O Entusiasmo da
Influência
O crédito que
teremos de conceder ao Tarantino de Django
Livre (“Django Unchained”, EUA, 2012) será o de explorar, com poucas ou
nenhumas cerimônias, a tão simbólica questão racial em seu país. O filme é uma
colagem – como, aliás, tudo na obra do diretor – de todos os elementos
históricos, sociais e culturais que definem e representam o regime
escravocrata, tal como ocorreu nos Estados Unidos até o século XIX (e não muito
diferentemente do que houve no Brasil): o patriarcalismo, o latifúndio, a
política do favor (o que inclui a arquetípica figura do agregado), a
complexidade e paradoxo das relações de interdependência entre senhores e
escravos (incluindo as afetivas); e também, é claro, a crueldade, o sadismo, o
preconceito, a barbárie e o horror intrínsecos a esse sistema de produção.
Mas... Novamente,
o cinema de Tarantino é melhor dotado de boas intenções do que de realizações.
O racismo, em Django Livre, não
recebe aquele tratamento de ironia e sarcasmo sutis que fazem a classe de um
Samuel Fuller. Este alfineta. O diretor de Bastardos
Inglórios (2009) apunhala. E não pensemos que esse “apunhalar” se trate do
desbunde de um “rebelde”, de um iconoclasta. É apenas mau gosto mesmo. Não
precisamos entrar na polêmica encabeçada por Spike Lee, ao criticar o excesso
de “niger” que pipoca nos diálogos do filme, para reconhecermos que a atitude cinematográfica
de Tarantino é antes pueril que irreverente. Aqui, como em todas as suas
produções – à exceção relativa de Cães de
Aluguel (1992) e Pulp Fiction
(1995), as duas primeiras realizações do diretor – impera uma lógica do
exagero.
Uma lógica do
caricato, de um efeito fácil de encantamento e choque, através da violência
explícita, dos diálogos tensos, dos personagens típicos, da mise en scène “vintage”, da trilha
sonora pop, da profusão prolixa de referências... Eis o virtuosismo mal-equilibrado, grotesco, de Quentin
Tarantino, que arrebata facilmente admiradores fidelíssimos – e intransigentes.
Algum deles poderia, olhos brilhantes de entusiasmo, falar na pós-modernidade
do cinema tarantinesco, na sua construção desconstrutivista a partir de
múltiplos discursos, fontes, influências, que se vão imiscuindo e consumindo satiricamente
uns aos outros ad infinitum. Eis o
pós-moderno: ratos de laboratório sobre uma esteira rolante que nada mais é do
que um emaranhado indissolúvel de discursos, que se gastam e desgastam em um
moto-perpétuo de referências e auto-referências...
Contudo, toda
essa fala bonita ainda não é suficiente para fazer apagar dos filmes de
Tarantino uma incômoda impressão de leviandade (noves fora, como já dissemos,
as nobres intenções, que, no presente caso, giram em torno da questão racial
nos EUA). Um cinéfilo tarantinesco poderia ainda replicar: “mas essa
leviandade, essa lógica do exagero e do caricato de que você fala, são
características do cinema de exploitation,
que Quentin Tarantino recupera e homenageia magistralmente...” Parabéns para
ele! No entanto, este blogueiro que vos fala só conseguiria fazer coro junto da
torcida tarantinesca se visse que o diretor tem realmente algo a acrescentar de
seu. Não tem. O que é que ele fez ou
faz, que gente como Sérgio Leone, Samuel Fuller ou Sam Peckinpah não tenham
feito antes e melhor?
Sinceramente,
não achamos que pega bem temperar os conteúdos dignos desses grandes cineastas
com o molho do exploitation. Nada
contra este último, mas (com o perdão do clichê) uma coisa é uma coisa, outra
coisa é outra coisa. Aqui, mais uma vez, faz-se ouvir o fã: “mas a mistura
entre os registros ‘alto’ e ‘baixo’ é aspecto fundamental da modernidade nas
artes e na literatura; Tarantino é genial por levar isso ao cinema. E, quanto
ao ‘acrescentar de seu’, a
pós-modernidade rejeita veementemente essa noção demasiadamente ‘romântica’ de
autoria...” Parabéns agora para você, seguidor fiel! Quase me convenceu... Mas,
pensando melhor, há outros cineastas que fazem esse mesmo tipo de cinema
moderno e pós-moderno, e parecem mais equilibrados do que o autor de Kill Bill (1999). O próprio Sérgio Leone
já serve de exemplo.
Equilíbrio. Eis
a maturidade que falta a Tarantino. Seu cinema parece que será eternamente um
cinema de “gibi”, de “pulp fiction”, no pior sentido do termo... Mas, até aí,
tudo bem. Não vamos cair no pecado anti-moderno de hierarquizar os gêneros (ou
as suas misturas). Mas coloquemos as coisas em perspectiva e pensemos que o
papel de Quentin Tarantino na história do cinema norte-americano será antes o
de um Russ Meyer, que o de um Sérgio Leone, ou Samuel Fuller, ou Sam Packinpah.
Para encerrar, uma aposta: após atacar os gêneros (e sub-gêneros) policial, terror,
artes marciais, 2ª Guerra Mundial e western,
falta o quê para o cineasta explorar?
Uma ficção científica à lá Jack Arnold? Ou uma comédia erótica à lá Tinto
Brass? Fãs, façam suas apostas!
Mas esse "equilíbrio" não é uma questão estética sua, André? E então você já impõe isso antes de ver ao filme, sendo que ele tem outras questões que você deixa de ver, procurando algo seu... Sou um antigo leitor, gosto muito do blog, mas nunca entendi esse seu "desequilíbrio" quando assiste Tarantino...
ResponderExcluirOlá, Raul!
ResponderExcluirValeu pela leitura e pelo apoio! Bem, o equilíbrio estético é uma predileção minha sim. Acho que o trabalho crítico não é ciência no sentido de destrinchar um objeto e descobrir verdades inquestionavelmente objetivas.
É claro que, por outro lado, tem de haver objetividade na análise estética, para se descobrirem os instrumentos artísticos manejados por um filme (caso contrário, a coisa já não será resenha crítica, mas o velho "achismo"...)
Mas acredito que o que um crítico procura, ou deve procurar fazer, é tomar um posicionamento (subjetivo) frente aos elementos estéticos analisados (objetivos). Toda a argumentação (necessária) deve girar em torno dessa meta. Neste sentido, não acho que imponha uma visão de antemão ao filme. Procuro vê-lo com muita atenção, sabendo o que tem a oferecer.
Mesmo assim, a minha escolha e o meu gosto me levam a torcer o nariz para Tarantino. Não acho que terei de, forçosamente, gostar de um filme só porque ele possui uma proposta pertinente e coerente. Preciso ver se essa proposta se encaixa no meu universo de gostos, interesses, visão de mundo, ideologia, etc.
Este é o juízo de gosto, que acho que deve sempre vir junto, dentro do trabalho crítico, com a análise estética, histórica, sociológica, etc (estas sim, sempre objetivas e científicas). Agora, juízo de gosto também não são afirmações categóricas, prontas e impostas. Tudo é uma questão de se argumentar e demonstrar. Neste sentido, dou como exemplos de cineastas que seriam "fonte" para o cinema de Tarantino, porém, mais equilibrados do que ele, os mesmos Fuller (na questão racial), Peckinpah e Leone que citei no texto.
Enfim, espero ter esclarecido algo... Mas estamos aí para trocar ideias! Sempre! Valeu!
Ah sim, isso concordamos plenamente, a questão do gosto só levaria a debates inúteis. Entretanto, o que me soa estranho é realmente a parte que deveria ser objetiva do argumento, essa questão pessoal do "equilíbrio". É como quando dizem que o Woody Allen é sempre o mesmo personagem, ou seja, essas coisas são absolutamente intencionais, autorais. Não há um motivo para esse "exagero", não faz parte da estética do Tarantino? São inseparáveis, isso é julgar o estilo pessoal, autoral, com uma questão também pessoal. E se o Tarantino já fosse clássico, acho que essas questões nem seriam levantadas... E também muito obrigado pelas recomendações!
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