The Wave (EUA, 1981, dir.: Alexander Grasshoff) é um filme com uma daquelas histórias notáveis. É um média-metragem (44 minutos) feito para a TV, baseado em fatos reais, mas bem diferente, no conteúdo, das fitas do “Supercine” da Rede Globo. Trata de um professor de História, Ben Ross (vivido por Bruce Davison, um daqueles rostos onipresentes em diversos seriados da TV norte-americana), que fica sem saber responder a uma pergunta bastante perigosa de uma aluna sua, feita durante uma aula sobre o nazismo: “Por que é que o povo alemão aceitou a barbárie de Hitler, por que eles não se revoltaram?” Daí, o professor Ross fica dias lendo e pesquisando seus livros, até decidir empreender um complexo e ambicioso projeto didático-pedagógico para responder a tal dúvida (por conta própria e sem comunicar a ninguém as suas verdadeiras intenções, dentro do típico espírito do pragmatismo e do pioneirismo que caracterizam o entusiasmo norte-americano).
O projeto é: um belo dia, o professor chega à classe e começa a pregar o valor da disciplina, do poder que se pode conquistar através da disciplina. Ao longo dos dias, ele vai desenvolvendo e desdobrando as idéias, até chegar no conceito de comunidade, de uma comunidade igualitária, organizada e eficiente, e na importância da “ação” para se ter tais conquistas. Como resultado, ele funda uma pequena comunidade, a partir de sua classe, chamada “The Wave” (A Onda – repare em todas as implicações simbólicas do vocábulo), que acaba por englobar toda a escola. No começo, o grupo possui as características de uma nova seita entusiástica; porém, com o passar do tempo – e com as inevitáveis oposições – “A Onda” torna-se um “partido” agressivo e repressor. Mesmo assim, o professor Ross segue adiante com o projeto.
Fascinado com as múltiplas implicações e repercussões da Onda, o professor (sempre muito lúcido) diz uma frase altamente significativa para a sua esposa – a única que sabe de toda a verdade: “It’s incredible how much they like you when you make decisions for them!” (“É incrível o quanto eles passam a gostar de você, quando você toma decisões por eles!”). Este é um dos –vários – momentos em que se revela a tese do filme. Eis o fio d’água nascente que vai, muito adiante (encorpando-se com vários outros rios), formar a bacia hidrográfica do nazismo e de outros totalitarismos. Em minha própria experiência de professor, faço minhas as palavras do professor Ross. O que ele diz é altamente verdadeiro e incrível mesmo! O perigo é o professor gostar e acostumar-se com esse “poder”. De minha parte, como profissional, abro mão: prefiro continuar com os alunos me “detestando”...
Está claro que o professor Ross usou o micro-cosmo da escola, enquanto instituição que representa as forças e idéias que compõem a sociedade, ao mesmo tempo que contribui na orientação de seus rumos, para criar “em laboratório” uma sociedade nazista. Isso é o que eu chamo de ensino “construtivista”... Uma situação relativamente parecida está no clássico romance da Literatura Brasileira, “O Ateneu”, publicado em 1888 por Raul Pompéia. Um filme como The Wave ilustra muitos tópicos das discussões sobre Pedagogia e sobre a Escola enquanto parte essencial da sociedade. De todas elas, eu separo aqui o ensaio “Educação após Auschwitz”, escrito pelo filósofo Theodor W. Adorno e que faz parte do livro “Educação e Emancipação”. Recomendo MUITO esse texto para qualquer pessoa que possua qualquer interesse no papel que a educação e a escola têm ou deveriam ter na sociedade. Aí vão alguns trechos:
“A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la. (...) Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. É isto que apavora.
(...)
É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos. (...) A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica.
(...)
A pressão do geral dominante sobre tudo que é particular, os homens individualmente e as instituições singulares, tem uma tendência a destroçar o particular e individual juntamente com seu potencial de resistência. (...) Talvez elas (as pessoas) mal tenham condições de resistir quando lhes é ordenado pelas forças estabelecidas que repitam tudo de novo, desde que apenas seja em nome de quaisquer idéias de pouca ou nenhuma credibilidade.
Quando falo em educação após Auschwitz, refiro-me a duas questões: primeiro, à educação infantil, sobretudo na primeira infância; e, além disto, ao esclarecimento geral, que produz um clima intelectual, cultural e social que não permite tal repetição; (...)
(...)
Considero que o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da coletivização.
(...)
Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres auto-determinados. (...) O caráter manipulador (...) se distingue pela fúria organizativa, pela incapacidade total de levar a cabo experiências humanas diretas, por um certo tipo de ausência de emoções, por um realismo exagerado. (...) Nem por um segundo sequer ele imagina o mundo diferente do que ele é, possesso pela vontade de doing things, de fazer coisas, indiferente ao conteúdo de tais ações. Ele faz do ser atuante, da atividade, da chamada efficiency enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem ativo. (...) Se fosse obrigado a resumir em uma fórmula esse tipo de caráter manipulador, (...) eu o denominaria de o tipo da consciência coisificada. No começo as pessoas desse tipo se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida em que o conseguem, tornam os outros iguais a coisas.”
Como professor, eu cansei de ver escolas, principalmente particulares – algumas delas bem caras, famosas e “bem conceituadas” –, que exercem exatamente a educação contrária às recomendações de Adorno, uma educação a favor da barbárie e de Auschwitz. Isso me assusta MUITO! O perigo continua residindo, com muito prestígio, credibilidade e legitimação social, em sua fonte mais essencial. Há professores e diretores de escolas que assumem para si mesmos, como postura pedagógica, ideológica e pessoal, as idéias e as técnicas da “Onda” que, para o professor Ross, não passaram de um recurso – traumático – para ilustrar criticamente a barbárie totalitária. Enfim, The Wave, infelizmente, é um filme que acredito nunca ter sido lançado oficialmente no Brasil, seja em VHS, seja em DVD. Anos atrás, vi uma cópia péssima em VHS, aparentemente gravada da TV, com aquela dublagem antiga dos anos 80. Na Internet, circula uma cópia dublada e uma com áudio original e legendas em alemão (!)...
O projeto é: um belo dia, o professor chega à classe e começa a pregar o valor da disciplina, do poder que se pode conquistar através da disciplina. Ao longo dos dias, ele vai desenvolvendo e desdobrando as idéias, até chegar no conceito de comunidade, de uma comunidade igualitária, organizada e eficiente, e na importância da “ação” para se ter tais conquistas. Como resultado, ele funda uma pequena comunidade, a partir de sua classe, chamada “The Wave” (A Onda – repare em todas as implicações simbólicas do vocábulo), que acaba por englobar toda a escola. No começo, o grupo possui as características de uma nova seita entusiástica; porém, com o passar do tempo – e com as inevitáveis oposições – “A Onda” torna-se um “partido” agressivo e repressor. Mesmo assim, o professor Ross segue adiante com o projeto.
Fascinado com as múltiplas implicações e repercussões da Onda, o professor (sempre muito lúcido) diz uma frase altamente significativa para a sua esposa – a única que sabe de toda a verdade: “It’s incredible how much they like you when you make decisions for them!” (“É incrível o quanto eles passam a gostar de você, quando você toma decisões por eles!”). Este é um dos –vários – momentos em que se revela a tese do filme. Eis o fio d’água nascente que vai, muito adiante (encorpando-se com vários outros rios), formar a bacia hidrográfica do nazismo e de outros totalitarismos. Em minha própria experiência de professor, faço minhas as palavras do professor Ross. O que ele diz é altamente verdadeiro e incrível mesmo! O perigo é o professor gostar e acostumar-se com esse “poder”. De minha parte, como profissional, abro mão: prefiro continuar com os alunos me “detestando”...
Está claro que o professor Ross usou o micro-cosmo da escola, enquanto instituição que representa as forças e idéias que compõem a sociedade, ao mesmo tempo que contribui na orientação de seus rumos, para criar “em laboratório” uma sociedade nazista. Isso é o que eu chamo de ensino “construtivista”... Uma situação relativamente parecida está no clássico romance da Literatura Brasileira, “O Ateneu”, publicado em 1888 por Raul Pompéia. Um filme como The Wave ilustra muitos tópicos das discussões sobre Pedagogia e sobre a Escola enquanto parte essencial da sociedade. De todas elas, eu separo aqui o ensaio “Educação após Auschwitz”, escrito pelo filósofo Theodor W. Adorno e que faz parte do livro “Educação e Emancipação”. Recomendo MUITO esse texto para qualquer pessoa que possua qualquer interesse no papel que a educação e a escola têm ou deveriam ter na sociedade. Aí vão alguns trechos:
“A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la. (...) Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. É isto que apavora.
(...)
É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos. (...) A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica.
(...)
A pressão do geral dominante sobre tudo que é particular, os homens individualmente e as instituições singulares, tem uma tendência a destroçar o particular e individual juntamente com seu potencial de resistência. (...) Talvez elas (as pessoas) mal tenham condições de resistir quando lhes é ordenado pelas forças estabelecidas que repitam tudo de novo, desde que apenas seja em nome de quaisquer idéias de pouca ou nenhuma credibilidade.
Quando falo em educação após Auschwitz, refiro-me a duas questões: primeiro, à educação infantil, sobretudo na primeira infância; e, além disto, ao esclarecimento geral, que produz um clima intelectual, cultural e social que não permite tal repetição; (...)
(...)
Considero que o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da coletivização.
(...)
Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres auto-determinados. (...) O caráter manipulador (...) se distingue pela fúria organizativa, pela incapacidade total de levar a cabo experiências humanas diretas, por um certo tipo de ausência de emoções, por um realismo exagerado. (...) Nem por um segundo sequer ele imagina o mundo diferente do que ele é, possesso pela vontade de doing things, de fazer coisas, indiferente ao conteúdo de tais ações. Ele faz do ser atuante, da atividade, da chamada efficiency enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem ativo. (...) Se fosse obrigado a resumir em uma fórmula esse tipo de caráter manipulador, (...) eu o denominaria de o tipo da consciência coisificada. No começo as pessoas desse tipo se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida em que o conseguem, tornam os outros iguais a coisas.”
Como professor, eu cansei de ver escolas, principalmente particulares – algumas delas bem caras, famosas e “bem conceituadas” –, que exercem exatamente a educação contrária às recomendações de Adorno, uma educação a favor da barbárie e de Auschwitz. Isso me assusta MUITO! O perigo continua residindo, com muito prestígio, credibilidade e legitimação social, em sua fonte mais essencial. Há professores e diretores de escolas que assumem para si mesmos, como postura pedagógica, ideológica e pessoal, as idéias e as técnicas da “Onda” que, para o professor Ross, não passaram de um recurso – traumático – para ilustrar criticamente a barbárie totalitária. Enfim, The Wave, infelizmente, é um filme que acredito nunca ter sido lançado oficialmente no Brasil, seja em VHS, seja em DVD. Anos atrás, vi uma cópia péssima em VHS, aparentemente gravada da TV, com aquela dublagem antiga dos anos 80. Na Internet, circula uma cópia dublada e uma com áudio original e legendas em alemão (!)...
Evoé, André!
ResponderExcluirJá vi no Corujão anos atrás; é mesmo foda... tão bom que eu nem me lembrava que fosse assim tão curto, tamanho o impacto que teve sobre mim.
Pelo visto, felizmente você continua ainda muito lúcido. Saudades...
Abreijos textuais
Davis
Nossa, eu vi esse filme há muito tempo, quando ainda estava no meu segundo grau. Foi uma atividade da escola. Depois disso revi na tv. É, realmente, muito interessante toda a discussão.
ResponderExcluirExcelente lembrança, vou ver se acho para minha filha assistir.
Baixei a cópia, na verdade, com legendas em holandês. Gosto desses filmes sobre o nazismo feitos para a TV. Alguns são acima da média, como este A Onda, e A Conspiração, da HBO, que felizmente pude ver no cinema, sobre a conferência de Wannsee, com ótimo elenco, tipo Stanley Tucci, como Eichmann, o secretário da reunião, e Kenneth Branagh, assustador como o supostamente refinado Heydrich, decidindo burocraticamente sobre os detalhes de se livrar de milhões de judeus confinados em guetos e campos de trabalho. Um abraço.
ResponderExcluir"The Wave" desperta mesmo lembranças antigas e provoca efeitos profundos na gente, né? Fiquei interessado agora em ver esse "A Conspiração", David! Abraços a todos!
ResponderExcluir