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sábado, novembro 15, 2008

007 - Quantum of Solace


E então, a grife Bond produz o seu biscoito mais fino. A ambição e o alcance deste 007 – Quantum of Solace (EUA, 2008, dir.: Marc Forster) revelam-se com grande classe na cena da perseguição durante uma apresentação da ópera La Tosca, de Giacomo Puccini. Tudo a ver. Puccini talvez seja o mais próximo que a ópera chegou do que seria o cinemão, em termos de um apelo estético que lhe rendeu enorme popularidade – à custa da proscrição por parte dos críticos, logicamente. Quantum of Solace é todo operístico: uma construção extremamente apelativa aos cinco sentidos e aos incontáveis sentimentos, junto de algumas fortes pitadas de erudição, de temas e idéias “sérios” e “importantes”. Entretém e faz pensar. Pelo menos, essa parece ser a proposta do filme. Como eu disse, um biscoito fino. Industrializado, mas com uma aura artesanal.

Não muito diferente, na carreira do diretor Forster, de O Caçador de Pipas (2007, embora este seja uma forma de embuste das mais nojentas). Ainda prefiro Mais Estranho que a Ficção (2006). Os filmes de James Bond, o mítico 007, sempre extraíram a sua força dos fetiches mais essenciais da sociedade de consumo. Eis a alma do negócio, que sempre ajudou a vender (psicologicamente) carros-esporte, smokings, relógios caros, bebidas alcoólicas, destinos turísticos, armas (por que não?) e o charme do homem “macho” bem sucedido, conquistador, “bom vivant”, “playboy”. Mas hoje, era de uma (falsa?) consciência ambiental, social, global, o sonho capitalista passou a se tornar um problema para a própria indústria cultural do capitalismo. O que fazer?

Abandonar a franquia 007 e fazer filmes “de arte”, filmes-denúncia, documentários? Também não é para tanto. Basta colocar alguns elementos “sérios” nas peripécias do mais famoso agente do MI-6, misturando-os ao DNA já clássico da série, que tudo estará bem. O grande público vai gostar, os críticos também, ninguém vai reclamar (muito). Estou apenas especulando a respeito da lógica da “modernização” deste novo 007. Será um exagero compará-lo – descuidadamente – a Jason Bourne, este sim o espião sério que põe em movimento as engrenagens da inteligentzia pós-moderna. Mas as tentativas de legitimação no mundo globalizado de um dos mais famosos heróis da guerra fria vêm se acumulando e se aprofundando desde Goldeneye (1995).

Não vou ficar aqui discorrendo muito sobre as transformações – e “amadurecimentos” em James Bond e suas aventuras. Apenas direi que neste filme, particularmente, ele está mais sério do que nunca. Sério demais. Cadê a famosa joie de vivre dangerement que dá a graça às aventuras deliciosamente inverossímeis do agente 007? Quero dizer, soa ridículo tentar dar legitimidade intelectual a algo que é uma das mais “tolas” (e maravilhosa por isso mesmo) expressões da indústria do entretenimento. Ou se continua fazendo 007 de verdade (com as devidas variações dentro do limite do gênero), que é o que todos nós queremos ver, ou se parte para fazer mais aventuras – e desventuras, principalmente – de Jason Bourne. Nós estamos matando sistematicamente todos os heróis – no sentido clássico do termo: o novo Super-Homem, o novo Batman, o novo James Bond, todos eles se tornaram humanos, demasiadamente humanos...

No fundo, é a desmitologização dos heróis. Acho que a concessão de humanidade que se pode fazer aos heróis tradicionais vai só até certo ponto. A partir daí, talvez seja melhor criar outros (anti-) heróis, mais adequados ao mundo contemporâneo, se é isso o que se quer. Assim, é irônica a troca de palavras entre Bond e a sua chefe, M (a qual sente bastante as transformações de seu agente): ela diz “queremos você de volta”, e ele responde “eu nunca os deixei”. Bem, será que o velho Bond vai um dia voltar, apesar do slogan de promoção do filme (“Bond is back”)? Mas, voltando ao principal (a “ópera pop” de Quantum of Solace). A cena de Puccini é muito esclarecedora a respeito do caráter deste filme. Ela simboliza o filme de uma maneira que eu duvido que tenha sido consciente para o diretor ou para o roteirista.

A montagem que vemos de La Tosca é uma daquelas super-produções teatrais, com direito a todos os efeitos especiais, a pirotecnia, os cenários gigantescos, etc. Exatamente como Quantum of Solace em relação ao cinema. E também exatamente como Quantum of Solace, temos em La Tosca o uso dos mais avançados e caros recursos do entretenimento em favor de um conteúdo inteligente (a ópera clássica ali, a temática política do filme aqui). Mas será que é em favor do conteúdo, de verdade? Ou será que a pirotecnia aliada ao “conteúdo” servem apenas para a auto-promoção da obra em si, enquanto produção cara da indústria de entretenimento? A montagem do filme trabalhou muito expressivamente com o paralelo entre a ópera se desenrolando no palco e a ação “bondiana” se enrolando e desenrolando nos bastidores.

Mas, antes que se lembre de O Poderoso Chefão (1972) ou de O Homem Que Sabia Demais (1956), pense-se na diferença entre arte e publicidade (diferença enorme, embora muitas vezes despercebida). Na busca apenas publicitária pela legitimação da franquia, contratou-se desta vez o roteirista-estrela-cult Paul Haggis. A façanha conquistada foi esta: sem abandonar de forma alguma – na essência – a visão etnocêntrica (e colonialista), Quantum of Solace foi capaz de “cutucar as feridas” do imperialismo mais sutil e contemporâneo, dificilmente sequer citado por uma fita do cinemão. O filme, no final das contas, coloca a responsabilidade por esse imperialismo (a ajuda dos EUA em golpes militares na América Latina, por exemplo) nas mãos de uns poucos indivíduos que se utilizam (mal) do poder do Primeiro Mundo. Tais indivíduos serão exemplarmente identificados, arrancados de suas funções e punidos, recompensando-se os agentes bons, honestos e trabalhadores (Bond, Leister, M).

Ou seja, não se cutuca o fundo da ferida, não se questionam as relações profundas – e reais – de poder e de abuso de poder entre as nações. Ações imperialistas escusas como as que vemos no filme não são uma anomia, um desvio do poder provocado por um punhado de vilões corruptos; elas estão no próprio centro do poder, fazem parte de sua natureza e história, espalhando-se estruturalmente desde os seus agentes mais altos até os mais baixos. A “crítica” que Quantum of Solace faz das relações internacionais nada mais alcança do que contribuir para a legitimação (simbólica) do que tais relações têm de pior. Assim, prefiro muito mais a ingenuidade dos filmes clássicos de 007, com o nem-um-pouco-sério Sean Connery e vilões da estirpe de Dr. No, Octopussy, etc. Antes a mais pura fantasia do que a deturpação perigosa da realidade, perigosa porque pseudo-realista.

terça-feira, novembro 04, 2008

O Homem Que Ri


Filme exibido na 32ª Mostra de Cinema de São Paulo.

Assistir a um clássico da era muda, na tela grande e com a trilha sonora executada ao vivo, é uma experiência indispensável. Domingo retrasado (dia 26), ocorreu a exibição especial de O Homem Que Ri (“The Man Who Laughs”, EUA, 1928, dir.: Paul Leni) com acompanhamento musical ao vivo pelo grupo Octour de France. A música, de temas envolventes, contribui bastante para o clima romanesco da história, que conta a vida de Gwynplaine, palhaço com um desesperador sorriso permanente, marcado para sempre na sua face através de cirurgia plástica, pelos ciganos que o adotaram quando criança e mais tarde abandonaram (Gwynplaine é o filho perdido de um Lorde perseguido pelo rei).

Já na fase adulta, o clown se encontra feliz como artista mambembe e namorado de uma moça cega (Dea), também da carreira circense. Então, sua verdadeira identidade nobre é descoberta por cortesãos não muito caridosos, que tentarão usar o pobre Gwynplaine como arma no delicado jogo de poder da aristocracia. Conseguirá o homem que ri escapar desta? O roteiro tem a ingenuidade dos romances de aventuras do Antigo Regime, mas a moral e a temática social veiculadas parecerão interessantes a quem gostar dos filmes de Tim Burton, por exemplo – trata-se das velhas questões do paria, do “gauche”, do bizarro na chave romântica (a identidade peculiar do diferente puro, por isso, melhor do que o normal corrupto).

O Homem Que Ri talvez seja uma espécie de “fantasma da ópera” picaresco. O talento de Conrad Veidt (de O Gabinete do Dr. Caligari e de Casablanca) como Gwynplaine é arrebatador. É o tipo do ator que não apenas interpreta um papel; ele lança um mito, todo um novo conceito. Não é à toa que o arquetípico Coringa, criado pelas mentes demiúrgicas das histórias do Batman (Bill Finger, Bob Kane e Jerry Robinson), deve muito, mas muito a Gwynplaine, o homem sorridente. Ah, o caráter romântico / “burtoniano” deste filme não é mesmo à toa: “O Homem Que Ri” é um romance de Vitor Hugo (grande expoente do Romantismo francês, autor de Os Miseráveis), raríssimo de ser encontrado em português.

sábado, novembro 01, 2008

Choke


Filme exibido na 32ª Mostra de Cinema de São Paulo.

Choke (EUA, 2008, dir.: Clark Gregg) é um daqueles filmes deliciosamente bizarros do cinema “independente” norte-americano que só fazem sentido em relação ao contexto cultural do país dividido entre as costas (“east” e “west”) cosmopolitas e o “bible belt” (o cinturão da bíblia: a América profunda). Quanto ao nosso velho Brasil, um personagem “apenas” viciado em sexo com mulheres que ele conhece casualmente parecerá mais um herói do que uma anomia social (Macunaíma gosta é de “brincar”). Talvez, se se tratasse de um indivíduo das classes populares (digamos, um empregado de “pet shop”) que fosse viciado em sexo com cachorrinhos de madames, aí teríamos algo mais ao nosso gosto nacional.

Mesmo assim, Choke não deixa de ser um filme bastante engraçado, ainda mais se o virmos com esse olhar de superioridade que o “libertino” tem em relação a uma cultura reprimida, recalcada, sublimada, neurótica, eventualmente psicótica. Alguns de nós até poderão ficar um pouco escandalizados com a sátira religiosa que o filme tenta; mas esta, assim como todos os outros elementos “imorais” da história, no fundo servem a uma “moral da história”, posto que mais democrática, humanista, individualista. Mesmo assim, moral. Questão de princípios. É a “moral” das sessões de psicoterapia, dos livros de auto-ajuda, daqueles cursos que ensinam a “viver” (bem), das novas espiritualidades e religiosidades da “nova era”.

Se esses são valores criticáveis ou não (e em que medida), isso é uma outra história; mas tais idéias formam um retrato bastante comum e abrangente da nossa sociedade (inclusive a brasileira). “O sucesso é ser feliz”: eis a chave de Choke. O filme conta as aventuras picarescas de Victor Mancini (o sempre irreverente Sam Rockwell), ex-estudante de medicina que trabalha num ridículo parque temático e que tem desenvolvido um curioso sistema para pagar as contas do hospital psiquiátrico no qual está internada a mãe doente: ele vai a restaurantes e provoca engasgamentos (“choke”) em si próprio, esperando ser salvo por almas caridosas que, após o ocorrido, lhe darão carinho, atenção e – sobretudo – dinheiro.

E Victor ainda encontra tempo para freqüentar sessões do AA do sexo (dependentes de sexo anônimos), junto com o seu melhor amigo, Denny – viciado em masturbação. No hospital da mãe, Victor conhecerá uma médica que lhe revelará a verdade sobre o seu pai (Victor nunca conhecera o progenitor); é aí que ele vai se “engasgar” de verdade... O diretor, Glark Gregg, é um daqueles rostos que sempre vemos por aí, em seriados e filmes, mas nunca sabemos quem é; como ator, ele trabalhou recentemente em The New Adventures of Old Christine (TV) e Homem de Ferro. Choke é seu primeiro filme como diretor, assinando também o roteiro, que se baseia num romance de Chuck Palahniuk – autor de uma outra obra bizarra que virou filme: “O Clube da Luta”.