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domingo, fevereiro 28, 2010

Metafísica do Cinema

Henri Agel (1911-2008)

Henri Agel é um dos maiores nomes da abordagem fenomenológica do Cinema em França (tanto na teoria quanto na crítica), juntamente com Amédée Ayfre. Como já discutimos numa outra postagem (10/01/2008), tal postura é um desmembramento das teorias (neo) realistas de André Bazin. Partindo da fenomenologia de Husserl, Agel e Ayfre são movidos por um pensamento místico e mesmo religioso (dentro de um catolicismo que busca as essências cristãs da fé transcendente e da ação engajada) – assim como fizera Bazin. Esses autores se opõem vigorosamente à abordagem excessivamente formalista dos semióticos franceses, especialmente Christian Metz.

Mas não estamos hoje aqui para discutir essas teorias. E sim, para falar novamente sobre a “waste land” bibliográfica que assola nosso país. As edições brasileiras de André Bazin e de Henri Agel são extremamente escassas e estão longe de cobrir satisfatoriamente a obra desses dois grandes mestres. Quanto a Amédée Ayfre, nem se fala... Contudo, há algum tempo caiu em minhas mãos uma edição original de Métaphisique du Cinéma, de Henri Agel (Paris, Petite Bibliothèque Payot, 1976). Para explicar este livro, transcrevo a sinopse que consta da contra-capa (em tradução própria):

“Assim como os sonhos se transformaram, após Jung, na expressão de um ressurgimento de símbolos arcaicos e o prolongamento do escopo dos arquétipos, o cinema pode nos revelar um aspecto privilegiado desse ressurgimento e desse prolongamento.

Através de filmes como O Anjo Azul, Ladrões de Bicicleta, As Últimas Férias, A Infância de Gorki, A Hora do Lobo, Roma Cidade Aberta, Henri Agel examina em que medida o cinema perpetua as grandes entidades metafísicas que, sob as formas mais diversas, não cessaram de alimentar o funcionamento da imaginação.

Desde o começo da história do cinema, as fontes de inspiração dos filmes são, com efeito, as mesmas que afetam a cultura do Ocidente e do Oriente, fontes essas que também alimentam toda a nossa atividade onírica. Por trás do grau de significação inicial, pode surgir toda uma gama de significados que põem em causa a origem e o rumo do destino humano.”

Não existe tradução desta obra no Brasil ainda, infelizmente. E, pelo que pesquisei, nem em Portugal (se existe, está esgotada faz tempo). Em vista disso, para estimular o debate, quero reproduzir – e traduzir – aqui um pequeno trecho de Métaphisique du Cinéma que achei particularmente interessante e representativo do pensamento de seu autor. As reflexões ficam por ordem do leitor.

Ce qui fait la grandeur de La Règle du Jeu, du Voyage en Italie, de La Splendeur des Ambersons, c’est leur expansion significative. Précisons bien qu’il n’est pas question d’occulter la portée sociale et humaine que dégage le film et qui a pu en 1948 – et moins valablement aujourd’hui – le faire recevoir comme un constat et un réquisitoire. Tout au contraire, le découpage même du Voleur de Bicyclette semble accomplir un propos qui consiste à nous mettre en présence d’une réalité sociale signifiante, mais dont la signification se propage en ondes concentriques qui vont du hic et nunc au tragique intemporel, et se dilatent dans une sorte de fantastique vrai. C’est dans la propagation de chacun de ces courants dans l’autre, ou encore dans la convergence, dans la fusion de ces courants, que consiste le classicisme du film. (p. 116)

“O que faz a grandeza de A Regra do Jogo, de Viagem à Itália, de Os Magníficos Ambersons, é a expansão do seu significado. Deixemos bem claro que não se trata de ocultar a carga social e humana que faz com que esses filmes se destaquem e que, posto em 1948 – e com menos validade hoje em dia –, fazem-nos serem recebidos como uma constatação e requisitório (dessa mesma carga social). Ao contrário, a própria decupagem de Ladrões de Bicicleta parece cumprir um propósito que consiste em nos colocar na presença de uma realidade social significativa, mas cuja significação se propaga em ondas concêntricas que vão do “aqui e agora” até o trágico atemporal, e se dilatam em uma espécie de verdadeiro fantástico. É na propagação de cada uma dessas correntes por sobre as outras, ou ainda na sua convergência, na fusão delas, que consiste o classicismo do filme.”

sábado, fevereiro 27, 2010

500 Dias Com Ela


Não adianta. A vocação do cinema é a realidade. O que não significa que deverá resultar disso uma estética “realista”. A maneira como se filma não interessa, assim como não interessa o caráter “real” do que é filmado: pode ser uma história do planeta Terra ou do planeta X. Pois o cinema, assim como a literatura, tem para si o poder da alegoria – que é o que sempre definiu e continua definindo a natureza mais essencial do fazer artístico. O quinhão de realidade que interessa aos filmes é o que podemos convencionar de chamar as “realidades humanas”. Num sentido bem fenomenológico, constituem-se elas das vivências subjetivas que um indivíduo tem com si e com outros de sua espécie.

A única verossimilhança que importa é a do espírito. As boas produções do fantástico – terror, ficção científica, fábulas infanto-juvenis, dentre outras menos rotuláveis – sabem obedecer muito naturalmente a essa lei. Então, já dá para imaginar a epifania muito particular que o espectador experimentará ao acompanhar uma narração que transcende a si mesma, tocando-o de maneira sempre diferente mas muito íntima. É aí que está a graça – no sentido mais original da palavra: o dom divino concedido aos mortais. Qualquer filme que não dê a devida conta à dimensão humana de qualquer fato NÃO será um bom filme, quaisquer que se façam os seus propósitos.

Agora, não estamos defendendo aqui nenhum cinema piegas, condescendente ou auto-indulgente. Tanto porque o humano é a maior das contradições, o maior dos mistérios e ainda por cima dotado de peculiar inteligência e vontade. Qualquer discurso que tente diminuir e simplificar esse não obstante “bicho da terra tão pequeno” – no dizer de Camões – estará condenado ao naufrágio. Graças aos deuses, 500 Dias Com Ela (“500 Days of Summer”, 2009) não é um desses discursos. O filme se apresenta como mais um daqueles de “educação sentimental”, mas numa forma antes de fábula do que de romance de tese – felizmente.

A estrutura de “história adulta da carochinha” – no dizer de Guimarães Rosa – traz para a película de Marc Webb todo um encanto que servirá de interessantíssimo contraponto ao desencanto de sua mensagem: a famosa moral da história. Mas não se pense que é um filme negativo, muito pelo contrário. Sua proposta é a de nos ensinar a amar, através de exemplos singelos mas contundentes (quer outra pedagogia?), muito como o francês Canções de Amor (2007) de Christophe Honoré. 500 Dias Com Ela procura mostrar o quanto cada pessoa sente (amor, paixão, etc) de maneira bastante diferente e, a partir daí, elaborará para si mesma uma narrativa que pouco ou nada terá a ver

com a história construída por seu parceiro(a), tampouco com a – suposta – realidade dos fatos vividos pelo casal. Estou colocando a coisa de modo bem intelectual, eu sei; mas assista ao filme e verá o quanto do que é mostrado corresponde a muito do que vemos e vivemos, e de maneira simples, clara, direta: não obstante o tema, a realização da fita procura ser o mais despretensiosa possível. “O nosso amor a gente inventa” ou “adoro um amor inventado” já dizia o poeta Cazuza. O cinema também é invenção do real, ou melhor: o cinema é a transfiguração do real atravessado pelos nossos olhos e corpos vestidos de uma máquina (o cinematógrafo).

Vestidos de amor e paixão, nossos corações também empreenderão uma viagem de exploração que conseguirá antes uma interpretação, uma representação dos lugares visitados do que uma descrição “científica”. O importante é que nessa jornada o todo não existe, será apenas um construto feito a posteriori com o grande apoio da memória, especialmente da memória afetiva. A totalização da experiência é sempre um trabalho de racionalização – envolvendo as já esperadas doses de idealização ou depreciação, dependendo do caso. O primeiro será o de Tom (Joseph Gordon-Levitt), e o segundo de Summer (Zooey Deschanel, uma graça).

Buscar um sentido para nossas vivências amorosas através de uma coesão e uma coerência entre elas, relacionando-as à nossa personalidade e à nossa história geral de vida, contruindo um texto. Mas a vida não é um romance. Tampouco uma letra de canção escrita por Morrissey (ex-Smiths). Não que seja impossível qualquer totalização e universalização, mas estas serão muito difíceis de serem alcançadas, pois a maneira como nós vivemos e sentimos as experiências em si é bem diferente. O cérebro busca o total, mas o coração concentra-se no fragmento. O amor é feito e vivido de momentos, e momentos são somente momentos.

Não significam nada além do que rolou naquele instante por qualquer razão muito particular que seja. Eis o aprendizado de Tom: não existe destino, não existe aquela que será a “the one”. Pelo menos, não será Summer. E pode não ser ninguém, tanto quanto pode ser Autumn (depois do verão, o outono). Ninguém saberá. Mas isso não quer dizer que não se poderá buscar e viver o amor naquilo que ele tem de mais fundamental e unicamente verdadeiro: o simples encontro de um homem e uma mulher. Pronto. A memória afetiva trabalha com instantes significativos, não necessariamente relacionados em uma ordem temporal.

E isso o filme expressa muito bem através da narrativa não-linear. Ela representa o processo interno de rememoração, compreensão e superação da relação que Tom possuiu com Summer. Não se trata de uma historinha folhetinesca de amor – e falsa, portanto. Repito: ninguém vive um romance de amor; mas talvez todos nós vivenciamos contos amorosos. É isso. Enquanto a maioria dos filmes românticos (mesmo as comédias românticas) arvoram-se na velha tradição do romance literário, 500 Dias Com Ela procura fazer-se de “causo”, conto, crônica, que são gêneros mais abertos às liberdades e transformações de forma e de conteúdo.

E viva o primeiro dia de outono!

quarta-feira, fevereiro 24, 2010

Um Homem Sério



O cinema de Joel e Ethan Coen é cruel. Muito cruel. E tão virtuoso quanto. São daqueles diretores que passam no teste do “zapping”: mudando os canais da TV com o controle remoto na mão, conseguimos adivinhar um filme dos Coen que nunca tenhamos visto em cinco segundos, sem apelar para a grade de programação on-line – em se tratando de TV digital. É assim também com Hitchcock, Antonioni... Isso não quer dizer que nasçam daí grandes artistas latu-sensu, mas mestres muito seguros da identidade do seu estilo. O domínio da técnica em função da expressão individual – já é toda uma estética, não?

Por isso, ver uma fita dos irmãos Coen – qualquer uma – é tão agradável e familiar quanto ouvir um solo de Jimi Hendrix. Virtuosismos à parte, a mera “impressão digital” estilística já contribui muito para o valor de uma obra na sociedade ainda romântica em que vivemos. É claro que, para alguns, tal estirpe de artista será deplorável por causa dessa mesma característica: é o “mais do mesmo”, ou o “se viu um, já viu todos” que algum crítico menos paciente adorará verbalizar. Bem, pode valer para os discos do Iron Maiden ou para o cinema de... (alguém arrisca um palpite?), mas não creio que seja o caso de Joel e Ethan Coen.

Existe um limite entre a coerência, a autenticidade de uma filmografia (ou discografia) e a redundância de idéias e fórmulas já esgotadas pelo próprio artista. Vamos pegar este Um Homem Sério (“A Serious Man”, 2009) como exemplo. Aqui está o tradicional humor negro dos diretores, aqui está toda a violência de seus filmes (embora numa forma simbólica), aqui estão os personagens bizarros. Mas uma coisa mudou: se nas outras películas toda a desgraça sofrida pelos protagonistas advinha de algumas ações suas muito mal-calculadas (para dizer o mínimo), agora o pobre Larry Gopnik sofrerá o diabo sem qualquer razão, sentido, propósito, causa, consequência, explicação, condição, sei lá.

É uma progressão interessante na temática dos irmãos cineastas. Mas, por outro lado, talvez nada tenha mudado substancialmente. Quero dizer, se antes o sujeito sofria o carma (o qual, mesmo sendo despertado por sua própria atitude, ainda é uma força cósmica), agora o pacato cidadão há de penar a vontade misteriosa do (supra)-universo em si mesma. Cada religião dará alguma alcunha diferente para ela, inclusive – naturalmente – a judaica: a palavra exata eu esqueci, mas é pronunciada muitas vezes no filme. Isso já é quase pagão (estamos falando do paganismo clássico greco-romano, para o qual nós pobres mortais estamos irremediavelmente sujeitos à vontade caprichosa dos deuses).

Talvez essa seja a maior das ironias muito sarcásticas que Um Homem Sério direciona aos judeus e ao judaísmo – a outra é a cena engraçadíssima em que, durante uma cerimônia na sinagoga, um assistente dos rabinos mal consegue segurar no alto o peso dos rolos da Torá e solta consigo mesmo a peculiar interjeição: “Jesus Cristo!” Mas o paganismo dos Coen se reveste de uma toga pós-moderna: o mais gritante – e desesperador – neste e em outros filmes é a incerteza absoluta, a eterna dúvida e toda a sensação de insegurança que muito apropriadamente brotará daí.

Também é irônico o fato de um professor universitário de física sofrer tudo isso. Num de seus sonhos, ele dá aula sobre o famoso princípio da incerteza, um dos bastiões da física contemporânea. Pena que, em sua própria vida, não há matemática que resolva – sequer descreva – o seu problema. E justamente Larry Gopnik, que defende que não há física sem matemática. Assim, a despeito de Onde Os Fracos Não Têm Vez (2007), este parece ser o mais filosófico dos filmes dos irmãos Coen. E o mais pessimista, o mais niilista, pois busca navegar por águas mais cósmicas, digamos assim. Pode ser o ponto alto e claro de uma tese que eles vinham esboçando desde o início.

No mundo contemporâneo não há Deus, não há verdade, não há certeza; se há, Ele não está nem aí para nós. O universo nada mais é do que palco para o embate bufão entre uma vontade imperscrutável (ou talvez a própria ausência de vontade, o simples acaso) e a nossa própria vontade, tão bem trabalhadinha... A música “Somebody To Love”, da banda Jefferson Airplane expressa bem: quando “a casa cai” para a gente, só queremos alguém para amar. A idéia é mais velha do que andar para a frente, é lógico; mas o humor peculiar dos diretores a transforma em algo bastante palatável.

No fundo, não seria isso uma boa realização artística? Não buscar o impossível de inventar novos temas ou idéias, mas colorir de modo diferente velhas palavras como “amor”, “fé”, “medo”... Mas, peraí! Isso também é irônico: trata-se apenas do enxergar diferentemente o velho estacionamento (nas palavras do jovem rabino com que Larry Gopnik procura se aconselhar). Não há limites para a desconstrução, que é palavra de ordem no pensamento pós-moderno. Um Homem Sério constitui-se de camadas e camadas de supostas ou possíveis verdades que vão desmoronando sob o peso da ironia, único quinhão que resta do outrora tão promissor sujeito moderno.

Larry Gopnik é, no princípio, o mestre-sala e porta-bandeira do “homem de ação”, orgulho da civilização ocidental, industrial, liberal, e já tão duramente satirizado por Dostoiévski ainda no século XIX. Mas, apesar de todas as taras por controle, o mistério ainda sobrevive e faz as suas traquinagens. Não se pense (pelo menos, não com certeza) que Um Homem Sério é um filme metafísico. Talvez o único problema de Larry seja buscar uma causa ou explicação sobrenatural para a sua desgraça. Sim, pois não pode existir um novo Jó no capitalismo pós-moderno, não é verdade?

O Sr. Gopnik não sofre exatamente nas mãos de “Deus”. Quem faz mal a ele são a esposa adúltera, o filho maconheiro, o irmão fracassado, o aluno chantagista, os advogados caros, etc. Seriam todos instrumentos da vontade divina? Ou a do diabo? Ou ainda não seria melhor pensarmos que todo esse cenário nos mostra o quanto somos dependentes de relações e sistemas sociais – e meramente sociais – cada vez mais complexos, cada vez mais abstratos, próximos de nós mas inalcançáveis a qualquer controle, e que acabarão mais cedo ou mais tarde por nos escravizar por completo e nos destruir enquanto sujeitos “emancipados” (o orgulho do velho Iluminismo)?

E não há religião, ideologia, arte ou maconha que poderá nos salvar, aliviar, consolar, nem dar qualquer satisfação. Bem-vindo à pós-modernidade, Larry! Enfim, mas o que importa mesmo é a realização cinematográfica de tudo isso. E os irmãos Coen são mestres porque usam a expressividade da imagem antes e acima de qualquer coisa, em todos os mínimos detalhes: desde o tom da iluminação e da cor até o contraponto irônico da trilha sonora. Contar uma história e manifestar o seu sentido por meio de imagens. É isso. Pegue-se por exemplo a direção de atores, outra marca registrada no estilo dos diretores: as “caras de cu” que todos fazem o tempo todo são divertidíssimas e muito significativas. O estupefato, o hirto, o abobalhado, o meio estúpido são traços típicos do comportamento das personagens das tragicomédias dos Coen.

O rigor da fotografia na composição exata dos planos e a montagem também merecem atenção: veja-se a cena na qual se mostram paralelamente Larry Gopnik e o rival Sy Aberman cada um dirigindo o seu carro. Quanto ao áudio de “audiovisual”, divirta-se com a parábola contada pelo rabino ao som (não-diegético) de Jimi Hendrix, enquanto a própria voz em “off” do narrador parece dublar os personagens da história. Enfim, por tudo o que discutimos, principalmente pela constante ironia que paira sobre tudo e sobre o próprio discurso, concluímos que o cinema dos Coen é adorável sem se dar à adoração – eis o segredo. Por isso, assim como o Michael Haneke de que tratamos ontem, eles jamais serão tão populares quanto outros cineastas-cabeça mais “carismáticos”. E é isso que faz deles mais adoráveis.

terça-feira, fevereiro 23, 2010

A Fita Branca


Eis. Um filme de ideias em que estas não falem mais alto do que a arte. A Fita Branca (2009) encontra o equilíbrio exato entre a tese e a imprescindível sublimação que ela deve ter num discurso que se pretenda artístico. Michael Haneke realiza isso tanto melhor quanto a sua mensagem possua um caráter abrangente. Não, o filme não é sobre as origens do nazismo; segundo o próprio diretor – em entrevista à Folha de S. Paulo –, A Fita Branca procura mostrar o quanto uma educação absolutista produz seres humanos absolutistas. E isso não é nada bom, vide o histórico de regimes autoritários do século XX – tanto quanto o histórico de muitos grupos que se “opuseram” a eles.

E o que é melhor: o espectador não se sente, digamos, molestado com as imagens na tela grande. Pois Haneke sabe que o que interessa ao seu filme não é a violência em si, mas a cultura, a educação, as relações humanas que conduzem a ela, paulatinamente. Muitos atos de violência acontecem ao longo da narrativa, mas nenhum deles é mostrado explicitamente, tudo o que sabemos são relatos, sinais e suposições. A Fita Branca alinha-se aos clássicos romances de formação: mas no lugar do narrador-protagonista que esquadrinha os anos que o fizeram ser o que é, tem-se um professor de aldeia que tenta de alguma maneira entender fatos que sente terem sido importantes na sua vida, na de seus conterrâneos e na de seu próprio país –

conforme as intenções confessadas logo no início de sua narração (voz em “off”). Daí podermos dizer que se trata de um filme sobre a barbárie do 3º Reich; no entanto, prefiro associá-lo às declarações do próprio diretor, tanto porque A Fita Branca é (mais um) ótimo exemplo para as ideias do filósofo Adorno (no livro “Educação e Emancipação”), para quem todo e qualquer apagamento das individualidades produz resultados para lá de temerosos – e incalculáveis num primeiro momento. Ninguém naquela aldeia imagina que espécie de cidadãos as suas crianças se tornarão às custas da educação que recebem dos pais e com os singulares exemplos de “justiça” praticados pelas pessoas ali.

Assim, é interessante ressaltar: A Fita Branca é um filme que procura fazer refletir sobre o horror... praticado entre sociedade, mas sem mostrar qualquer coisa mais concreta desse horror. Michael Haneke não faz coro com cineastas ingênuos (para dizer o mínimo) que, a pretexto de discutir a violência, nada mais fazem do que contribuir com o seu fetiche. O mal se faz invisível na medida em que se dilui entre todos, compartilhado e tolerado com surpreendente “vista grossa”. Isso vale para os personagens do filme e para os homens de cinema. Haneke não adota qualquer facilidade que contribua para um entendimento imediato e julgamento rápido por parte do espectador –

que se sentiria no geral bastante feliz com isso, naturalmente. Apesar de o filme ser vendido como “perturbador”, ele não tem cena chocante alguma, não faz revelações bombásticas e é em preto-e-branco. Em relação a este último aspecto e também à composição do quadro, precisamos dizer que a fotografia de A Fita Branca é um espetáculo à parte: já fazia um tempo que não se viam imagens tão sólidas na tela do cinema, pois a ênfase não está no contraste do “chiaroscuro”, mas no molde cinzento-cimento dos rostos dos personagens “suspeitos”, de uma dureza e frieza inquietantes. De qualquer maneira, o cineasta fez uma obra difícil; não de ser vista, mas de ser “degustada”:

a narrativa-investigação é absolutamente desnuda de qualquer suspense e provoca até sono nos mais desacostumados (a fita tem quase duas horas e meia). Os seus valores estéticos e a importância dos temas não se dão facilmente ao espectador afobado. No mais, as imagens falam – muito implicitamente – por si sós e os atores são muito bem dirigidos nesse propósito. É o equilíbrio entre idéia e arte, de que falei no começo. Entre conteúdo e forma. O debate que o diretor quis provocar, devemos pescá-lo do fundo da “mise en scène”: lá está transfigurado em ato e fato o jogo de oposições que muitas figurinhas carimbadas do cinema-inteligente tentam produzir, mas que fica só na base do discurso mesmo.

Por isso, Michael Haneke não terá os mesmos fãs de um Lars Von Trier (Anticristo); ou do Quentin Tarantino de Bastardos Inglórios, no que diz respeito à temática “nazista”. Ainda bem. A Fita Branca é um filme bem mais... adulto. Enfim, cinema é mesmo como um sonho (desculpando a metáfora de psicologia de porta-de-botequim): sublimação; efabulação; metáfora; alegoria. E para isso, não é necessário apelar ao fantástico; o mais absurdo está na realidade mais cotidiana, refestela-se debaixo de nossos narizes e nós não percebemos. Pode apostar. Circunspecção. Os aldeões de... são muito circunspectos. Principalmente o pastor: modelo do “cidadão de bem”, que ama os filhos e faz tudo por eles. Pois é aí que começa o horror.

segunda-feira, fevereiro 22, 2010

Invictus



Estávamos eu e um camarada discutindo Invictus, após o término da sessão, e num determinado momento da conversa ele disse: “Engraçado, né? Clint Eastwood é um cara conservador, tradicional... republicano... E ainda faz uns filmes sensíveis, humanos...” Bem, isso se chama autenticidade. Eastwood não usa o cinema para defender a NRA (National Rifle Association), a Guerra do Iraque, ou para desqualificar qualquer pessoa ou grupo. Como todo verdadeiro artista, o diretor de Invictus sabe que seu veículo não se reduz à propaganda ideológica. A arte se faz expressão de fatos – verdades – humanas mais profundas, abrangentes, abstratas.

É claro que tais verdades podem tocar questões históricas e políticas. Mas o foco do artista não deverá se fixar nestas. O artista esclarecido saberá reconhecer e se concentrar no embate ético-moral por trás das disputas por poder, por trás de vinganças, ressentimentos e intolerâncias diversas. O grande artista usará a política e a história para buscar um aprendizado maior do humano, e não o contrário. Ele sabe o que realmente interessa, o que está verdadeiramente em jogo. Neste ponto, Clint Eastwood é muito mais digno de respeito como cinema “engajado” do que Michael Moore (dentre outros infelizes exemplos). É um cinema mais dotado de alma.

O mundo “pós-moderno” é descrente de valores. Palavras como perdão, redenção, esperança, perseverança, união estão em baixa hoje em dia. Principalmente quando essas palavras são colocadas como valores “universais”; afinal, é sinal de inteligência e esclarecimento respeitar o relativismo cultural, não? Yves de la Taille, em obra recente (“Formação Ética: do tédio ao respeito de si”, 2009), diagnostica com sutil sensibilidade: “Em relação ao cultural, como vimos, não há valores em jogo, apenas descrição. Ora, quando Finkielkraut nos diz que o cultural engole tudo, está afirmando que perdemos critérios para julgar, ou que achamos errado empregá-los:

o que importa é o que existe, não o que deveria existir. O que importa é reconhecer uma presença, não avaliá-la. O que importa é o fato, não o valor. Ou, melhor dizendo, tudo o que existe tem valor pelo simples fato de existir. Ora, privado de critérios para separar ‘o joio do trigo’, temos a massa indiferenciada a que se refere o filósofo francês. Poderíamos falar em ‘achatamento de valores’. Tudo se vale.” Ora, para Clint Eastwood, o velho Dirty Harry, não existe essa de achatamento... Invictus é um filme de heróis e heroísmos, uma história do bem contra os males (sim, no plural). Num mundo cheio de gente como Hugo Chaves e George W. Bush, é um alívio saber que ainda existe Nelson Mandela...

É claro que o herói eastwoodiano é solitário e incompreendido – um pouco como os heróis de John Ford. O personagem de Matt Damon (capitão da seleção sul-africana de rugby), visitando a prisão que encarcerou Mandela por trinta anos, pergunta à sua companheira e a si próprio: “Como pode alguém que passou trinta anos numa cela tão pequena sair disposto a perdoar aqueles que o colocaram ali?” Pois é. Heroísmo de verdade não é para principiantes. Como diretor, Clint Eastwood sabe quando o assunto deve falar mais alto do que a técnica. Invictus é um filme todo voltado para o elogio do seu herói, do seu conteúdo.

Inclusive o tom emocional mais carregado – algo um tanto quanto estranho ao estilo do cineasta, no geral bastante equilibrado num sentido classicizante até – está de acordo com a proposta. Preciso dizer que Eastwood é bem mais maduro e sutil em seus filmes heróicos do que um... Mel Gibson, por exemplo? Mesmo assim, Invictus não será uma obra antológica na carreira do diretor. Não é tão marcante quanto Gran Torino (2009) ou esteticamente perfeito como Cartas de Iwo Jima (2007). Mas não deixa de dar a sua lição de cinema. A sétima arte precisa de mais professores assim.

quinta-feira, fevereiro 18, 2010

Besouro



Gente, cinema e propaganda são duas coisas bem diferentes, tá? Mesmo que se trate de cinema “comercial” ou “popular”, é preciso estudar um pouquinho mais sobre o que é a tal da linguagem artística; e, principalmente, aprender que uma narrativa – qualquer que seja – não se reduz ao uso de determinados recursos técnicos para provocar determinados efeitos (persuasivos) no “público-alvo”. Besouro parece saído das mãos de algum aluno das faculdades de marketing ou mesmo de cinema – levando-se em conta aqui os padrões de ensino que muitas vezes essas escolas parecem seguir.

Explico: Besouro é técnica (e tecnologicamente) perfeito, o que já é um grande orgulho para o nosso pobre cinema nacional, não? A fotografia é belíssima nas cores e na composição dos planos, a montagem é bem... digamos, profissional: o filme não apresenta qualquer “barriga” – terminologia técnica odiosa, que as escolas de filmagem parecem usar apenas para o mal: para os “profissionais”, os tempos mortos da narrativa, tão caros a toda uma estética do cinema europeu e asiático, não passam de defeitos de montagem; tudo bem, quando se trata de publicidade; mas Cinema é outra coisa, convenhamos; precisa ser outra coisa.

O que mais? O trabalho dos atores, em si mesmo (ou seja, descontando o roteiro pífio), é razoavelmente natural, sem muitos daqueles vícios teatrais ou noveleiros que assolam nosso cinema. A coreografia da capoeira, incluindo os tão falados efeitos especiais do cara que fez O Tigre e O Dragão (2000) é autenticamente inspiradora. Mas paramos por aqui. As qualidades deste filme referem-se todas a elementos isolados. Se fosse um videoclipe, estaria ótimo. Mas para um filme narrativo não dá, né? O diretor chama-se João Daniel Tikhomiroff e vem da publicidade: a sinopse na contra-capa do DVD anuncia que ele é “um dos diretores de comerciais mais premiados do mundo”... Então tá!

Desde quando dirigir comerciais habilita alguém a fazer Cinema? Aqui vai apenas uma opinião: dirigir comerciais desabilita um cidadão qualquer a dirigir filmes; a não ser que se faça cinema como cinema, e não como propaganda. Os grandes cineastas oriundos da publicidade parecem entender essa diferença: que o digam Ugo Giorgetti e Ridley Scott (considerando apenas os primeiros filmes deste último). Enfim, o diretor de Besouro promoveu uma tão grande lipoaspiração nas “barrigas” do filme que a história e os personagens simplesmente acabam não convencendo.

A única coisa com que nós, pobres espectadores-consumidores, ficamos é o nada sutil discurso do diretor e da roteirista, tentando nos convencer de que o capoeirista Besouro é um grande herói nacional... Então tá, mais uma vez! É importante ressaltar: o filme é uma colagem muito esquisita de vários elementos isolados, que não se articulam num todo narrativo-orgânico que seja convincente. A hora e meia de exibição está longe de ser suficiente para que nós compreendamos e nos envolvamos com os personagens e acontecimentos; tudo fica muito atirado, para todos os cantos.

As personagens não têm a consistência que seus equivalente históricos merecem. Querendo fazer homenagem a Besouro, o filme corre o risco de atingir o resultado contrário. O “sub-plot” amoroso é inacreditavelmente mal trabalhado. Mesmo para os filmes B de artes marciais, esta produção é tosca em termos de roteiro. Pelo menos não é tão ruim quanto o Plastic City – Cidade de Plástico, que ainda está nos cinemas – para que se veja o quanto as coisas podem ser sempre piores do que se imagina. O problema é: ambos os filmes enfiam goela abaixo do espectador os elementos da narrativa,

Mas não os trabalham suficientemente para que nós nos convençamos da sua verossimilhança. Mesmo para os intuitos de um cinema-publicidade, isto é uma grande besteira. O filme não se vende por si só. Um exemplo: em vários momentos da fita, ressalta-se a culpa atribuída a Besouro por ter “abandonado” o seu mestre e “deixado” que ele fosse assassinado. E o espectador fica se perguntando: mas por que ele tem culpa mesmo? O que ele fez ou deixou de fazer de tão grave assim, especificamente falando? Quais os fatos envolvidos na celeuma? Bem, o filme simplesmente não mostra essas coisas. Paciência.

O máximo que temos são rápidos planos no comecinho da história que mostram a relação “paterna” entre o mestre Alípio e seu jovem discípulo Besouro. De novo (ai ai ai): então tá! Se tivermos boa memória enquanto vemos o filme, entenderemos o que os produtores quiseram mostrar. Mas entre a intenção e a realização há alguma distância, não há? Bem, mais um filme bobo para a nossa cinematografia. Maturidade técnico-tecnológica não traz a reboque, infelizmente, a maturidade artística. Besouro está mais para um “trailer” de 94 minutos de duração do que para um filme de verdade.

sexta-feira, fevereiro 12, 2010

Guerra ao Terror


A “mise en scène” de Guerra ao Terror (“The Hurt Locker”) lembra não a dos grandes filmes de guerra (como os já citados pela crítica Apocalipse Now e Nascido para Matar), mas a dos tradicionais filmes de terror – a seu próprio modo, Torres Gêmeas (2006), de Oliver Stone, também se fez uma fita de terror sem ser de terror. Na estréia da diretora Kathryn Bigelow, a atmosfera é a de uma angústia quase claustrofóbica – que contrasta muito bem com a paisagem desértica – aliada àquele incômodo suspense: o que será que vai acontecer no próximo segundo? Uma explosão? Um disparo feito por atirador escondido? Imaginamos que seja precisamente essa a sensação de se enfrentar um inimigo não na situação típica de guerra, mas na de guerrilha.

O uso da câmera digital em planos fechados, com aquela trepidação típica dos documentários feitos no calor do acontecimento, sem qualquer “embelezamento” da composição dos planos ou das imagens (que são descoloridas como num vídeo amador), é o que mais contribui para o realismo horrorífico do filme. As únicas exceções dentro dessa proposta estética são uma câmera lenta em dois momentos mais “expressivos” e um corte descontínuo dentro da própria imagem – sofisticação videoclípica? De qualquer maneira, o terror é palavra-chave. Em relação ao filme, o título em português já provoca uma reflexão meio irônica: a guerra diz ser ao terror, mas todo o terror que vemos é provocado pela própria guerra!

O terror está em dois planos: o dos atos e o das subjetividades. No primeiro, vemos a guerra como ela é: sem qualquer sentido ou resultado mais consistentes, apesar dos discursos propagandeados; a violência em suas mais variadas formas, seja a serviço das forças de “ocupação”, seja a serviço da guerrilha de “resistência” com suas táticas... bem, polêmicas – para dizer o mínimo. Mas o que recebe maior destaque no filme é o plano subjetivo. O terror está dentro dos corações dos soldados norte-americanos, naquela velha situação: longe de casa, em um ambiente inóspito, lutando contra um inimigo quase invisível para quem a morte é uma recompensa... lutando para que mesmo?

Isso nos leva a interpretar o título em outra dimensão: a guerra ao terror de que Kathryn Bigelow fala é, na verdade, travada dentro dos seus próprios combatentes. É uma guerra psíquico-emocional contra terrores internos: o medo da morte, as incertezas das mais variadas, a banalização da violência, etc. É aí que chegamos ao protagonista, verdadeiro contraponto à situação geral. O jovem sargento William James, especialista no desarme de bombas, é “viciado” na guerra, como se esta fosse uma droga – conforme a proposta do filme, explícita já na epígrafe. No entanto, não creio que “droga” seja a melhor das metáforas para essa ocasião.

Não se formos entender as drogas como uma anomia social, como algo que está “fora do sistema”, opondo-se a ele e procurando desestabilizá-lo... enfim, as drogas vistas como ilegalidade, como crime. Logicamente, uma caracterização assim não se aplica à guerra, principalmente à Guerra do Iraque: ela pode ser impopular, mas é tecnicamente legítima (para o Estado norte-americano, pelo menos). Todos sabemos que a invasão do Iraque foi calculada e planejada para trazer benefícios bem específicos ao “sistema” (petróleo?). Essa “guerra” não é algo que simplesmente estourou... Trata-se, sim, de uma operação militar dotada de toda a logística própria.

Desse modo, a guerra em questão não poderia ser uma droga, mas uma empresa. Uma multinacional como quaisquer outras, incluindo dentro de si, da sua lógica bem particular e de suas atividades resultantes a figura do “workaholic”. Eis a pedra de toque. William James não é um “nóia”, um “junkie”; ele é um viciado em trabalho como muitos jovens executivos que são aprofundamente apaixonados pelo que fazem e ilimitadamente ambiciosos. A postura egocêntrica e egoísta do sargento aponta para a do “bom profissional”: James não é um guerreiro, um soldado, e seguramente não age como tal; ele é um profissional com a tarefa exclusiva de desarmar bombas.

O filme realiza muito bem a sua caracterização: a maneira como ele guarda artefatos das bombas que desarma, feito “souvenirs”; seu comportamento profundamente compenetrado durante a realização da tarefa, e compenetrado não no sentido de quem está na linha de frente prestes a virar picadinho com uma repentina explosão, mas no sentido de alguém que precisa simplesmente fazer um trabalho bem feito; a maneira como ele suspira e fuma um cigarro após uma das missões, exalando contentamento, quase como se tivesse acabado de ter um orgasmo (é a melhor cena do filme); o fato de ele não conseguir “voltar” para casa, para a família e para a vida normal, preferindo a guerra como o grande amor de sua vida (o “diálogo” que ele tem com seu filho bebê é bastante significativo).

É claro que William James terá os seus momentos de dúvida, de angústia, de lágrimas, de terror... Mas estes acabam passando. Apesar de não dar a mínima para a sua família, para a segurança de seus companheiros e para a sua própria, ele se envolve sim com pessoas: a relação que cria com o menino Beckham parece autêntica. O protagonista não é uma máquina de trabalhar ou de matar. Mas parece entender realmente a lógica da guerra no Iraque e cumpre-a bem: é um sujeito que realiza com eficiência os atributos delegados a ele dentro da “operação”, dentro do empreendimento de manutenção da segurança, da liberdade, da democracia e da reconstrução do Iraque...

Não que ele acredite e engula toda essa conversa fiada. Como “funcionário” do governo, ele não precisa acreditar; é só fazer o seu trabalho direito e esperar o contra-cheque no final do mês. Tanto porque o seviço militar não é mais obrigatório nos EUA, o que torna a discussão aqui bem diversa daquela que se fazia em relação ao Vietnã ou a qualquer das guerras “tradicionais”. O exército dos Estados Unidos hoje em dia é uma escolha profissional e uma carreira a ser seguida. Com isso tudo, concordamos com a diretora que a guerra vicie; mas ela vicia não feito uma droga, e sim como uma tarefa que se torna hábito, como um trabalho, como um “desafio” a ser vencido – o que inclui os jogos, mesmo os de videogames. Não é legal?

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Aguirre, A Cólera dos Deuses


Existem filmes que causam efeitos de psicotrópicos em nós. Ninguém sai impune de assistir a eles. Mexem conosco de uma maneira quase física, ficamos hipnotizados, catatônicos até o último momento. Minto. Até depois que o filme termina e nós nos encontramos – voltamos a nós – paralisados na poltrona, sem saber o que pensar. A razão implodida, restam-nos apenas as sensações de significação vaga mas com grande e irreversível impacto, quase à flor da pele.

Certos filmes são drogas pesadas. Filmes como os de Werner Herzog. Filmes como Aguirre, A Cólera dos Deuses (1972). Lembro mais uma vez o filósofo Gilles Deleuze, ao afirmar que o cinema de Herzog é o das imagens tácteis. Não há outra maneira mais precisa e poética, ao mesmo tempo, que descreva a fenomenologia de se assistir a alguma película deste fantástico (em sentido quase literal) realizador. Herzog é um daqueles conhecimentos, uma daquelas verdades tão primevas, profundas e transcendentais,

que o único modo com o qual conseguimos pensá-lo e processá-lo em nossas limitadas inteligências de mamíferos é o modo dos poetas: o modo da metáfora, da alegoria, do símbolo. Permitam-me agora um rasgo maior do exagero, fruto exclusivo da impressão, do deslumbramento (ou alumbramento, como disse o poeta): Herzog não deveria ser exibido em cinemas, mas em templos, monastérios ou catacumbas de sociedades secretas místico-filosóficas. Isso mesmo.

O cinema de Herzog é para ser tocado e ingerido como uma relíquia ou corpo-santo. Herzog filma como um sacerdote-xamã ministrando seu ritual: a solenidade e a paixão com que sua câmera toca milagrosamente a pele do mundo são próprias daquelas de um louco-iluminado no momento da epifania, no momento da transfiguração. Dizer que se trata de um cinema poético, contemplativo ou meditativo é até pouco. Um filme como Aguirre é místico. Mas de um misticismo materialista.

Não porque desconfie de quaisquer supra-realidades, mas porque mergulha fundo no desvendamento das sendas mais secretas desta própria realidade – até mais desconhecida, para nós, do que certas outras. O diretor emprega a força de alma do crédulo na adoração curiosa (portanto, filosófica) do mundo que o cerca – e do que há nele, principalmente nas trevas mais profundas de seu coração. É uma fé sem crença, uma filosofia sem razão. Contraditório, barroco? Em uma palavra: Romântico.

Werner Herzog pertence àquela “família sobrenatural” (no dizer de um grande artista da palavra) dos poetas-profetas. Aguirre é uma narrativa digna da memória (a deusa Mnemosine) dos antigos aedos gregos, dos tempos (pré-) homéricos. Do relato incompleto de um padre missionário, relativo a um evento particular no início da colonização espanhola da América, Herzog extrai, reconstitui e presentifica o mais essencial (de acordo com a vidência que a deusa lhe concede) do fenômeno humano.

Ele também fez isso em O Sobrevivente (2006), outra reconstituição fictício-documental de situações-limite vividas por um – ou mais indivíduos. Fico especialmente curioso agora para ver O Homem-Urso (2005), documentário mesmo. Incluindo junto destes – e também junto de Aguirre – filmes como Kaspar Hauser (1974) e Woyzeck (1979), teremos em mãos a figura típica do (anti-) herói herzoguiano: um sujeito maldito, “sem defesa”, dotado da “grande visão dos alucinados” (Deleuze).

Vejo (e ainda espero) o cineasta filmando algum romance de Herman Hesse, seu compatriota e furacão expressionista, particularmente Demian (1919). Nunca vi o Deserto dos Tártaros (1976) de Valério Zurlini, baseado na obra de Dino Buzzati; mas também tenho visões deste romance transfigurado em cinema por Werner Herzog. Não obstante, depois de testemunhar Aguirre, meu maior sonho passa a ser assistir à uma possível versão de O Coração das Trevas.

Definitivamente não consigo pensar em nenhum nome de cineasta que seria mais perfeito para reger a filmagem de qualquer obra literária do que o de Herzog em relação à criação de Joseph Conrad. Orson Welles iria se entregar à tarefa, mas... enfim, é mais um daqueles filmes lendários que nunca existiram – e talvez nunca existirão. Tal qual ao mítico Dom Quixote de Terry Gilliam (este sim, filmado – em pedaços – pelo diretor de Cidadão Kane). Mas vamos voltar.

Um possível “Coração das Trevas” de Herzog seria complemento e contraponto perfeito ao Apocalipse Now (1979) de Coppola – adaptação livre da novela em questão) –, outra das grandes fitas malditas do cinema, daquele desencanto místico que deveria ser censurado a espectadores noviços em questões espirituais / filosóficas. Brincadeirinha. Ainda não vi Vício Frenético, a fita mais recente do diretor alemão. Gostaria de assistir antes ao filme original de Abel Ferrara, do qual este é uma refilmagem que recebeu algumas fortes críticas.

Mas... voltando mais uma vez a Aguirre, é engraçado comparar a primeiríssima imagem deste filme com muitas das do Avatar (2009) de James Cameron: vemos lá uma expedição de colonos e índios descendo por uma trilha-escadaria estreitíssima, nas encostas da cordilheira dos Andes, filmados à grande distância; um fio colorido escorrendo lentamente pelo dorso da montanha, entre nuvens e névoas. Sem computação gráfica, sem I-MAX e sem 3D, Herzog consegue produzir efeitos no espectador tão vertiginosos e sublimes quanto aqueles da fábula de Cameron. Tão ou mais.

Essa cena pode fazer os mais jovens também se lembrarem de O Senhor dos Anéis (2001). Porém, algo precisa ser dito: Herzog não é para crianças – talvez, e apenas talvez, para alguns (pós-) adolescentes. Um filme como Aguirre, a despeito de toda a discussão muito adulta suscitada pelo colonialismo, é no final das contas uma grande afirmação do espírito humano. Mas uma afirmação romântica, ou ultrarromântica, diga-se de passagem. Professores de história adorariam exibi-lo aos seus alunos, aposto.

Mas é melhor não, acreditem. Se não pelo que já dissemos, é preciso reconhecer ainda que o fato histórico não passa de pretexto, em Herzog, para transcender ao fato mítico. Kino-Mythos. Ou seja, o buraco é (bem) mais embaixo. Eis, mais uma vez, a dimensão do símbolo. Um louco ensandecido que vem além do oceano e desce do céu da montanha para procurar a lendária Eldorado no meio do coração das trevas amazônico, eis uma proposta de sinopse para Aguirre, A Cólera dos Deuses. Não é preciso dizer mais. Testemunhe.

terça-feira, fevereiro 09, 2010

Amor Sem Escalas


Disparemos a reflexão sobre o filme novo de Jason Reitman com uma única palavra-chave: descartável. Eis a qualidade e o valor dos objetos, pessoas e acontecimentos mostrados. Bagagens, empregos, amantes: tudo pode (e deve, em algum momento) ser jogado fora num átimo, sem hesitação. As “palestras motivacionais” dadas pelo personagem de George Clooney (cada vez mais um novo Cary Grant) seguem, não por acaso, essa filosofia – que é a filosofia do mundo “corporativo”, a filosofia do nosso tempo.

E o pior – pelo menos aqui – não são as implicações ecológicas da cultura do descartável. O pior é pensarmos que essa cultura, em sua base, defende uma idéia de desapego: tanto material quanto emocional. Mas que não se pense naquele desapego “zen” da contracultura; os novíssimos “yuppies” – ou “kidults”, de acordo com terminologia mais recente – herdaram a idéia de “liberdade” da mais triste forma: em tempos de (mais uma) mega-crise internacional do capitalismo, a crença na “liberdade” torna-se a única forma possível de sobrevivência.

Sim. Porque o maior descartador de todos é o próprio sistema econômico mundial. Desse modo, para vivermos com corpo e mente sãos, devemos estar o tempo todo preparados para o golpe: preparados para sermos chutados da empresa onde trabalhamos e preparados também para sermos chutados por nossos namorados ou namoradas, noivos, irmãos, o que for. Daí vemos o “prospecto” entregue pelos “demitidores” profissionais aos infelizes que recebem a má notícia: as perspecitvas de “recolocação”, a necessidade de se correr atrás dos próprios sonhos, etc.

O que é tudo, na verdade, conversa para boi dormir – conforme George Clooney não deixa de confessar, com muito cinismo. O discurso padronizado – e sem qualquer significação real – que habita o universo corporativo é uma dimensão na qual o filme investe bastante. “Investir”: sem querer, acabo usando as mesmas metáforas do “economiquês” que perfazem a arte da retórica capitalista. Num mundo em que todas as dimensões da nossa visão e da nossa experiência são pautadas pelo econômico / monetário / financeiro, parecerá muito natural a qualquer espectador o diálogo em que George Clooney

desafia a sua jovem rival a “vender-lhe” a idéia do casamento. Percebe-se? Não se trata mais de argumentar, mas de vender mesmo... Aristóteles foi destronado por Washington Olivetto. É como eu disse outro dia, numa postagem aqui: hoje em dia, parece que o economista assumiu o discurso e a função do filósofo, e o publicitário ficou com as vestes do artista. Mas o pior é a postura petulante do executivo, principalmente dentre os mais jovens: eu já trabalhei em banco e cansei de ver pessoas iguaizinhas à personagem de Anna Kendrick.

Em uma palavra: nojentinha. Mas, no fundo ela também é uma vítima da máquina e Jason Reitman (diretor de Juno e de Obrigado Por Fumar) não perderá a chance de fazer a humanidade dela aflorar... Para George Clooney, a coisa já será um pouco mais difícil: quando ele finalmente aprender a lição e decidir tornar-se uma pessoa menos descartadora – e menos descartável –, a vida não lhe dará a recompensa fácil que nós esperamos e que tanto os livros de auto-ajuda quanto Hollywood apregoam. Fazer o quê? É a vida...

quarta-feira, fevereiro 03, 2010

Paris, Texas



De Wim Wenders, eu sempre gostei de Asas do Desejo (1987); mas nunca tinha visto Paris, Texas (1984). O engraçado é que eu sempre imaginei que haveria neste filme alguma relação entre a cidade de Paris e o estado do Texas, o que me fazia pensar no inusitado: Paris, a cidade-luz, meca do cosmopolitismo; Texas, o “far-west”, a terra árida do conservadorismo republicano e do petróleo. Em vista disso, é curiosa a surpresa de descobrir que se trata, no filme, de uma cidadezinha no Texas chamada Paris: Paris – vírgula – Texas. Ao invés de o micro dentro do macro, temos aqui o macro dentro do micro, o que ajuda a expressar o caráter simbólico / universal da história narrada, verdadeira parábola da condição do indivíduo no mundo e das relações familiares, particularmente as filiais.

Nonada. Lembramo-nos de Guimarães Rosa no comecinho de Paris, Texas: parece que o próprio mundo se inicia na primeira cena, com Harry Dean Stanton vagando a esmo pelo deserto, sem memória. E o foco se manterá sempre nele e em sua busca, até o fim. Por isso, apesar da amplidão do deserto e da fotografia também ampla – predominando os planos mais abertos –, a sensação que o filme passa ao espectador é a de quase uma claustrofobia: o espaço parece mergulhado nas águas profundas do oceano-aquário da subjetividade do protagonista. A própria atuação de Stanton aponta para isto: ele se move devagar como se estivesse embaixo d’água. E o ritmo do filme nada do mesmo modo. Águas profundas são símbolo do inconsciente e é intrigante vermos Stanton inconscientemente perdido no meio do deserto-sequidão. Estamos falando de contrastes bem interessantes e o filme todo está carregado deles, no plano narrativo e no estético. Neste último, o uso que Wim Wenders faz das cores é algo raro no cinema “in color”.

Para André Bazin, o cinema é uma força centrífuga: o recorte da tela “mostra” mais o que está de fora do que as coisas que se inserem no plano. O que não aparece no quadro não desaparece simplesmente; continua existindo no mundo. Neste ponto, ainda segundo o mestre francês, o cinema difere radicalmente do teatro, máquina centrípeta na qual todo o universo se arrasta e reduz ao palco iluminado. Analisando desse modo, Paris, Texas é muito mais um filme teatral do que cinematográfico: cada sequência, cada cena, cada plano são como uma mônada, possuem um peso, uma força, um significado que parecem bastar-se a si mesmos, não só em termos de composição estética mas também – e principalmente – de roteiro. Isto não quer dizer que se trate de uma narrativa fragmentária; está mais para uma narrativa exemplar, nos termos da parábola, na qual as relações entre a parte e o todo, o particular e o universal, o uno e o múltiplo são profundamente dialéticas: todos esses planos se encontram imbricados uns nos outros em cada momento – e não apenas na sua união.

É um filme surpreendente. Grande vocação para clássico. Já o é, não?