Esta incessante conversão da alma das coisas nas coisas da alma vem corresponder, por outro lado, à natureza profunda do filme de ficção, em que os processos subjetivos imaginários se concretizam em coisas – acontecimentos, objetos – que os espectadores, por sua vez, reconvertem em subjetividade. (cap. III)

Sartre soube notar que a emoção se pode converter, por si própria, em magia. Não há exaltação, lirismo ou impulso que não tome, ao manifestar-se, uma cor antropo-cosmomórfica. O lirismo, como nos mostra a poesia, serve-se naturalmente das mesmas vias e linguagem que a magia. A subjetividade extrema realiza-se, bruscamente, em magia extrema. Da mesma forma, o cúmulo da visão subjetiva é a alucinação – que a objetiva. (cap. IV)

O processo de que fala o autor, comum à poesia literária e também ao cinema, ocorreria mais ou menos da seguinte maneira: o artista deseja expressar um certo conteúdo subjetivo abstrato: por exemplo, o caráter intrépido, irreversível, transformador e novo do movimento revolucionário – assim como o entusiasmo que ele carrega e desperta; como fazer isso? Através de um mero discurso? Mas aí já não seria arte. A arte envolve sempre um procedimento estético, ou seja, a objetivação de um conteúdo subjetivo abstrato numa forma concreta que melhor lhe expresse e comunique ao espectador (ou leitor) o seu significado. Essa forma concreta é própria do mito, que encarna e representa os valores a serem transmitidos. O processo de transformação do subjetivo-abstrato no objetivo-concreto é o que também ocorre na magia. Tomando o exemplo acima citado, a solução encontrada por Pudovkin foi metaforizar os movimentos revolucionários através dos movimentos das geleiras que vão derretendo na primavera e correndo, em blocos, rio abaixo (“A Mãe”, 1926).

O pensamento mágico/mítico/simbólico está na raiz de todas as culturas humanas. Em nossa sociedade materialista e racional, ele sobrevive na arte (ainda bem!).

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Aula de Cinema


Das entrevistas de Truffaut com Hitchcock:

Truffaut: É, é isso; nos últimos anos do cinema mudo, os grandes cineastas, e até mesmo a produção como um todo, haviam chegado a uma certa perfeição, que foi comprometida, pode-se pensar, pela invenção do falado. Talvez se possa afirmar que a mediocridade voltou com força no início do falado, quando na verdade ela estava sendo eliminada aos poucos, no final do cinema mudo, graças à distância crescente entre a qualidade do trabalho dos bons diretores e a insuficiência de expressão dos outros diretores.

Hitchcock: Estou totalmente de acordo e, a meu ver, isso é verdade ainda hoje, pois na maioria dos filmes há pouquíssimo cinema; na maioria das vezes, chamo a isso de “fotografia de pessoas que falam”. Quando se conta uma história no cinema, só se deveria recorrer ao diálogo quando fosse impossível fazer de outro jeito. Sempre me esforço em procurar primeiro a maneira cinematográfica de contar uma história, pela sucessão dos planos e pelos fragmentos de filme postos entre eles. O que se pode deplorar é o seguinte: com o surgimento do falado, o cinema se imobilizou abruptamente numa forma teatral. A mobilidade da câmera não muda nada nisso. Ainda que a câmera se desloque ao longo de uma calçada, é sempre teatro. O resultado é a perda do estilo cinematográfico, e também a perda de toda a fantasia.
Quando se escreve um filme, é indispensável separar nitidamente os elementos de diálogo e os elementos visuais e, sempre que possível, dar preferência ao visual e não ao diálogo.

(...)

Sobre Janela Indiscreta:

Truffaut: Desse ponto de vista, a exposição do filme é excelente. Inicia-se com o pátio adormecido, depois passamos para o rosto de James Stewart suando, pela perna engessada, depois por uma mesa sobre a qual se vêem a máquina fotográfica quebrada e uma pilha de revistas e, na parede, fotos de carros de corrida capotando. Unicamente com esse movimento de câmera somos informados de onde estamos, quem é o personagem, qual é a sua profissão e o que aconteceu com ele.

Hitchcock: É a utilização dos meios oferecidos pelo cinema para contar uma história. Isso me interessa mais do que se alguém perguntasse a Stewart: “Como você quebrou a perna?”. Stewart responderia: “Estava fotografando uma corrida de automóveis, uma roda se soltou e veio bater em mim”. Não é? Seria uma cena banal. Para mim, o pecado capital de um roteirista é, quando se discute uma dificuldade, escamotear o problema dizendo: “Justificaremos isso com uma linha de diálogo”. O diálogo deve ser um ruído entre outros, um ruído que sai da boca dos personagens cujos atos e olhares contam uma história visual.


O poeta Carlos Drummond de Andrade diz:

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
trouxeste a chave? (Procura da Poesia)

Penetra surdamente no reino das imagens... eis uma lição aos cineastas. Por mais complexas que sejam as diferentes formas de arte, o trabalho com o meio de expressão específico e mais essencial de cada uma é o que produz as obras mais comoventes e significativas.

No cinema, a maior delícia que se tem ao ver um filme é dada pela fotogenia única das imagens em movimento, organizadas numa composição que seja a mais significativa de acordo com as idéias que essas mesmas imagens procuram transmitir. A cena acima referida de “Janela Indiscreta” é um dos melhores exemplos até hoje.

O livro das entrevistas de Hitchcock a Truffaut vale por um curso completo de cinema.