Henri Agel é um dos maiores nomes da abordagem fenomenológica do Cinema em França (tanto na teoria quanto na crítica), juntamente com Amédée Ayfre. Como já discutimos numa outra postagem (10/01/2008), tal postura é um desmembramento das teorias (neo) realistas de André Bazin. Partindo da fenomenologia de Husserl, Agel e Ayfre são movidos por um pensamento místico e mesmo religioso (dentro de um catolicismo que busca as essências cristãs da fé transcendente e da ação engajada) – assim como fizera Bazin. Esses autores se opõem vigorosamente à abordagem excessivamente formalista dos semióticos franceses, especialmente Christian Metz.
Mas não estamos hoje aqui para discutir essas teorias. E sim, para falar novamente sobre a “waste land” bibliográfica que assola nosso país. As edições brasileiras de André Bazin e de Henri Agel são extremamente escassas e estão longe de cobrir satisfatoriamente a obra desses dois grandes mestres. Quanto a Amédée Ayfre, nem se fala... Contudo, há algum tempo caiu em minhas mãos uma edição original de Métaphisique du Cinéma, de Henri Agel (Paris, Petite Bibliothèque Payot, 1976). Para explicar este livro, transcrevo a sinopse que consta da contra-capa (em tradução própria):
“Assim como os sonhos se transformaram, após Jung, na expressão de um ressurgimento de símbolos arcaicos e o prolongamento do escopo dos arquétipos, o cinema pode nos revelar um aspecto privilegiado desse ressurgimento e desse prolongamento.
Através de filmes como O Anjo Azul, Ladrões de Bicicleta, As Últimas Férias, A Infância de Gorki, A Hora do Lobo, Roma Cidade Aberta, Henri Agel examina em que medida o cinema perpetua as grandes entidades metafísicas que, sob as formas mais diversas, não cessaram de alimentar o funcionamento da imaginação.
Desde o começo da história do cinema, as fontes de inspiração dos filmes são, com efeito, as mesmas que afetam a cultura do Ocidente e do Oriente, fontes essas que também alimentam toda a nossa atividade onírica. Por trás do grau de significação inicial, pode surgir toda uma gama de significados que põem em causa a origem e o rumo do destino humano.”
Não existe tradução desta obra no Brasil ainda, infelizmente. E, pelo que pesquisei, nem em Portugal (se existe, está esgotada faz tempo). Em vista disso, para estimular o debate, quero reproduzir – e traduzir – aqui um pequeno trecho de Métaphisique du Cinéma que achei particularmente interessante e representativo do pensamento de seu autor. As reflexões ficam por ordem do leitor.
Ce qui fait la grandeur de La Règle du Jeu, du Voyage en Italie, de La Splendeur des Ambersons, c’est leur expansion significative. Précisons bien qu’il n’est pas question d’occulter la portée sociale et humaine que dégage le film et qui a pu en 1948 – et moins valablement aujourd’hui – le faire recevoir comme un constat et un réquisitoire. Tout au contraire, le découpage même du Voleur de Bicyclette semble accomplir un propos qui consiste à nous mettre en présence d’une réalité sociale signifiante, mais dont la signification se propage en ondes concentriques qui vont du hic et nunc au tragique intemporel, et se dilatent dans une sorte de fantastique vrai. C’est dans la propagation de chacun de ces courants dans l’autre, ou encore dans la convergence, dans la fusion de ces courants, que consiste le classicisme du film. (p. 116)
“O que faz a grandeza de A Regra do Jogo, de Viagem à Itália, de Os Magníficos Ambersons, é a expansão do seu significado. Deixemos bem claro que não se trata de ocultar a carga social e humana que faz com que esses filmes se destaquem e que, posto em 1948 – e com menos validade hoje em dia –, fazem-nos serem recebidos como uma constatação e requisitório (dessa mesma carga social). Ao contrário, a própria decupagem de Ladrões de Bicicleta parece cumprir um propósito que consiste em nos colocar na presença de uma realidade social significativa, mas cuja significação se propaga em ondas concêntricas que vão do “aqui e agora” até o trágico atemporal, e se dilatam em uma espécie de verdadeiro fantástico. É na propagação de cada uma dessas correntes por sobre as outras, ou ainda na sua convergência, na fusão delas, que consiste o classicismo do filme.”