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terça-feira, abril 29, 2008

The Wave

A Juventude Hitlerista
The Wave (EUA, 1981, dir.: Alexander Grasshoff) é um filme com uma daquelas histórias notáveis. É um média-metragem (44 minutos) feito para a TV, baseado em fatos reais, mas bem diferente, no conteúdo, das fitas do “Supercine” da Rede Globo. Trata de um professor de História, Ben Ross (vivido por Bruce Davison, um daqueles rostos onipresentes em diversos seriados da TV norte-americana), que fica sem saber responder a uma pergunta bastante perigosa de uma aluna sua, feita durante uma aula sobre o nazismo: “Por que é que o povo alemão aceitou a barbárie de Hitler, por que eles não se revoltaram?” Daí, o professor Ross fica dias lendo e pesquisando seus livros, até decidir empreender um complexo e ambicioso projeto didático-pedagógico para responder a tal dúvida (por conta própria e sem comunicar a ninguém as suas verdadeiras intenções, dentro do típico espírito do pragmatismo e do pioneirismo que caracterizam o entusiasmo norte-americano).

O projeto é: um belo dia, o professor chega à classe e começa a pregar o valor da disciplina, do poder que se pode conquistar através da disciplina. Ao longo dos dias, ele vai desenvolvendo e desdobrando as idéias, até chegar no conceito de comunidade, de uma comunidade igualitária, organizada e eficiente, e na importância da “ação” para se ter tais conquistas. Como resultado, ele funda uma pequena comunidade, a partir de sua classe, chamada “The Wave” (A Onda – repare em todas as implicações simbólicas do vocábulo), que acaba por englobar toda a escola. No começo, o grupo possui as características de uma nova seita entusiástica; porém, com o passar do tempo – e com as inevitáveis oposições – “A Onda” torna-se um “partido” agressivo e repressor. Mesmo assim, o professor Ross segue adiante com o projeto.

Fascinado com as múltiplas implicações e repercussões da Onda, o professor (sempre muito lúcido) diz uma frase altamente significativa para a sua esposa – a única que sabe de toda a verdade: “It’s incredible how much they like you when you make decisions for them!” (“É incrível o quanto eles passam a gostar de você, quando você toma decisões por eles!”). Este é um dos –vários – momentos em que se revela a tese do filme. Eis o fio d’água nascente que vai, muito adiante (encorpando-se com vários outros rios), formar a bacia hidrográfica do nazismo e de outros totalitarismos. Em minha própria experiência de professor, faço minhas as palavras do professor Ross. O que ele diz é altamente verdadeiro e incrível mesmo! O perigo é o professor gostar e acostumar-se com esse “poder”. De minha parte, como profissional, abro mão: prefiro continuar com os alunos me “detestando”...

Está claro que o professor Ross usou o micro-cosmo da escola, enquanto instituição que representa as forças e idéias que compõem a sociedade, ao mesmo tempo que contribui na orientação de seus rumos, para criar “em laboratório” uma sociedade nazista. Isso é o que eu chamo de ensino “construtivista”... Uma situação relativamente parecida está no clássico romance da Literatura Brasileira, “O Ateneu”, publicado em 1888 por Raul Pompéia. Um filme como The Wave ilustra muitos tópicos das discussões sobre Pedagogia e sobre a Escola enquanto parte essencial da sociedade. De todas elas, eu separo aqui o ensaio “Educação após Auschwitz”, escrito pelo filósofo Theodor W. Adorno e que faz parte do livro “Educação e Emancipação”. Recomendo MUITO esse texto para qualquer pessoa que possua qualquer interesse no papel que a educação e a escola têm ou deveriam ter na sociedade. Aí vão alguns trechos:

“A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la. (...) Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. É isto que apavora.

(...)

É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos. (...) A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica.

(...)

A pressão do geral dominante sobre tudo que é particular, os homens individualmente e as instituições singulares, tem uma tendência a destroçar o particular e individual juntamente com seu potencial de resistência. (...) Talvez elas (as pessoas) mal tenham condições de resistir quando lhes é ordenado pelas forças estabelecidas que repitam tudo de novo, desde que apenas seja em nome de quaisquer idéias de pouca ou nenhuma credibilidade.

Quando falo em educação após Auschwitz, refiro-me a duas questões: primeiro, à educação infantil, sobretudo na primeira infância; e, além disto, ao esclarecimento geral, que produz um clima intelectual, cultural e social que não permite tal repetição; (...)

(...)

Considero que o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da coletivização.

(...)

Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres auto-determinados. (...) O caráter manipulador (...) se distingue pela fúria organizativa, pela incapacidade total de levar a cabo experiências humanas diretas, por um certo tipo de ausência de emoções, por um realismo exagerado. (...) Nem por um segundo sequer ele imagina o mundo diferente do que ele é, possesso pela vontade de doing things, de fazer coisas, indiferente ao conteúdo de tais ações. Ele faz do ser atuante, da atividade, da chamada efficiency enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem ativo. (...) Se fosse obrigado a resumir em uma fórmula esse tipo de caráter manipulador, (...) eu o denominaria de o tipo da consciência coisificada. No começo as pessoas desse tipo se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida em que o conseguem, tornam os outros iguais a coisas.”

Como professor, eu cansei de ver escolas, principalmente particulares – algumas delas bem caras, famosas e “bem conceituadas” –, que exercem exatamente a educação contrária às recomendações de Adorno, uma educação a favor da barbárie e de Auschwitz. Isso me assusta MUITO! O perigo continua residindo, com muito prestígio, credibilidade e legitimação social, em sua fonte mais essencial. Há professores e diretores de escolas que assumem para si mesmos, como postura pedagógica, ideológica e pessoal, as idéias e as técnicas da “Onda” que, para o professor Ross, não passaram de um recurso – traumático – para ilustrar criticamente a barbárie totalitária. Enfim, The Wave, infelizmente, é um filme que acredito nunca ter sido lançado oficialmente no Brasil, seja em VHS, seja em DVD. Anos atrás, vi uma cópia péssima em VHS, aparentemente gravada da TV, com aquela dublagem antiga dos anos 80. Na Internet, circula uma cópia dublada e uma com áudio original e legendas em alemão (!)...

segunda-feira, abril 21, 2008

Rec


Duas saídas possíveis para o beco sem saída do cinema contemporâneo:
1. O cinema em 3-D;
2. O cinema da ultra-subjetividade, da “filmagem inconsciente” (como eu o chamei a respeito de “Cloverfield”), ou, melhor ainda, da decupagem inconsciente.
Ainda é cedo para sabermos se e o quanto essas duas tendências se organizarão em uma escola. Também é cedo para saber se essa “escola” contribuirá positivamente para a História da Sétima Arte e o quanto. Mas o fato é que os caminhos estão abertos, e cada vez mais filmes preferem trilhar por eles.

No primeiro caso, temos, dentre os exemplos mais importantes, "A Lenda de Beowulf" e as novidades a estrear: “Viagem ao Centro da Terra” e “Avatar” (de James Cameron). No segundo, a lista já é mais longa: “A Bruxa de Blair”, “Cloverfield” e este “Rec”, sem contar a mais nova pepita de George Romero: "Diário dos Mortos". E a tendência da decupagem inconsciente também já está mais integrada à arte do audiovisual: filmes como “Cloverfield” e “Rec” não são apenas experimentações (comerciais ou não) com a técnica ou com a tecnologia. Como filmes, trabalham muito bem a história (e suas implicações ideológicas), os personagens com os seus dramas, e o estilo que expressa e engloba tudo isso.

A expectativa também não é pouca pela mais nova obra do mestre Romero. Assim, parece estar acontecendo aí – com grandes esperanças de se desenvolver – um cinema realmente novo. Um cinema que nos dê alternativas à crise criativa dentro e fora de Hollywood. A coisa é evidente: a maioria dos novos filmes que aparecem e fazem sucesso, ganham prêmios e são louvados pela crítica e pelo público cinéfilo não passam de obras que repetem alguma velha tradição; com tintas novas, mas repetem. A revista Cahiers du Cinéma apontou recentemente esse problema a respeito do cinema norte-americano. Os exemplos são variados:

“Onde os Fracos Não Têm Vez”, “Sangue Negro”, “Em Paris”, “Um Beijo Roubado”, etc. São filme lindos e deliciosos, mas nós “já vimos esses filmes antes”. Digam-me que caminhos eles abrem para um novo cinema? Que não se diga, por outro lado, que fitas como “Cloverfield” e “Rec” apenas atualizam a velha escola dos monstros e dos zumbis, respectivamente. O buraco aqui é mais embaixo. O cinema das novas tendências precisa ainda (e vai, acreditemos) amadurecer muitos pontos de sua criatividade temática, mas a criatividade formal já está aí. Uma coisinha: relendo o texto que escrevi sobre “Cloverfield”, descobri que já tinha escrito sobre essas duas novas tendências. Na ocasião, disse o seguinte:

“1. O caminho da alta tecnologia, que busca aprimorar ao máximo o poder de fantasia das artes cinematográficas: é o caso de todo o trabalho com os efeitos especiais e com o tratamento tecnológico-computadorizado da imagem, culminando em experimentos como A Lenda de Beowulf (“Beowulf”, EUA, 2007, dir.: Robert Zemeckis).
2. O caminho do despojamento extremo de qualquer tecnologia, tendo-se em vista a naturalidade, a simplicidade e a espontaneidade acima de tudo, tentando aprimorar ao máximo o poder de realidade da Sétima Arte. É o caso deste Cloverfield.”

Não vou mais discutir elementos da decupagem inconsciente, para não repetir o que já disse a respeito de “Cloverfield”, e que serve também a este “Rec”. Enfim, o caso já não é mais de fitas “inspiradas” em “A Bruxa de Blair”. Todos os elementos indicam o surgimento de uma nova escola, uma escola internacional para o cinema do mundo globalizado. No entanto, cada obra tem as suas especificidades “regionais”, digamos assim. “Cloverfield” trabalha com muitos fatores relativos aos EUA pós 11 de setembro. “Rec” (Espanha, 2007, dir.: Jaume Balagueró e Paco Plaza) é um filme de terror, “de zumbi”, que trabalha de modo muito interessante com a pesada tradição da religiosidade católica ibérica (incluindo aí Portugal, como se verá no filme).

Com relação à tradição dos mortos-vivos, vemos aí delinearem-se duas “espécies” de zumbis: os songo-mongos (Romero) e os histéricos (“Extermínio” e “Rec”). Romero continua sendo o mestre, mas parece que nossa sensibilidade contemporânea só consegue se assustar com criaturas que mais parecem cães raivosos. Aliás, características próximas às da raiva são o que predomina aqui (eu até procurei ler a respeito em artigos médicos), ou seja, podem existir zumbis de verdade! Cuidado... Além do mais, questões de risco biológico, de armas químicas ou biológicas, excitam muito mais nossas fantasias mórbidas pós 11 de setembro – e particularmente, neste caso, pós 11 de março (Madri) – do que a velha superstição dos mortos que saem de suas tumbas para comer o cérebro dos vivos.

Ora, é aí que entra também uma outra grande contribuição de “Rec”: juntar o ceticismo científico da nossa era com a credulidade religiosa, numa mistura barroca que vai do bizarro ao horror de um só pulo. Obviamente, “Rec” não inventou tal mistura. Mas trabalha com ela muito bem. De resto, “Rec” não possui a densidade da fábula, da sátira social dos filmes de Romero. Pelo menos, não no mesmo nível. Mesmo assim, como eu adoraria ver certos “jornalistas” brasileiros caírem na mesma situação do filme, “jornalistas” que lucram descaradamente com a tragédia da menina Isabela, transformada já num verdadeiro circo. E esses pulhas ainda vêm com todo aquele discurso “pseudo” heróico a respeito da “grande tarefa” da imprensa... Safados!

domingo, abril 20, 2008

O Sobrevivente


Na postagem referente a O Enigma de Kaspar Hauser (1974), eu parti das palavras-chave com que Gilles Deleuze define o cinema de Werner Herzog: as “imagens tácteis” que mostram os “seres sem defesa”, que lembram as “grandes visões dos alucinados”. Pois todos esses elementos também se fazem presentes em O Sobrevivente (“Rescue Dawn”, EUA, 2006), a mais nova fita narrativa do diretor, baseada num documentário seu: Little Dieter Needs to Fly (1997). É a história real do piloto da marinha norte-americana, Dieter Dengler, que é abatido e capturado por forças norte-vietnamitas em 1966 – ou seja, antes de o conflito se tornar uma guerra nas proporções que acabou ganhando.

O filme é uma narrativa que reconstitui a luta de Dengler pela sobrevivência, primeiro ao campo de prisioneiros, depois à selva para onde escapa. E essa narrativa é permeada por imagens “documentais”: imagens de arquivo (no começo do filme) e o uso sistemático da lente grande-angular (uma das marcas registradas de Herzog), que fazem com que o filme caia muito bem tanto em uma exibição da HBO quanto do Discovery Channel. Sei que estarei me repetindo (já disse essas coisas a respeito de Kaspar Hauser e de Woyzeck), mas este filme tem o melhor do cineasta alemão: a fotografia profunda – seja nos planos gerais, seja no uso da grande angular – que conecta numa comunhão incrivelmente fotogênica o indivíduo humano a um dado ambiente, no geral hostil.

A luta de um “ser sem defesa”, mas que na verdade possui uma força até mesmo protéica, contra uma natureza que não é desumana, mas simplesmente inumana, ou seja, indiferente, uma selvageria que elide o homem e seus aspectos que dizemos tão orgulhosamente “humanos”. O indivíduo – romântico – de Herzog está no limiar, no limite entre civilização e barbárie, e só tem a si mesmo a quem recorrer. É o grande solitário. Assim é o herói de “Kaspar Hauser”, de “Woyzeck” (1979), de “O Homem Urso” (2005), e também este Dieter Dengler. Reduzir ao mero psicologismo a dimensão universalmente mítica desta temática tão querida do artista, que faz a sua visão de mundo e sua ideologia, é de uma miopia constrangedora.

No entanto, a crítica adora afirmar e reafirmar os paralelos entre a história de vida do alemão Dengler e do alemão Herzog. Podem até haver, mas não são o mais importante para nós aqui, espectadores. Enfim, é na comunhão fotogênica entre o indivíduo-proteus e o meio hostil e desconhecido a ser desbravado que se realizam as imagens “tácteis”: os pés descalços com que se percorre a selva, os dedos com que se pegam os vermes e os levam à boca (única alimentação), a boca com que se morde uma cobra viva, as mãos postas num rogar inútil aos carrascos; momentos antes da missão, as testas dos pilotos apoiadas na parede metálica da torre de comando do porta-aviões e os braços passados aos ombros uns dos outros, numa oração de boa-sorte.

Em um dado momento das provações (eis o caráter) de Dengler, realiza-se literalmente a “grande visão dos alucinados”. O interesse de Herzog não é pelo exótico, pelo bizarro, pelo selvagem e pelo bárbaro, pelos indivíduos no limite, em situações-limite, com aquela curiosidade mórbida meramente naturalista, científica, e no final das contas dogmaticamente niilista, que faz a cabeça e a alegria de muitos artistas “esclarecidos” e do seu público fiel. Ao vermos um filme de Herzog, sentimos toda a força do Mito, a afirmação do espírito humano acima e independente de todas as coisas e fatos. Dessa maneira, o artista elide também o otimismo ingênuo do “bom selvagem”. É um romantismo maduro que temos aqui (se é que tal classificação seja possível). Que venha mais desse mesmo.

sábado, abril 19, 2008

Jumper


Jumper (EUA, 2008, dir.: Doug Liman) é um filme despretensioso. Mesmo assim, suas premissas fazem o amante da Sétima Arte sonhar com um outro filme. Toda uma escola da realização e da teoria do Cinema defende a montagem como sendo o “específico cinematográfico”. Se pensarmos um pouco mais a fundo nas técnicas de edição, concluiremos que os seus atributos são os do teletransporte, que é exatamente o poder do protagonista de “Pulador”. A montagem serve para eliminar os tempos mortos da narrativa – não é à toa que ela está na base tanto do cinema de Hollywood quanto na escola soviética dos anos 20 (embora pensada e realizada de maneiras diferentes).

Em Jumper, tal montagem chega ao paroxismo, a ponto de a crítica reclamar – inutilmente – da superficialidade do enredo e das personagens; é óbvio que neste filme tudo é superficial, seu protagonista não tem a paciência para caminhar (literalmente ou não) de um lugar para outro, a própria montagem e o roteiro confirmam e expressam coerentemente essa idéia. Eis a proposta da fita. O personagem de Hayden Christensen (David Rice) é aquele típico “kidult” hiper-ativo e preguiçoso ao mesmo tempo, pragmático ao extremo, sem a proverbial paciência para apreciar e aprender com a beleza do caminho, independentemente do ponto de chegada.

Mas não são esses mesmos os valores da sociedade de consumo do mundo “globalizado”? New York, Londres, Egito, Roma, tanto faz, é tudo igual mesmo, observa-se o pouco de cada lugar e vai-se embora para o próximo. É a futilidade blasé dos “playboys” do nosso tempo. A crítica também reclamou do visual excessivamente “cartão postal” de cada lugar, mas não é essa a proposta do filme, a visão de mundo por ele representada? (se representada conscientemente ou não, isso pouco importa aqui). David não faz nada além do que a sociedade contemporânea espera dele, inclusive deleitar-se infantilmente e corromper-se com o poder que tem em mãos.

Assim é David Rice. Assim é o filme que o representa. Assim é o espectador desse filme (ou de filmes “assim”). A ultra-velocidade tão elogiada da vida contemporânea é a marca de Jumper. Agora, o filme não ironiza, não destrói “por dentro” esses códigos – eis a primeira razão pela qual o cinéfilo poderia sonhar com outro filme; quem sabe se ele tivesse sido realizado pelo diretor de Scanners (1981)... A segunda razão está em que, mesmo “concordando” com essa forma de cinema e de mundo, o diretor Doug Liman poderia ter usado mais criativamente a montagem para expressar tais idéias, meditando mais sobre a montagem enquanto “teleporte” cinematográfico e buscando maneiras mais experimentais, digamos assim, para associar poeticamente as escolhas do personagem com as escolhas do próprio filme.

Para isso, mesmo com todo o ritmo dinâmico da película (88 minutos de duração só), teria sido bem (mais) interessante se o diretor procurasse, de alguma maneira, realizar em Jumper o conceito da geografia criativa de Lev Kulechov – mestre soviético da montagem como construtora de significados. Ele propõe que se junte o plano de um homem que caminha em Manhattan – tendo a Estátua da Liberdade ao fundo – com o de uma mulher caminhando em Paris ao encontro desse homem – tendo a Torre Eiffel ao fundo. Então, num terceiro plano, ambos se encontram, só que em Roma – o Coliseu ao fundo. Ismail Xavier afirma que a geografia criativa “corresponde justamente ao processo pelo qual a montagem confere um efeito de contigüidade espacial a imagens obtidas em espaços completamente distantes, e de aparência de realidade a um todo irreal” (O Discurso Cinematográfico – a Opacidade e a Transparência).

Bem, essa é uma bola que Doug Liman chuta na trave. O insólito de algumas imagens até que é bem interessante: o “jumper” sentado numa cadeira de praia no topo da cabeça da esfinge no Egito, o tradicional ônibus de dois andares londrino indo parar no meio do deserto do Saara. Mas comete um grave pecado cinematográfico: dizer com palavras o que poderia ser dito com imagens: eis a descrição que David faz, logo no começo, de uma típica manhã sua. Enfim, entre Heroes, X-Men e A Identidade Bourne (do próprio Liman) teleporta-se esse Jumper, com a agilidade própria do personagem, mas provocando, assim como ele, estragos por onde passa.

quinta-feira, abril 17, 2008

The Rolling Stones - Shine a Light


Jamais cansarei de me surpreender com a experiência proporcionada pelo Cinema. Assistir a The Rolling Stones – Shine a Light (“Shine a Light”, EUA, 2007, dir.: Martin Scorsese) é o mais perto que se chega da sensação de ver, ao vivo, a banda tocar. O filme transmite ao espectador a energia de se estar em um show de rock. O filme produz e esgota na gente essa energia: saímos cansados e realizados da sala de exibição, com as músicas, as luzes, os gestos, o espetáculo na alma. Os cinemas deveriam mais era ter arrancado fora as poltronas e deixar que as pessoas assistissem em pé, dançando, pulando, vibrando, sentindo e exalando por todos os poros o ritual, a celebração do espírito do rock and roll.

“Shine a Light” não é um documentário. É a narrativa dessa liturgia tão peculiar – que talvez somente o católico Scorsese fosse capaz de reconhecer, compreender e captar artisticamente. Os Rolling Stones são as maiores divindades e ao mesmo tempo sacerdotes-chefes desse culto neo-pagão. Sympathy to them! Não há nenhuma outra banda de rock que tenha mantido tamanha longevidade com tal energia. As sexagenárias “pedras rolando” põem no chinelo muitos garotões metidos a besta por aí. Esses veneráveis senhores poderiam ter começado sua carreira exatamente agora, a apresentação mostrada por Scorsese poderia ser a primeira da banda, que ainda assim teríamos que dar grande crédito à sua energia, criatividade, espontaneidade e – por que não? – jovialidade.

É claro que o espetáculo da banda é fruto de décadas de aprimoramento e formalização; um show dos Stones é um evento altamente profissional, preparado e conduzido meticulosamente de acordo com o “figurino” – incluindo aí a atuação da platéia, como o próprio Mick Jagger afirma jocosamente em um dado momento da apresentação. Isso é mostrado claramente no começo do filme, que trata paralelamente da preparação do show pela banda e pela sua equipe, assim como da preparação da filmagem por Scorsese e pela sua equipe. Aliás, o diretor também é personagem desta fita nitidamente narrativa.

Há uma tensão deliciosamente ansiosa, um suspense alegre nas primeiras cenas, sem contar o humor das “tensões” criativas entre a banda e o cineasta, entre o tradicional blasé de Jagger, Richards ou Charlie Watts, e a postura “acelerada”, hiper-ativa de Martin Scorsese, sua fala e sua gesticulação nervosas (mas simpáticas, o diretor é nitidamente fascinado e preocupado com o que faz). Então, começa a apresentação, no Beacon Theatre de Nova Iorque. Cada música conta uma história: fictícia ou não, é a história de épocas, de lugares, de amores, de idéias, de sonhos, de pessoas e de três garotos (mais Ron Wood) que envelheceram juntos fazendo música.

Um exemplo de história: na letra de “Some Girls”, que fez parte do show, Mick Jagger canta “Some girls give me children / I never asked them for” (Algumas garotas me dão filhos / Que eu nunca pedi); no final da música, os versos são: “Some girls give me children / I only made love to her once” (Algumas garotas me dão filhos / Sendo que eu fiz amor com elas uma vez só). Luciana Gimenez que o diga. No filme, temos também a história do encontro de gerações: Jack White e Christina Aguillera que prestarão tributo aos Stones, e os Stones que prestarão tributo a Buddy Guy. Entre as músicas, cenas de arquivo, entrevistas e matérias de TV com a banda em vários momentos da carreira.

Scorsese procura destacar em tais imagens a passagem do tempo, muito através de perguntas-chave que jornalistas faziam nos anos 60 aos Stones, perguntas do tipo: “Vocês imaginavam que iam ter todo esse sucesso e durar tanto tempo?” (isso há uns 40 anos atrás, o que suscita respostas do tipo: “Talvez duremos mais um ou dois anos”, dita por Jagger), “Você se imagina fazendo o que faz aos 60 anos de idade?” (feita a um jovem Mick Jagger). Tais entrevistas captam tanto a humanidade quanto a mitologia dos membros da banda. No palco do show de 2006, o que mais grita é a fotogenia cinematográfica mais pura do ambiente fechado do teatro, o palco, o público, a iluminação, a decoração do set e, principalmente, os gestos, a postura corporal e o discurso cantado dos “sacerdotes”.

Cada um dos Rolling Stones possui uma personalidade, um carisma visual único. Os que mais chamam a atenção são, naturalmente, Mick Jagger e Keith Richards – o Jack Sparrow Sênior. Assim, Shine a Light é um filme digno da arte de Martin Scorsese, pois ele se faz o tempo todo para nos transmitir o que de mais fotogênico e epifânico têm a nos revelar as “Pedras Rolantes”. É um filme apaixonado. Scorsese e os Stones atingem um nível alto de maturidade artística, aquele nível em que todo o profissionalismo e toda a técnica se revestirão naturalmente da espontaneidade do instinto, da intuição; pois Keith Richards – ele mesmo o diz – não pensa quando está no palco. Ele não precisa pensar, apenas sentir, incorporar o espírito do momento. Eis o grande e bem-resolvido artista.

Martin Scorsese promove, nas imagens do show de 2006 e nas imagens históricas do passado, o encontro entre os tempos: os tempos da própria banda, que se tornou o mito que é, os tempos da sociedade nos últimos 45 anos em que têm recebido a banda das maneiras mais diversas: nos anos 60, eles eram presos pela polícia, ou sabatinados por padres, pastores, psicólogos, jornalistas (muito) mais velhos, desejosos de compreender o tão peculiar fenômeno daqueles rapazes tão “rebeldes”; hoje, seu show é apresentado por Bill Clinton, que leva a sogra (mãe de Hillary) para cumprimentar os “Rolling Stones” – a imagem da “média” que aqueles senhores de aspecto tão maltrapilho fazem com a família Clinton e seus convidados (crianças, idosos, etc) é até engraçada. Sentimos o sorrisinho irônico de Scorsese.

Enfim. Em 1968, Jean-Luc Godard levou os Rolling Stones para o cinema, em paralelo com discussões e manifestos das “loucuras” que aconteciam na época, em parte representadas miticamente pelos Stones, em parte paralelas a eles (lembremos que Brian Jones ainda estava vivo). Eis o Sympathy for the Devil de Godard. Em 2007, Martin Scorsese já não precisa relacionar os Rolling Stones a nenhum elemento ou fato “exterior” a eles, pois a sua mitologia está hoje mais do que assentada. Scorsese apresenta a banda apenas em paralelo consigo mesma, com o seu passado, presente e futuro. Eis a simpatia pelo diabo de Scorsese.

terça-feira, abril 15, 2008

Terror na Vila

Enquanto não fica pronto o próximo texto para o Sombras Elétricas, fiquem com mais um trailer. Este é um dos mais criativos "fake films" que já vi na rede. Ah, as maravilhas da montagem...

segunda-feira, abril 14, 2008

Blindness Teaser Trailer



Ficaremos (quase) todos cegos em 05 de setembro de 2008...

domingo, abril 13, 2008

Um Beijo Roubado


Preciso fazer um mea culpa: eu nunca tinha assistido um filme de Wong Kar-Wai. Só cheguei a ver alguns trechos de Amor à Flor da Pele (2000), que já foram suficientes para que eu sacasse a estilística do diretor chinês. O cinema dele coloca uma ênfase considerável na estética das imagens, principalmente na fotografia e na direção de arte. E dentro disso, é fácil reconhecer a “assinatura” do artista: planos nos quais o tema central é fotografado por trás de obstáculos do tipo de vidros mais ou menos transparentes, pedaços de portas, mesas ou janelas que interferem em primeiro plano. Esses mesmos objetos de cenário, junto da iluminação (com muito néon), priorizam cores fortes, particularmente o vermelho, o verde e o azul (com seus diversos matizes).

Tudo isso faz a delícia do cinéfilo em Um Beijo Roubado (“My Blueberry Nights”, 2007), primeiro longa “ocidental” do diretor. Um parêntese: mais uma vez, os tradutores de títulos brasileiros nos fizeram o (des)favor de estragar o filme. “Minhas Noites de Torta de Blueberry” poderia não ficar legal, mas qualquer coisa seria melhor do que a alcunha que ficou. Assista o filme e veja a cagada – não vou fazer “spoiler”. Só não é pior do que o título lusitano para Vertigo, de Hitchcock: “A Mulher que Viveu Duas Vezes”... Enfim, do pouco que conheço de Kar-Wai, talvez possa dizer que é um esteta acima de tudo: cinco segundos de exibição já basta para reconhecermos que se trata de uma obra sua, assim como três acordes de uma guitarra já nos fazem dizer que é uma música de, por exemplo, Eric Clapton.

Agora, essas marcas não são, necessariamente, sinais de um artista genial, sequer criativo. Primeiro: no meio de todo o tecido que compõe as influências formais de um determinado autor, deve sobressair (minimamente que seja) algo de si próprio. Segundo: todo o virtuosismo do mundo não compensará a falta de conteúdo, e um conteúdo de preferência (também minimamente) original. Muito bem. Como é que Kar-Wai se enquadra nisso tudo? Suas cores lembram as de Almodóvar, seu ritmo lembra a “paixão de filmar” da Nouvelle Vague, suas histórias de encontros e desencontros amorosos lembram tanta coisa que é até melhor deixar pra lá. Eu realmente precisaria ver mais filmes dele para saber com certeza o quanto de si sobressai no meio dessas coisas todas, mas há algo que já posso dizer agora: ainda que Wong Kar-Wai não vislumbre ou abra caminhos para o Cinema, o que ele faz segue muito bem – com o melhor dos talentos maneiristas – a tradição que o diretor escolheu.

Um Beijo Roubado é uma fita gostosa de ver, com uma história bonita, com personagens cativantes. E para por aí. Não é um filme que vá transformar a vida do espectador, ou revelar-lhe novos planos de “realidade”. Mas é uma ótima arte “do cotidiano”, digamos assim: mostra-nos coisas que, de tão óbvias e banais, acabam passando despercebidas; reeduca o nosso olhar para a vida presente, o mundo presente, o momento presente, a pessoa presente. É a singeleza da poesia moderna, da crônica. Sim. Um Beijo Roubado é uma crônica bem poética, eis a definição. Em termos audiovisuais, é um vídeo-clipe dos afetos. É um filme para se ver no cinema à noite e, depois, circular pela vida noturna da cidade, vivendo e testemunhando as pequenas aventuras e desventuras que fazem a graça da nossa espécie. Eis a inspiração. Eis o que eu fiz.

sábado, abril 12, 2008

Nação Fast Food


É mais uma dessas cartilhas sociológicas do cinema globalizado que os professores de atualidades do Ensino Médio adorarão passar aos seus alunos e promover aquele debate... O pior desses filmes é Babel (2006, Alejandro González Iñárritu); no extremo oposto fica O Senhor das Armas (“Lord of War”, 2005, Andrew Niccol). Quanto a este Nação Fast Food (“Fast Food Nation”, 2006, Richard Linklater), é um meio termo bastante razoável. Acompanhando paralelamente as histórias de várias personagens ligadas à indústria da “fast food”: um alto executivo da companhia, alguns adolescentes que trabalham nas lanchonetes e um grupo de imigrantes ilegais mexicanos que têm lá a sua função no abatedouro do qual sai a carne para os hambúrgueres, o filme vai construindo a sua tese.

Mas quem pensar que a tese aqui possui algo de manifesto – como nos documentários de Michael Moore, por exemplo – sairá bastante desiludido. O filme é bem negativista: quer dizer, descortina-se o pútrido espetáculo da indústria, mas derruba-se também qualquer possibilidade de reação objetiva e eficaz contra ele. Pois tal reação só poderia partir de indivíduos isolados, com pouco poder de informação para enfrentar sabiamente a onipotente, onipresente e onisciente máquina da corporação. Como diz a personagem de Bruce Willis, a ponta estelar no meio do elenco carimbado do cinema independente norte-americano: “We all have to eat a little shit from time to time” (“Todos temos que comer um pouco de merda de vez em quando”). Lembremos que a intriga central, que pouco importará afinal de contas, gira em torno das denúncias de excesso de coliformes fecais nos hambúrgueres.

Linklater (“O Homem Duplo”, “Escola de Rock”, “Antes do Amanhecer”) e o roteirista Eric Schlosser (que adapta o seu próprio livro: “País Fast Food – O Lado Nocivo da Comida Norte-Americana”) ironizam muito sarcasticamente o idealismo pueril dos adolescentes “engajados”: é literalmente ridícula a tentativa deles em “libertar” o gado. A cena da garota ex-“mac-escrava” olhando toda preocupada nos olhos das vacas e dizendo daquele jeito bem de menina: “Don’t you wanna be freeeee?” (“Vocês não querem ser livres?) é altamente patética. Impagável. A frustração deles só é comparável à sua ignorância e incompetência. Aliás, o sarcasmo já nasce do mero fato da “rock star” Avril Lavrigne ser escalada como uma jovem “revolucionária”. Assim, já se pode ver que Nação Fast Food está nos antípodas da retórica “Michael Moore”.

Contudo, a tese acaba pesando mais do que o drama das personagens, infelizmente – como é comum nesses filmes. Neste caso, a constante variação de núcleos narrativos acaba cansando. O filme também acaba se desequilibrando na atenção exagerada que deu à participação de Ethan Hawke (ator amigo de Linklater), embora sua presença tenha se mostrado significativa. Mas há um mérito cinematográfico em tudo isso: Richard Linklater soube ver e mostrar o aspecto abjeto, a aparência não-comestível das coisas que compõem o cardápio das “fast foods”, da primeira à última imagem do filme. Logo na abertura, a câmera dá um travelling tão próximo em cima de uma carne de hambúrguer frita, que ela adquire o caráter de alguma coisa nojenta qualquer – que poderia ser tanto carne, quanto fezes, quanto terra. Essas mesmas carnes, congeladas, saindo da linha de produção, parecem qualquer coisa, menos algo “de comer”. Finalmente, o gado sendo abatido, desmembrado, escalpelado, sangrado, fatiado e separado de suas vísceras “não-comestíveis”, fará a alegria dos ativistas vegetarianos.

domingo, abril 06, 2008

In Memoriam


Chrlaton Heston (1924 - 2008)

quinta-feira, abril 03, 2008

O Ser e o Tempo da Poesia


Um dos livros mais belos e inteligentes de teoria / crítica que já tive a oportunidade de ler é O Ser e o Tempo da Poesia, de Alfredo Bosi. É uma obra que focaliza a Literatura, mas a erudição e o interesse humanístico do autor fazem-na transcender para todas as outras formas de arte e expressões da cultura humana: música, artes plásticas, religião, mitologia, filosofia, psicologia, antropologia e – pro que não? – Cinema. Tomo a liberdade de reproduzir abaixo alguns trechos do primeiro capítulo (“Imagem, Discurso”), que discute a natureza da imagem e o como ela será apropriada pelo discurso verbal, particularmente o poético.

“A experiência da imagem, anterior à da palavra, vem enraizar-se no corpo. A imagem é afim à sensação visual. O ser vivo tem, a partir do olho, as formas do sol, do mar, do céu. O perfil, a dimensão, a cor. A imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós. O ato de ver apanha não só a aparência da coisa, mas alguma relação entre nós e essa aparência: primeiro e fatal intervalo. Pascal: ‘Figure porte absence et présence’.

(...)

A Teoria da Forma ensina que a imagem tende (para nós) ao estado de sedimento, de quase-matéria posta no espaço da percepção, idêntica a si mesma. Cremos ‘fixar’ o imaginário de um quadro, de um poema, de um romance (e também, por que não?, de um filme, acrescento eu). Quer dizer: é possível pensar em termos de uma constelação, se não de um sistema de imagens, como se pensa em um conjunto de astros. Como se objeto e imagem fossem entes dotados de propriedades homólogas.

Mas é a mesma ciência que nos adverte do engano (parcial) que a identificação supõe. A imagem não decalca o modo de ser do objeto (nem mesmo no cinema, ouso acrescentar), ainda que de alguma forma o apreenda. Porque o imaginado é, a um só tempo, dado e construído. Dado, enquanto matéria. Mas construído, enquanto forma-para o sujeito. Dado: não depende da nossa vontade receber as sensações de luz e cor que o mundo provoca. Mas construído: a imagem resulta de um complicado processo de organização perceptiva que se desenvolve desde a primeira infância.

(...)

As aparências mais ‘superficiais’ já são efeito de um alto grau de estruturação que supõe a existência de forças heterogêneas e em equilíbrio. (...) Os grandes teóricos da percepção procuraram entender o movimento que leva à forma, e concluíram que os caracteres simétrico / assimétrico, regular / irregular, simples / complexo, claro / escuro, das imagens dependem da situação de equilíbrio – ou não – de forças óticas e psíquicas que interagem em um dado campo perceptual.

(...)

Para Santo Agostinho, o olho é o mais espiritual dos sentidos. E, por trás de Santo Agostinho, todo o platonismo reporta a idéia à visão. Conhecendo por mimese, mas de longe, sem a absorção imediata da matéria, o olho capta o objeto sem tocá-lo, degustá-lo, cheirá-lo, degluti-lo. Intui e compreende sinteticamente, constrói a imagem não por assimilação, mas por similitudes e analogias. Daí, o caráter de hiato, de distância, terrivelmente presente às vezes, que a imagem detém; daí, o fascínio com que o homem procura achegar-se à sua enganosa substancialidade.”

Agora há pouco, preparando uma aula, assisti (mais uma vez) a uma cena de Apocalipse Now (EUA, 1979), talvez o meu filme predileto. A cena trata do desembarque do grupo do Capitão Willard (Martin Sheen) numa praia que acaba de ser tomada pelas forças norte-americanas. Logo em seguida, chega o oficial responsável por toda a operação, o impagável Coronel Killgore (ao pé da letra: “matar – kill; sangue coagulado – gore”), interpretado magistralmente por Robert Duvall. Toda a cena descreve o cenário de fim de mundo – “apocalipse agora” daquela pós-batalha. Poucas vezes se viu na História do Cinema a imagem sendo usada tão enfaticamente em seu estado de matéria, com todo o peso e a fascinação do seu caráter objetivo, ao mesmo tempo em que se desvenda e se destaca nela o seu aspecto mais psíquico, mais subjetivo.

Poucas vezes uma imagem tão real, aparentemente tão natural e espontânea, quase instintiva / animalesca, ou até mesmo inanimada, foi ao mesmo tempo tão carregada de idéia, de emoção, de vontade, de alma (anima). Sabemos que a imagem terrível da guerra é uma construção, das mais “complexas” que a espécie humana já produziu; mas tal construção, em Francis Ford Coppola, reveste-se (ou disfarça-se) de uma naturalidade assombrosa, de uma verdade axiomática quase que metafísica. É o momento, dentro da cena em questão, em que uma equipe de TV filma a chegada dos soldados, enquanto o repórter-diretor (interpretado não por acaso pelo próprio Coppola) grita aos combatentes para agirem “naturalmente, como se estivessem combatendo, pois é para a TV”. O humor negro de Coppola, o bruxo do Cinema. Talvez aí resida o poder da imagem no cinema de Coppola: o poder da epifania.

É claro que aqui temos uma epifania negativa, niilista (se é que isso é concebível). A imagem que, disfarçando-se de verdadeira, revela-se falsa, está presente no filme inteiro. Mas no fundo, Coppola não é niilista, pois seus filmes são dotados de grande religiosidade: mas é a de um catolicismo jansenista. Nunca, nunca mais me esquecerei da imagem da missa sendo celebrada no meio do caos pós-batalha: o padre consagrando a eucaristia para fiéis soldados ajoelhados enquanto helicópteros voam ao redor (um deles “rebocando” uma vaca viva), a fumaça colorida e surreal do sinalizadores tomando conta de todo o ambiente do crepúsculo na aldeia praiana recém-destruída, corpos de combatentes e civis mortos, retalhados, agonizantes, feridos, o Coronel Killgore só pensando em resolver logo as “pendências” para cair nas ondas e surfar...

terça-feira, abril 01, 2008

Os Pioneiros: G. A. Smith

G. A. Smith e Laura Bayley em A Kiss in the Tunnel (1899)
Na história dos primeiros passos do Cinema, possui crédito considerável a Escola de Brighton (Inglaterra). Dela saíram dois realizadores-inventores que muito acrescentaram à linguagem cinematográfica: William Paul e G. A. Smith. Enquanto aquele emprega pela primeira vez, conscientemente, o “travelling” dramático, este se concentra em utilizar exaustivamente a filmagem em exteriores. Smith foi um dos primeiros (talvez até mesmo antes de Méliès) a utilizar no Cinema a sobreimpressão (duas imagens sobrepostas na mesma película, dando aquele famoso efeito fantasmagórico). Tirou patente e lucrou bastante com filmes “mágicos” realizados segundo esse processo.

Outra conquista de Smith que o coloca na vanguarda da nascente arte cinematográfica é a alternância entre planos de conjunto e primeiros planos numa mesma cena (buscando a visão total da coisa e do fenômeno mostrado: o micro e o macro). Esse estilo revolucionário é o princípio da decupagem. Smith cria, de certo modo, a primeira montagem no Cinema; enquanto que, para Georges Méliès, a unidade de lugar em que se passa a ação pede necessariamente a unidade de ponto de vista – como no Teatro. A nova técnica de Smith aparece sobretudo em Mary Jane’s Mishaps (“Os Infortúnios de Mary Jane”, 1903). Citando o historiador Georges Sadoul:

“Nesta fita, após jogar gasolina no forno e fazê-lo explodir, a empregada imprudente é lançada através da chaminé e os seus membros dispersos recaem sobre o telhado. A câmera de Smith segue a heroína nas suas deslocações e varia o ponto de vista segundo as necessidades dramáticas da ação.” História do Cinema Mundial

Smith não se interessou por tal técnica, pois ela já era largamente adotada em formas antigas de histórias em imagens desde o início do século XIX, como as lanternas mágicas. Eis a fonte de inspiração. O realismo aliado a técnicas de vanguarda, junto a temáticas de caráter social (mas sem grandes preocupações críticas), caracterizam o cinema inglês da primeira década do século XX. “Os Infortúnios de Mary Jane” é visivelmente uma farsa bem vulgar (como o teatro medieval): o gosto do público condicionava os assuntos desses filmes, que eram exibidos em feiras e quermesses populares.

Segue abaixo o filme em questão. Mary Jane é interpretada pela atriz Laura Bayley, esposa do diretor G. A. Smith e uma prolífica atriz dos primórdios do cinema inglês. Atenção para o chiste na lápide da infeliz Mary Jane: “rest in pieces” (descanse em pedaços), ao invés de “rest in peace” (descanse em paz), cuja pronúncia é no entanto a mesma.