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sábado, agosto 09, 2008

The Science of Sleep


A ciência do sono? A arte do sono. Para a Psicologia Analítica de Jung, são as vivências íntimas que definem o sujeito, no constante e turbulento processo de individuação. E o mais maravilhoso de tudo, é que há sujeitos com uma riqueza avassaladora de conteúdos psíquicos em seu universo interior. Pode parecer tudo muito romântico isto, mas é do tipo de romantismo que só faz bem. Trocando em miúdos, tratam-se daquelas pessoas que “viajam na maionese”, pessoas que sonham tanto dormindo quanto acordadas – o devaneio, ou “daydream”, é a fonte mais essencial de boa parte da grande poesia e da grande arte que fazem com que nos orgulhemos de sermos humanos. Nada mais do que humanos. Mas também nada menos.

Os sonhos: não importa qual seja a sua fórmula – tão sucintamente explicada pelo personagem de Gael Garcia Bernal –: não interessa se os sonhos são construídos no inconsciente à base dos processos de condensação e deslocamento com vistas a expressar conteúdos reprimidos pelo ego; assim como não tem qualquer relevância a hipótese de os mesmos sonhos serem atualizações de velhos arquétipos que promovam a comunhão do indivíduo com a alma íntima de toda a espécie humana. Os nossos melhores sonhos (tanto o “nightdream” quanto o “daydream”) são assombrosamente dotados de imagens voluptuosas. Algumas delas de grande e perturbadora volúpia, e não só no velho e manjado sentido sexual.

Representar artisticamente a tão famosa atmosfera onírica é algo tão difícil quanto fascinante, um desafio que marca sua viva presença em toda a história da cultura humana. Uma das mais ricas soluções para isso é a escolha por imagens desconcertantes. Simples assim. Imagens construídas a partir de elementos que não sejam apenas concretos – obviamente –, mas que expressem, exalem, derramem, gritem sua “concretude” a plenos pulmões. Imagens fortes, chocantes, curiosas, inquietantes, que expressem (o Expressionismo onírico) e que impressionem (o Impressionismo, também sonhador). Mas tudo isso é paradigmático. Quanto ao plano do sintagma, a grande “arte do sono” busca combinações não menos criativas entre tais imagens (o Surrealismo, a conexão metafórica entre elementos dos mais distantes entre si).

Eis a tão peculiar linguagem do sonho. Eis a tão peculiar imagética utilizada por Michel Gondry em The Science of Sleep (“La Science des Rêves”, França, Itália, 2006). Um belo filme de imagens desconcertantes, concretas e abstratas a um só tempo, objetivas e subjetivas, reais e imaginárias – as fronteiras em questão são mais do que cambiáveis. Acredito que a grande vocação do Cinema não seja a épica (imagens da realidade exterior), mas a lírica (a tão fugidia realidade “interior”). Um cinema de poesia, que objetiva a subjetividade, e subjetiva a objetividade. Antropomorfismo e Cosmomorfismo, na expressão tão feliz de Edgar Morin (em “O Cinema ou o Homem Imaginário”). Eis a grande metafísica da Sétima Arte.

Tentar mostrar, o tanto quanto se deseja, tudo aquilo que não é passível de ser mostrado. Eis o heróico e o ridículo dos filmes. Como eu disse a respeito de Be Kind Rewind (2008), a decupagem, a construção material das imagens neste “A Ciência do Sono”, também de Michel Gondry, emula algo dos pioneiros do cinema, algo de Méliès, Zecca e cia. Os movimentos desajeitados do cavalo onírico de Gondry parecem uma resposta ao cavalo “real” de Muybridge (que realizou a primeira filmagem da história, em 1872). Uma resposta que diz: o cinema não está lá fora, mas aqui dentro... Além do mais, The Science of Sleep compõe, junto de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembrança (2004), o grande par das histórias de amor disfuncionais (apesar de tal classificação ser terrivelmente banal, deixando de lado toda a magnífica sensibilidade e sutileza dessas obras). The Science of Sleep jamais foi exibido no circuito comercial brasileiro, tampouco foi lançado em DVD.

Para encerrar, deixo este filme como receita a todos os corações sonhadores, criativos e sobretudo os apaixonados, mas tímidos...

3 comentários:

  1. Já que o assunto é Gondry, e qto a Human Nature, vc já o assistiu?

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  2. Ahh senhor André... such a weird place!
    Há certos sentidos inexplicáveis pela realidade; pelo menos essa vivida hoje por grande parte das pessoas. Acredito que 'The science of sleep' mostra uma realidade alternativa, guardada no interior mais humano (e por vezes ainda não descoberto) das pessoas.
    No mundo mais real possível podemos tentar enganar até a nós mesmos, mas nos sonhos... ah, nos sonhos vivemos a nossa realidade.
    Eu recomendaria esse filme a todos que quiserem se lembrar do quanto é bom ser humano (um ser sem uma programação corriqueira) e como a realidade vivida normalmente não tem nada de real para os eternos sonhadores...

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  3. Ainda nõ vi "Human Nature"! Mas já está na lista...

    Carol: mais uma vez, você disse tudo!

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