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sexta-feira, fevereiro 12, 2010

Guerra ao Terror


A “mise en scène” de Guerra ao Terror (“The Hurt Locker”) lembra não a dos grandes filmes de guerra (como os já citados pela crítica Apocalipse Now e Nascido para Matar), mas a dos tradicionais filmes de terror – a seu próprio modo, Torres Gêmeas (2006), de Oliver Stone, também se fez uma fita de terror sem ser de terror. Na estréia da diretora Kathryn Bigelow, a atmosfera é a de uma angústia quase claustrofóbica – que contrasta muito bem com a paisagem desértica – aliada àquele incômodo suspense: o que será que vai acontecer no próximo segundo? Uma explosão? Um disparo feito por atirador escondido? Imaginamos que seja precisamente essa a sensação de se enfrentar um inimigo não na situação típica de guerra, mas na de guerrilha.

O uso da câmera digital em planos fechados, com aquela trepidação típica dos documentários feitos no calor do acontecimento, sem qualquer “embelezamento” da composição dos planos ou das imagens (que são descoloridas como num vídeo amador), é o que mais contribui para o realismo horrorífico do filme. As únicas exceções dentro dessa proposta estética são uma câmera lenta em dois momentos mais “expressivos” e um corte descontínuo dentro da própria imagem – sofisticação videoclípica? De qualquer maneira, o terror é palavra-chave. Em relação ao filme, o título em português já provoca uma reflexão meio irônica: a guerra diz ser ao terror, mas todo o terror que vemos é provocado pela própria guerra!

O terror está em dois planos: o dos atos e o das subjetividades. No primeiro, vemos a guerra como ela é: sem qualquer sentido ou resultado mais consistentes, apesar dos discursos propagandeados; a violência em suas mais variadas formas, seja a serviço das forças de “ocupação”, seja a serviço da guerrilha de “resistência” com suas táticas... bem, polêmicas – para dizer o mínimo. Mas o que recebe maior destaque no filme é o plano subjetivo. O terror está dentro dos corações dos soldados norte-americanos, naquela velha situação: longe de casa, em um ambiente inóspito, lutando contra um inimigo quase invisível para quem a morte é uma recompensa... lutando para que mesmo?

Isso nos leva a interpretar o título em outra dimensão: a guerra ao terror de que Kathryn Bigelow fala é, na verdade, travada dentro dos seus próprios combatentes. É uma guerra psíquico-emocional contra terrores internos: o medo da morte, as incertezas das mais variadas, a banalização da violência, etc. É aí que chegamos ao protagonista, verdadeiro contraponto à situação geral. O jovem sargento William James, especialista no desarme de bombas, é “viciado” na guerra, como se esta fosse uma droga – conforme a proposta do filme, explícita já na epígrafe. No entanto, não creio que “droga” seja a melhor das metáforas para essa ocasião.

Não se formos entender as drogas como uma anomia social, como algo que está “fora do sistema”, opondo-se a ele e procurando desestabilizá-lo... enfim, as drogas vistas como ilegalidade, como crime. Logicamente, uma caracterização assim não se aplica à guerra, principalmente à Guerra do Iraque: ela pode ser impopular, mas é tecnicamente legítima (para o Estado norte-americano, pelo menos). Todos sabemos que a invasão do Iraque foi calculada e planejada para trazer benefícios bem específicos ao “sistema” (petróleo?). Essa “guerra” não é algo que simplesmente estourou... Trata-se, sim, de uma operação militar dotada de toda a logística própria.

Desse modo, a guerra em questão não poderia ser uma droga, mas uma empresa. Uma multinacional como quaisquer outras, incluindo dentro de si, da sua lógica bem particular e de suas atividades resultantes a figura do “workaholic”. Eis a pedra de toque. William James não é um “nóia”, um “junkie”; ele é um viciado em trabalho como muitos jovens executivos que são aprofundamente apaixonados pelo que fazem e ilimitadamente ambiciosos. A postura egocêntrica e egoísta do sargento aponta para a do “bom profissional”: James não é um guerreiro, um soldado, e seguramente não age como tal; ele é um profissional com a tarefa exclusiva de desarmar bombas.

O filme realiza muito bem a sua caracterização: a maneira como ele guarda artefatos das bombas que desarma, feito “souvenirs”; seu comportamento profundamente compenetrado durante a realização da tarefa, e compenetrado não no sentido de quem está na linha de frente prestes a virar picadinho com uma repentina explosão, mas no sentido de alguém que precisa simplesmente fazer um trabalho bem feito; a maneira como ele suspira e fuma um cigarro após uma das missões, exalando contentamento, quase como se tivesse acabado de ter um orgasmo (é a melhor cena do filme); o fato de ele não conseguir “voltar” para casa, para a família e para a vida normal, preferindo a guerra como o grande amor de sua vida (o “diálogo” que ele tem com seu filho bebê é bastante significativo).

É claro que William James terá os seus momentos de dúvida, de angústia, de lágrimas, de terror... Mas estes acabam passando. Apesar de não dar a mínima para a sua família, para a segurança de seus companheiros e para a sua própria, ele se envolve sim com pessoas: a relação que cria com o menino Beckham parece autêntica. O protagonista não é uma máquina de trabalhar ou de matar. Mas parece entender realmente a lógica da guerra no Iraque e cumpre-a bem: é um sujeito que realiza com eficiência os atributos delegados a ele dentro da “operação”, dentro do empreendimento de manutenção da segurança, da liberdade, da democracia e da reconstrução do Iraque...

Não que ele acredite e engula toda essa conversa fiada. Como “funcionário” do governo, ele não precisa acreditar; é só fazer o seu trabalho direito e esperar o contra-cheque no final do mês. Tanto porque o seviço militar não é mais obrigatório nos EUA, o que torna a discussão aqui bem diversa daquela que se fazia em relação ao Vietnã ou a qualquer das guerras “tradicionais”. O exército dos Estados Unidos hoje em dia é uma escolha profissional e uma carreira a ser seguida. Com isso tudo, concordamos com a diretora que a guerra vicie; mas ela vicia não feito uma droga, e sim como uma tarefa que se torna hábito, como um trabalho, como um “desafio” a ser vencido – o que inclui os jogos, mesmo os de videogames. Não é legal?

4 comentários:

  1. Bela crítica. Especialmente porque traz algum significado ao título nacional até então medíocre. Eu gostei muito do filme, especialmente da direção e da montagem - mas acho o roteiro falho e episódico demais. Não entendo a superestimação da crítica, portanto.

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  2. Oi, André. Parabéns pela crítica! Assisti ao filme e resolvi ver se você já tinha escrito alguma coisa sobre ele (sim, eu acompanho seu blog sempre que possível). O filme é excelente, para mim, por dois grandes motivos. O primeiro deles é a ausência do discurso nacionalista estadunidense, muito comum nos tradicionais filmes de guerra, o qual afirma serem os EUA os grandes defensores da liberdade e da democracia mundial. Ao meu ver,o longa toma o caminho oposto ao retratar a guerra vivida cotidianamente pelos soldados que, como você disse, torna-se tão banal quanto o dia-a-dia em uma empresa. Outro aspecto relevante é o realismo praticamente cru: o filme parece, na maior parte das vezes, tratar-se de um documentário feito pelos próprios soldados. Kathryn Bigelow é, de fato, digna de todas as críticas que li até agora.

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  3. Olá, Gabi! Que legal que você está por aqui!

    Essa crueza no filme é bem adequada mesmo à proposta dele, é por aí que se fazem bons filmes (forma = conteúdo).

    Wally: O título original é bem mais interessante mesmo...

    Abraços!

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  4. Oscar de melhor filme, roteiro original??
    Brincadeira!

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