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sexta-feira, julho 02, 2010

Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo


A cor local é uma maldição no cinema brasileiro contemporâneo, o qual um dia atingirá – se Deus quiser – o estado de revolução e maturidade que a nossa literatura chegou com Machado de Assis, há mais de cem anos. Enquanto não aparece um gênio que questione a coerção que nossos filmes sofrem de trabalhar quase que exclusivamente as coisas “nacionais” – quem sabe ironicamente, como fez o bruxo – contentamo-nos com aqueles que sabem matizar em harmonia as questões que movem nossa alma coletiva e aquelas que se agitam dentro de cada um, segundo a história de cada um.

Entenda-se bem: a “cor local” que assola a sétima arte tupiniquim não é aquela que, segundo os românticos do século XIX, constituía nossa identidade nacional. Ou seja, o retrato parcial do Brasil que o cinema atual oferece não é aquele do turista, com belas paisagens, belas mulheres, belas canções; trata-se do oposto: miséria e violência, sobretudo. Sob a marca bem intencionada da denúncia, acabamos muitas vezes aplicando a nós mesmos o estigma perigoso da história única (“single story”: ver a palestra da escritora Chimamanda Adichie, que circula pelo Youtube).

Por isso, são muito bem vindas experimentações do naipe de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009, dir.: Marcelo Gomes e Karim Aïnouz). É difícil fazer um filme pleno de lirismo – o que arrasta, consequentemente, a dimensão individual da experiência, com suas doses de psicologia, filosofia, universalismo – e colocá-lo em perspectiva equilibrada com o estudo do meio – com suas conseqüentes doses de sociologia, política, história, dentre outras particularizações pouco afeitas ao emotivo e ao estético. No fundo, é a intersecção da ficção e do documentário.

Os diretores parecem ter em mente a famosa fala de Godard, a respeito de Jean Rouch: “todo grande filme de ficção tende ao documentário, assim como todo grande filme documentário tende à ficção”. No caso do cinema brasileiro de hoje, em associação com a tendência de que falamos, tais imbricações estão na ordem do dia e resultam em técnica e prática mais do que em meros suspiros de inspiração, conforme diz Carlos Augusto Calil em conferência no festival É Tudo Verdade:

“No cinema contemporâneo brasileiro há uma apropriação do método documental para realizar ficção realista ou hiper-realista, verossímil ou inverossímil – cada um escolha o adjetivo que convier. São baseados em pesquisa de campo, antes exclusiva do documentário, ou em livros de autores que viveram ou presenciaram as experiências relatadas: refiro-me a Drauzio Varella e a Paulo Lins. São, no mínimo, testemunhos reconstituídos, tão ‘verdadeiros’ como It’s All True.” (CALIL, Carlos Augusto. A conquista da conquista do mercado – in O cinema do real. São Paulo, Cosac Naify, 2005 – p.170)

A realização dessa pesquisa de campo torna-se evidente na história do geólogo (sem nome) que viaja pelo sertão nordestino mais remoto para catalogar o terreno no qual será construído um canal de transposição de águas fluviais e, com isso, vai entrando em contato – bastante variado, diga-se de passagem – com a população local. Carregando uma pequena filmadora e uma máquina fotográfica, além do indefectível bloco de notas, ele registra e entrevista pessoas como se estivesse fazendo um documentário no estilo cinema direto.

Com isso, vemos ali o casal de idosos que será desapropriado para a construção do canal, a cidadezinha semi-abandonada que desaparecerá definitivamente sob as águas, a garota de programa com o “olhar triste”, uma outra garota de programa que sonha em encontrar o amor eterno e verdadeiro, as festividades religiosas em Juazeiro do Norte (com direito à estátua de Padre Cícero, cartão postal da região), a feira de Caruaru, a paisagem árida e desolada do sertão, as rodovias, caminhões, postos de gasolina, motéis à beira de estrada, música popular “brega” etc.

Mas tudo isso nos é mostrado do ponto de vista confesso e exclusivo do protagonista, que, por sinal, está sofrendo de amor pela mulher (a “Galega”) que deixou na cidade grande. Desse modo, ao objetivo e documental se associa o subjetivo e ficcional da história individual do personagem que viaja também para fugir do que lhe aperta o coração e que vai narrando ao espectador o que se passou e o que se passa. O lírico perpassa muito bem as duas dimensões: há o poético das realidades documentadas

(como um homem, em determinado momento, que se diverte fazendo cócegas numa criança pequena – a qual se diverte mais ainda) e o poético dos estados de alma do próprio personagem-narrador, que jamais aparece na frente da câmera: o filme inteiro se passa com uma câmera subjetiva e poucas vezes se vê no cinema uma narração verbal e visual em primeira pessoa tão elaborada e natural ao mesmo tempo. O documento e a poesia se tocam como também poucas vezes se vê com verdade e beleza: a prostituta dos olhos tristes não foi apenas “registrada”;

o narrador nos diz que desistiu do programa com ela no caminho para o motel. Quanto àquela que sonha viver um grande amor, foi a única que fez o geólogo esquecer seus problemas durante a viagem – o programa durou 24 horas. Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo não é uma quase obra-prima como o longa anterior de Gomes (Cinema, Aspirinas e Urubus – 2005), mas é mais interessante do que os anteriores de Aïnouz (Madame Satã – 2002; O Céu de Suely – 2006), o que nos deixa bastante curiosos pelas próximas empreitadas dos dois cineastas.

2 comentários:

  1. Gosto muito de "Cinema, Aspirinas e Urubus" e, apesar de não ter visto o brilhantismo que tanto viram em "O Céu de Suely", também gostei dele. Portanto, estou curioso por este.

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  2. Muito bom.

    Confira também outra pérola vinda do Nordeste (Ceará): O GRÃO.

    Estou para escrever sobre ele...

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