Laís Bodanzky é a cineasta com produção mais coerente e mais promissora do cinema brasileiro de hoje. Façamos uma previsão – um tanto quanto temerária, como o são todos os prognósticos: em cinco ou dez anos ela produzirá uma obra-prima que entrará quase que imediatamente para os cânones nacionais. O domínio e uso significativo da linguagem cinematográfica, sempre em função das realidades profundamente humanas que formam o espírito temático dos seus filmes, fazem-se presentes desde o primeiro curta da diretora, intitulado Cartão Vermelho (1994).
Este, assim como o longa mais recente As Melhores Coisas do Mundo (2010), trata do universo adolescente – a melhor e (ou) a pior fase da vida de alguém – com um lirismo de medida exata que é um dos grandes trunfos da cineasta, se não o maior. E o que seria esse lirismo “exato” (adjetivo pouco afeito semanticamente a ser combinado com o substantivo em questão)? É a expressão da subjetividade que, por um lado, não se permite refestelar no lodo dos melodramas folhetinescos (a série de TV Malhação); por outro, sabe evitar as armadilhas da auto-indulgência pretensiosamente “alternativa” – vide Gus Van Sant, particularmente Paranoid Park (2008).
Bodanzky não quer fazer coro nem com a turma dos “populares” nem com a turma dos “geeks”, pois sabe que qualquer rotulação só faz por empobrecer a figura e a experiência humanas. No cinema em geral, a poesia e o ritmo quase musical dos filmes de Bodanzky lembra um pouco aqueles do recém-falecido John Hughes – sendo raríssimo encontrar alguém que se desnude tanto do paternalismo quanto da condescendência ao observar a figura do adolescente. Ou melhor: o desafio é misturar os dois posicionamentos na atitude fenomenologicamente franca de entrar em contato com o outro (na qual não se pode apagar nem o “eu” nem o “outro”).
Sentimos que a narrativa – em Bodanzky e em Hughes – é elaborada pelo artista, como o fazem grandes escritores. Mas toda a voz é dada diretamente aos personagens, com seu linguajar e sua visão de mundo. O artista organiza a história, mas não está lá para falar em nome de ninguém. Por isso, é muito interessante comparar este As Melhores Coisas do Mundo com o clássico O Clube dos Cinco (“The Breakfast Club”, 1985). A epígrafe de David Bowie que Hughes usou para o seu filme também poderia ser aplicada ao da diretora brasileira:
“And these children that you spit on as they try to change their worlds are immune to your consultations. They’re quite aware of what they’re going through…” (E essas crianças, nas quais você cospe enquanto elas tentam mudar o mundo delas, são imunes aos seus conselhos. Elas sabem muito bem pelo que estão passando...)
Que todos os professores e pedagogos se lembrem disso ao ver tais filmes; mais ainda quando forem exibi-los aos seus alunos. A poesia cinematográfica de Bodanzky, toda voltada à expressão lírica da subjetividade do seu personagem, já se apresenta muito contundente antes que a primeira imagem do filme apareça: com a tela escura, ouvimos o clamor de uma platéia numerosa durante um show de rock and roll; em seguida, a voz do protagonista (o jovem Mano, interpretado por Francisco Miguez) agradece a oportunidade de ter aberto o show de Jimmy Page (lendário guitarrista do Led Zeppelin).
Até então, não há nada que entregue a fantasia. O que o espectador ouve poderia ser muito bem real – e é real, para todos os efeitos que importam, é real para o personagem em cuja alma mergulhamos tout d’abord graças à imensa tela preta que cega nossos olhos para as realidades externas, mas que os abre para o universo interior do sujeito. O filme começa com uma meditação. A verdade subjetiva é anterior a qualquer outra. Isso tem a força de quase uma subversão, uma heresia para os valores éticos / estéticos que (pre)dominam no cinema brasileiro.
Eis outro valor diferencial que se pode reputar ao cinema de Laís Bodanzky: ela está pouco interessada em elaborar tratados sociológicos que “expliquem” ou “mudem” o Brasil. É claro que um filme como As Melhores Coisas do Mundo pode ser usado e citado por cientistas sociais, psicólogos e principalmente pedagogos (infelizmente). Mas prestemos atenção ao filme em si mesmo, para variar, enquanto elaboração de um texto audiovisual de características estéticas: trata-se de um drama bastante lírico; é isso o que ele é. O cinema brasileiro só atingirá graus mais elevados de maturidade quanto mais fizermos filmes e refletirmos sobre eles enquanto... filmes! Nada mais simples, não?
Nossos cineastas ainda precisam abrir mão (mesmo que só um pouco) de um complexo colonial do qual derivou a “missão” de nossa literatura romântica (no dizer de Antônio Cândido), retomada (ainda que às avessas) pelos modernistas, e que continua exercendo seus sopros em diversas manifestações artístico-culturais desta nação. O filme novo de Marcelo Gomes, Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, representa um passo importante no caminho que busca menos historicismo, menos sociologia, e mais humanismo, mais universalização (palavras com certeza odiadas por muitos intelectuais de linhas excessivamente prestigiadas).
Ou melhor: o verdadeiro caminho a ser seguido é o da mistura e equilíbrio entre as duas tendências. E Laís Bodanzky parece seguir também cada vez melhor tal caminho a cada filme novo. O work in progress destes dois cineastas mostra que o indivíduo não é escravo do “contexto” histórico-social, assim como não se podem negar absolutamente as influências deste nas experiências humanas. Mas voltemos à cena inicial de As Melhores Coisas do Mundo, que estávamos discutindo. Quando a lente da câmera se abre, vemos o jovem Ermano em seu quarto, tocando violão diante do pôster de uma grande apresentação musical, vista do ponto de vista de quem está no palco.
Somos entregues à realidade objetiva, mas a força lírica do subjetivo ainda persiste, pois vemos os elementos objetivos (o pôster e o violão) que disparam a fantasia, crescendo em força poética junto com ela. São imagens simples, mas muito ricas. Com certeza, é muito mais sábio do que usar algum efeito especial qualquer. E a cena continua, numa das melhores introduções de filmes nacionais dos últimos tempos: vemos Mano correr pelo quarto, fazer movimentos coreografados e jogar-se ao chão como se estivesse em cima de um palco, numa brincadeira bela e tipicamente adolescente.
E ele faz tudo isso, enquanto o som que o espectador ouve não é o ruído diegético do cenário em questão, mas a melodia alta e rasgada de uma guitarra elétrica. Ouvimos o que o personagem “ouve” em seu interior. Eis a sabedoria: Bodanzky coloca logo de começo o espectador na posição subjetiva do personagem, fazendo-o se identificar com ele, apresentando que a proposta do filme não é meramente “falar sobre” adolescentes. Por outro lado, o filme não cultiva a fantasia estética de ter sido rodado por um adolescente. Na fenomenologia de Bodanzky, o filme é o adolescente. Simples assim.
E isso é seguramente muito mais interessante do que a indiscreta câmera-olho que fica espiando e seguindo pelas costas, como um voyeur, os adolescentes do Elefante (2003) de Van Sant. O cinema de Laís Bodanzky é interessante porque ela não procura fazer “filmes para festivais”; seus filmes não procuram ser esquisitices pitorescas para mostrar pessoas esquisitas e pitorescas; a diretora não faz “firulas” com a linguagem cinematográfica. Seus recursos estilísticos, nas mãos de qualquer cineasta desprovido de senso poético, virariam clichês, virariam o cinema-publicidade de Besouro (2009, de João Daniel Tikhomiroff), ou o cinema-folhetim de Olga (2004, de Jayme Monjardim).
E é muito nítido o desenvolvimento da diretora desde O Bicho de Sete Cabeças (2001 – que já trabalhava “questões sociais” sem pretensão de fazer tese, sem aquele naturalismo do tipo “mundo cão”), passando pelo sublime Chega de Saudade (2007 – talvez o filme brasileiro mais humano da década). Quanto às Melhores Coisas do Mundo, ainda há uma ou duas coisas interessantes a se comentar. Falei anteriormente do ritmo “musical” do filme. É comum e muito interessante, em Bodanzky, a presença de música (geralmente, uma canção) em alguns momentos líricos fundamentais, sem exageros nem banalizações.
Neste, o destaque vai para a belíssima “Something”, de George Harrison. Cabe aqui mais uma ligação com John Hughes, que coloca como que “videoclipes” muito poéticos dentro de seus filmes: a propósito, já que falamos dos Beatles, quem da geração anos 80 não se lembrará do “Twist and Shout” de Ferris Bueller em Curtindo a Vida Adoidado (“Ferris Bueller’s Day Off”, 1986)? Outro momento interessante, que remete, em princípio e coincidentemente, a uma cena do recente 500 Dias Com Ela (“500 Days of Summer”, 2009, de Marc Webb), é quando Mano sai pedalando pelas ruas numa alegria explosiva e cheia de devaneio, após transar pela primeira vez com a garota por quem é apaixonado.
Nesta cena, há um plano no qual a câmera de Bodanzky acompanha a bicicleta de Mano pela lateral, num enquadramento em que as rodas desta ficam quase alinhadas ao limite inferior do quadro, enquanto vemos ao fundo a paisagem da selva urbana de São Paulo, criando um belo efeito de que o garoto pedala em pleno ar, num devaneio de amor... Alain Resnais fez algo semelhante em Ervas Daninhas (“Les Herbes Folles”, 2009), no primeiro plano, em câmera lenta, de uma bolsa agitando-se em pleno ar, logo após ter sido levada por um ladrão sobre patins (em francês, voleur pode significar tanto ladrão quanto “voador”).
E já que falamos na paisagem paulistana, é interessante notar que a cidade aparece nos filmes da cineasta não através dos manjados planos gerais, nem através de um ou outro típico cartão postal; apenas vislumbramos São Paulo através de pequenos sinais: os ônibus coletivos, o detalhe de um ou outro prédio ou avenida (com a exceção da belíssima vista da Praça do Pôr do Sol, presente no filme que estamos discutindo). A cidade fica assim mais sugerida do que traspassada por uma câmera onívora. E não há qualquer embelezamento “cosmético” nas imagens – truque fácil de publicidade muito usado pelo frívolo Cidade de Plástico (2009, de Nelson Yu Lik-Wai).
Por fim, chamemos a atenção para a estrutura do roteiro, que gira em torno de acontecimentos cotidianos dos personagens durante certo período de tempo. Claro que alguns desses acontecimentos serão transformadores, mas o filme se encerra com uma impressão comovente de que o que vimos foi nada mais do que um pedaço de vida. Não se trata de dramas ou tragédias raras que parecem tomar lugar num excerto de tempo colocado entre parêntesis, momentaneamente paralisado e arrancado da linha temporal. Tudo o que testemunhamos encontra-se plenamente inserido dentro de um fluxo de vida, de mundo e de tempo do qual se extrai com justeza a grande poesia.
Este, assim como o longa mais recente As Melhores Coisas do Mundo (2010), trata do universo adolescente – a melhor e (ou) a pior fase da vida de alguém – com um lirismo de medida exata que é um dos grandes trunfos da cineasta, se não o maior. E o que seria esse lirismo “exato” (adjetivo pouco afeito semanticamente a ser combinado com o substantivo em questão)? É a expressão da subjetividade que, por um lado, não se permite refestelar no lodo dos melodramas folhetinescos (a série de TV Malhação); por outro, sabe evitar as armadilhas da auto-indulgência pretensiosamente “alternativa” – vide Gus Van Sant, particularmente Paranoid Park (2008).
Bodanzky não quer fazer coro nem com a turma dos “populares” nem com a turma dos “geeks”, pois sabe que qualquer rotulação só faz por empobrecer a figura e a experiência humanas. No cinema em geral, a poesia e o ritmo quase musical dos filmes de Bodanzky lembra um pouco aqueles do recém-falecido John Hughes – sendo raríssimo encontrar alguém que se desnude tanto do paternalismo quanto da condescendência ao observar a figura do adolescente. Ou melhor: o desafio é misturar os dois posicionamentos na atitude fenomenologicamente franca de entrar em contato com o outro (na qual não se pode apagar nem o “eu” nem o “outro”).
Sentimos que a narrativa – em Bodanzky e em Hughes – é elaborada pelo artista, como o fazem grandes escritores. Mas toda a voz é dada diretamente aos personagens, com seu linguajar e sua visão de mundo. O artista organiza a história, mas não está lá para falar em nome de ninguém. Por isso, é muito interessante comparar este As Melhores Coisas do Mundo com o clássico O Clube dos Cinco (“The Breakfast Club”, 1985). A epígrafe de David Bowie que Hughes usou para o seu filme também poderia ser aplicada ao da diretora brasileira:
“And these children that you spit on as they try to change their worlds are immune to your consultations. They’re quite aware of what they’re going through…” (E essas crianças, nas quais você cospe enquanto elas tentam mudar o mundo delas, são imunes aos seus conselhos. Elas sabem muito bem pelo que estão passando...)
Que todos os professores e pedagogos se lembrem disso ao ver tais filmes; mais ainda quando forem exibi-los aos seus alunos. A poesia cinematográfica de Bodanzky, toda voltada à expressão lírica da subjetividade do seu personagem, já se apresenta muito contundente antes que a primeira imagem do filme apareça: com a tela escura, ouvimos o clamor de uma platéia numerosa durante um show de rock and roll; em seguida, a voz do protagonista (o jovem Mano, interpretado por Francisco Miguez) agradece a oportunidade de ter aberto o show de Jimmy Page (lendário guitarrista do Led Zeppelin).
Até então, não há nada que entregue a fantasia. O que o espectador ouve poderia ser muito bem real – e é real, para todos os efeitos que importam, é real para o personagem em cuja alma mergulhamos tout d’abord graças à imensa tela preta que cega nossos olhos para as realidades externas, mas que os abre para o universo interior do sujeito. O filme começa com uma meditação. A verdade subjetiva é anterior a qualquer outra. Isso tem a força de quase uma subversão, uma heresia para os valores éticos / estéticos que (pre)dominam no cinema brasileiro.
Eis outro valor diferencial que se pode reputar ao cinema de Laís Bodanzky: ela está pouco interessada em elaborar tratados sociológicos que “expliquem” ou “mudem” o Brasil. É claro que um filme como As Melhores Coisas do Mundo pode ser usado e citado por cientistas sociais, psicólogos e principalmente pedagogos (infelizmente). Mas prestemos atenção ao filme em si mesmo, para variar, enquanto elaboração de um texto audiovisual de características estéticas: trata-se de um drama bastante lírico; é isso o que ele é. O cinema brasileiro só atingirá graus mais elevados de maturidade quanto mais fizermos filmes e refletirmos sobre eles enquanto... filmes! Nada mais simples, não?
Nossos cineastas ainda precisam abrir mão (mesmo que só um pouco) de um complexo colonial do qual derivou a “missão” de nossa literatura romântica (no dizer de Antônio Cândido), retomada (ainda que às avessas) pelos modernistas, e que continua exercendo seus sopros em diversas manifestações artístico-culturais desta nação. O filme novo de Marcelo Gomes, Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, representa um passo importante no caminho que busca menos historicismo, menos sociologia, e mais humanismo, mais universalização (palavras com certeza odiadas por muitos intelectuais de linhas excessivamente prestigiadas).
Ou melhor: o verdadeiro caminho a ser seguido é o da mistura e equilíbrio entre as duas tendências. E Laís Bodanzky parece seguir também cada vez melhor tal caminho a cada filme novo. O work in progress destes dois cineastas mostra que o indivíduo não é escravo do “contexto” histórico-social, assim como não se podem negar absolutamente as influências deste nas experiências humanas. Mas voltemos à cena inicial de As Melhores Coisas do Mundo, que estávamos discutindo. Quando a lente da câmera se abre, vemos o jovem Ermano em seu quarto, tocando violão diante do pôster de uma grande apresentação musical, vista do ponto de vista de quem está no palco.
Somos entregues à realidade objetiva, mas a força lírica do subjetivo ainda persiste, pois vemos os elementos objetivos (o pôster e o violão) que disparam a fantasia, crescendo em força poética junto com ela. São imagens simples, mas muito ricas. Com certeza, é muito mais sábio do que usar algum efeito especial qualquer. E a cena continua, numa das melhores introduções de filmes nacionais dos últimos tempos: vemos Mano correr pelo quarto, fazer movimentos coreografados e jogar-se ao chão como se estivesse em cima de um palco, numa brincadeira bela e tipicamente adolescente.
E ele faz tudo isso, enquanto o som que o espectador ouve não é o ruído diegético do cenário em questão, mas a melodia alta e rasgada de uma guitarra elétrica. Ouvimos o que o personagem “ouve” em seu interior. Eis a sabedoria: Bodanzky coloca logo de começo o espectador na posição subjetiva do personagem, fazendo-o se identificar com ele, apresentando que a proposta do filme não é meramente “falar sobre” adolescentes. Por outro lado, o filme não cultiva a fantasia estética de ter sido rodado por um adolescente. Na fenomenologia de Bodanzky, o filme é o adolescente. Simples assim.
E isso é seguramente muito mais interessante do que a indiscreta câmera-olho que fica espiando e seguindo pelas costas, como um voyeur, os adolescentes do Elefante (2003) de Van Sant. O cinema de Laís Bodanzky é interessante porque ela não procura fazer “filmes para festivais”; seus filmes não procuram ser esquisitices pitorescas para mostrar pessoas esquisitas e pitorescas; a diretora não faz “firulas” com a linguagem cinematográfica. Seus recursos estilísticos, nas mãos de qualquer cineasta desprovido de senso poético, virariam clichês, virariam o cinema-publicidade de Besouro (2009, de João Daniel Tikhomiroff), ou o cinema-folhetim de Olga (2004, de Jayme Monjardim).
E é muito nítido o desenvolvimento da diretora desde O Bicho de Sete Cabeças (2001 – que já trabalhava “questões sociais” sem pretensão de fazer tese, sem aquele naturalismo do tipo “mundo cão”), passando pelo sublime Chega de Saudade (2007 – talvez o filme brasileiro mais humano da década). Quanto às Melhores Coisas do Mundo, ainda há uma ou duas coisas interessantes a se comentar. Falei anteriormente do ritmo “musical” do filme. É comum e muito interessante, em Bodanzky, a presença de música (geralmente, uma canção) em alguns momentos líricos fundamentais, sem exageros nem banalizações.
Neste, o destaque vai para a belíssima “Something”, de George Harrison. Cabe aqui mais uma ligação com John Hughes, que coloca como que “videoclipes” muito poéticos dentro de seus filmes: a propósito, já que falamos dos Beatles, quem da geração anos 80 não se lembrará do “Twist and Shout” de Ferris Bueller em Curtindo a Vida Adoidado (“Ferris Bueller’s Day Off”, 1986)? Outro momento interessante, que remete, em princípio e coincidentemente, a uma cena do recente 500 Dias Com Ela (“500 Days of Summer”, 2009, de Marc Webb), é quando Mano sai pedalando pelas ruas numa alegria explosiva e cheia de devaneio, após transar pela primeira vez com a garota por quem é apaixonado.
Nesta cena, há um plano no qual a câmera de Bodanzky acompanha a bicicleta de Mano pela lateral, num enquadramento em que as rodas desta ficam quase alinhadas ao limite inferior do quadro, enquanto vemos ao fundo a paisagem da selva urbana de São Paulo, criando um belo efeito de que o garoto pedala em pleno ar, num devaneio de amor... Alain Resnais fez algo semelhante em Ervas Daninhas (“Les Herbes Folles”, 2009), no primeiro plano, em câmera lenta, de uma bolsa agitando-se em pleno ar, logo após ter sido levada por um ladrão sobre patins (em francês, voleur pode significar tanto ladrão quanto “voador”).
E já que falamos na paisagem paulistana, é interessante notar que a cidade aparece nos filmes da cineasta não através dos manjados planos gerais, nem através de um ou outro típico cartão postal; apenas vislumbramos São Paulo através de pequenos sinais: os ônibus coletivos, o detalhe de um ou outro prédio ou avenida (com a exceção da belíssima vista da Praça do Pôr do Sol, presente no filme que estamos discutindo). A cidade fica assim mais sugerida do que traspassada por uma câmera onívora. E não há qualquer embelezamento “cosmético” nas imagens – truque fácil de publicidade muito usado pelo frívolo Cidade de Plástico (2009, de Nelson Yu Lik-Wai).
Por fim, chamemos a atenção para a estrutura do roteiro, que gira em torno de acontecimentos cotidianos dos personagens durante certo período de tempo. Claro que alguns desses acontecimentos serão transformadores, mas o filme se encerra com uma impressão comovente de que o que vimos foi nada mais do que um pedaço de vida. Não se trata de dramas ou tragédias raras que parecem tomar lugar num excerto de tempo colocado entre parêntesis, momentaneamente paralisado e arrancado da linha temporal. Tudo o que testemunhamos encontra-se plenamente inserido dentro de um fluxo de vida, de mundo e de tempo do qual se extrai com justeza a grande poesia.
Adorei seu último parágrafo - também gostei muito deste filme.
ResponderExcluirÉ um filme inspirador. Tomara que a diretora continue assim, e que venham outros cineastas com essa pegada...
ResponderExcluirGosto muito do seu blog e gostaria de saber se poderia fazer uma crítica à melhor animação a qual já tive o prazer de assistir: "MARY & MAX - UMA AMIZADE DIFERENTE".
ResponderExcluirEu ficaria muito agradecido.
Oi, Leo.
ResponderExcluirEstou para ver mesmo "Mary e Max", me chamou bastante a atenção...
Assim que conseguir conferi-lo, escrevo algo sim, pode deixar!
Valeu!!