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quarta-feira, outubro 28, 2009

Distrito 9


A visão da barbárie é sempre perturbadora. Por melhor que conheçamos tanto os muitos exemplos históricos da barbárie quanto os não menos copiosos discursos que a denunciem, a cada vez que testemunhamos (na “realidade” ou na “ficção”) algum ato de extrema ignorância associada à extrema crueldade parece que estamos (re)vivenciando o verdadeiro pecado original. E o cinema é um veículo particularmente privilegiado para tais experiências.

No entanto, o próprio tecido da realidade captada com tanta competência pelo cinematógrafo pode não ser apreendido pelo espectador como o real em si. Isso porque nossa visão excessivamente ideologizada do que chamamos de realidade nos impede, muitas vezes, de ver a coisa em si; acabamos enxergando nada mais do que figurações dos nossos (pre)conceitos. É aí que o cinema deverá tomar as armas da Literatura. É só através do inesgotável poder da sugestão que a sétima arte atingirá sua maior expressividade.

Assim, demos vivas à criatividade que busca sempre o mais inusitado, à fabulação, à literatura fantástica e ao realismo mágico como fontes de filmes que, ao “fantasiar”, conseguem nada menos do que desnudar o real das fantasias perversas que nós mesmos inventamos. É justamente essa a função da arte: a sublimação da vida para melhor favorecer a própria vida. Isso explica o porquê de usar extraterrestres para mostrar o apartheid na África do Sul.

Em tempos de globalização e aquecimento global, o etnocentrismo já não é – quem sabe – o maior dos nossos problemas. É preciso criticar os próprios conceitos de “antropocentrismo” que adotamos. Filmes como O Dia Em Que A Terra Parou (2008, mas cuja versão original é de 1951) e Fim dos Tempos (2008) já vão investindo nessa linha. Mas é Distrito 9 (2009) que realmente promete. A ficção científica já trabalhou bastante tanto com ETs maldosos quanto com os bonzinhos, mas ainda é raro vermos a própria humanidade colocada como a espécie hostil.

Além dos exemplos já citados, ocorrem ainda o de Tropas Estelares (1997) e o da série de TV Alien Nation (1989). Quem se lembrar de outros, por favor comunique-se. Agora, palmas para Peter Jackson (mais uma vez) – o produtor; e também para Neill Blomkamp – o estreante diretor e um dos roteiristas. Não só graças ao talento, mas também graças à bagagem cinematográfica e literária, consegue-se através de um filme de gênero mostrar e discutir melhor o mundo contemporâneo do que filmes “cabeça” e “experimentais” do tipo de Babel (2006).

quarta-feira, outubro 21, 2009

Polêmica

Deixa Ela Entrar
Carta publicada no Guia da Folha, em 09 de outubro:

‘“Fui ao Espaço Unibanco Pompéia assistir ao filme “Deixa Ela Entrar”. Durante a sessão (formada por 60% de adolescentes), umas dez pessoas levantaram. Um casal ao meu lado ficou resmungando o tempo inteiro: “Que lixo!”. Sabe qual foi o problema? As pessoas que resolveram vender o filme como “se você gostou de ‘Crepúsculo’, vai gostar desse”. Nada a ver. Em comum, apenas a temática “vampiresca”.”’

Uma semana depois (dia 16), saiu a seguinte:

‘“Concordo em gênero, número e grau com a leitora (o nome não vem ao caso agora)... sobre a incoerência da propaganda que convida os fãs do sucesso adolescente “Crepúsculo” para assistirem a “Deixa Ela Entrar”. Seria como convidar o público de “High School Musical” para conferir “Anticristo” (o autor deste blog acredita que a citação a “Dançando no Escuro”, também de Von Trier, seria mais pertinente). Parece que, infelizmente, na ânsia por bilheteria, vale mesmo contrariar até a lógica mais elementar e o bom senso.”’

Concordamos com ambos. A “campanha” feita a Deixa Ela Entrar é absolutamente infeliz. Exceto, talvez, pelo “teaser trailer”, que dizia assim: “filmes sobre vampiros estão na moda... mas este ganhou 53 prêmios internacionais...”

De qualquer maneira, encerro – pertinentemente ou não – com uma reflexãozinha que pipocou em meu cérebro estes dias: enquanto publicitário for metido a artista e economista for metido a filósofo, o mundo continuará perdido...

sábado, outubro 03, 2009

Deixa Ela Entrar


Palavra de ordem: a experiência da juventude no cinema deve ser registrada a contrapelo (termo retirado de Walter Benjamin). Ou seja, deve-se mostrar o universo adolescente ao contrário do que se espera, ao contrário do que seria o “normal”; sob o risco de, se isso não for feito, contribuir para a destruição, a banalização, a massificação dos indivíduos em sua diversidade e valor criativo, transformador. Vivemos tempos sombrios, em que filmes sobre adolescentes transformaram-se demais em filmes para adolescentes. Quando se incluem no jogo as histórias de vampiros, o cenário fica ainda mais assustador.

De Bram Stoker a Anne Rice, passando por poetas da personalidade de Charles Baudelaire, a figura do vampiro sempre representou a entrega às paixões, aos desejos, aos instintos mais essenciais da nossa humana natureza animal. É claro que de maneira problematizadora, com toda a ambiguidade, os dilemas e as contradições barrocas do indivíduo eternamente dividido entre carne e espírito – e isso vai muito além de uma mera questão “moral”. Agora, numa época dominada por produtos da marca de “Crepúsculo”, só temos a lamentar o empobrecimento da figura e experiência humanas, a vilipendiação de de questões muito sérias e profundas.

Lamentamos e tememos as consequências de tais “grifes” para a diversidade cultural. A barbárie volta a nos espreitar. Quem cresceu lendo e assistindo ao Drácula (o de Bram Stoker e o de Francis Ford Coppola) e à Entrevista com o Vampiro (a de Anne Rice e a de Neil Jordan) será simplesmente muito difícil se conformar com a direção da atual moda dos vampiros. Mas não estamos aqui para falar do que não presta. E sim, para mostrar que ainda há esperança, que ainda existe a exceção, que ainda se fazem filmes sobre jovens e sobre vampiros que vão a contrapelo.

Eis o caso de Deixa Ela Entrar (“Let The Right One In”, Suécia, 2008, dir.: Tomas Alfredson). Enquanto coisas como Twilight são produzidas pela mesma cultura da qual fazem parte os famigerados bullies, “Deixa Ela Entrar” é quase um manifesto revolucionário das vítimas deles. Por isso, é absolutamente ridículo o marketing do filme, que tenta arvorá-lo a seu primo rico dizendo que quem é fã deste também o será daquele. Quem gosta mesmo de “Crepúsculo” não vai gostar (pelo menos, não tanto) de “Deixa Ela Entrar”. São públicos diferentes.

Mesmo correndo o risco de cair na simplificação excessiva que quero tanto criticar aqui, explicarei de maneira bem didática: o primeiro tipo de público (as diversas facetas dos “bullies”) seria formado pelo atleta da escola, pela princesinha líder de torcida, pelo valentão “sarado”, pelos gatões e pelas gatinhas, pelos playboys e patricinhas; no segundo time, teríamos os nerds, os feios (e feias), os esquisitos, os alternativos (góticos, emos, indies ou o que quer que seja), os solitários, os godinhos demais (ou magrinhos demais), os pobretões, etc.

“Deixa Ela Entrar” é a (auto) afirmação das diferenças – dos diferentes. É um filme muito bonito em sua feiúra, em seu grotesco, em seu bizarro. É para os fãs, verdadeiros, do universo de artistas como Tim Burton, Guillermo del Toro e Gus Van Sant. A propósito, em relação a este último, a estética utilizada por Tomas Alfredson parece prestar-lhe tributo na câmera próxima demais dos personagens, como que tentando desvendar-lhes as profundezas. A preferência pelos jovens párias, os “outcasts”, também pode ser reputada ao gosto de Van Sant, diretor de Elefante (2003). De resto, a mise en scène apresenta o rigor e a serenidade dos cineastas mais contemplativos, na linha de Tarkovski, Herzog ou Dreyer.

Falando em Carl Theodor Dreyer, diretor de O Vampiro (1932), também sueco, vê-se que “Deixa Ela Entrar” lida muito bem com a tradição das velhas fitas do terror meditativo nórdico. Também nos lembramos de A Carruagem Fantasma (1921), do dinamarquês Victor Sjöström, de cuja tétrica trilha sonora ouvimos alguns ecos na fita de Alfredson. Não há nada de expressionista neste filme, que não se fale no Nosferatu de Murnau. “Deixa Ela Entrar” está mais puxado num realismo mágico-poético. Está mais para um conto de fadas macabro do que para uma história de terror.

É de uma sensibilidade rara hoje em dia.