Bota na conta do papa...
São incríveis as similaridades entre Rambo 4 (EUA, 2007, dir: Sylvester Stallone) e Tropa de Elite (Brasil, 2007, dir.: José Padilha). E as similaridades são tais, que será um exercício bem curioso ver e analisar a recepção dessas duas obras, principalmente dentre os meios “cultos”. É natural que aqueles que taxam o filme de Padilha de “fascista”, também presentearão com o mesmo adjetivo a nova produção de Sylvester Stallone (o que revela, como já se discutiu, o “fascismo” do próprio crítico). Agora, quem eventualmente der credibilidade ao filme do Capitão Nascimento, e não ao de John Rambo, parecerá mais fascista ainda (do tipo xenófobo). O fato é: dentro do que esses dois filmes têm em comum (apesar das óbvias diferenças), parece-me racionalmente impossível qualificar apenas um (qualquer que seja) e desqualificar o outro.
Primeiro porque, antes de mais nada, nenhum dos dois é “fascista”. É preciso acabar com esta miopia intelectual de calouro universitário que ouve ou lê duas linhas de um Foucault ou de um Adorno da vida e já passa a se considerar o detentor de todas as verdades esclarecidas. Já falei do filme de Padilha, por isso, vamos nos concentrar aqui em “Rambo 4”. Independente da ideologia que o seu filme carrega (pois toda e qualquer forma de discurso é prenhe de ideologia e de visão de mundo), o que Stallone mais procura destacar é uma realidade que já mergulhou e se perdeu tanto no abismo de uma guerra ideológica, que a única coisa que sobrou e que continua sendo praticada (a única frente de batalha) é a mais pura, insensata e gratuita matança.
Depois que se permite que a coisa chegue neste ponto, torna-se no mínimo uma ingenuidade (e uma ingenuidade muito alienada) ficar discutindo filosoficamente as causas, os efeitos e as ideologias, o que é certo, o que é errado, etc. Ingenuidade ridiculamente pedante, exatamente como a dos missionários (em “Rambo 4”) e como a dos universitários em “Tropa de Elite”. É incrível o como, de uma maneira extremamente preconceituosa, ambos os tipos se acham intelectual e moralmente superiores aos soldados que têm que fazer o serviço sujo que a própria sociedade lhes relegou (Rambo aqui, “aspira” André lá); é a mesma atitude que se vê em muitos críticos. De qualquer maneira, numa situação-limite, deve-se fazer o que é necessário, e não o que é “certo”. É isso o que fazem Capitão Nascimento e John Rambo.
Agora, antes que me chamem de “fascista”, eu me explico: a verdadeira sabedoria aqui é não permitir, de forma alguma, que a situação de “guerra” (fisica, ideológica ou moral) chegue a este ponto. Mas os esforços que a sociedade como um todo exerce para evitar a catástrofe total ainda deixam muito, muito a desejar. Baseando-me no mesmo Adorno (que não passa de um adorno na boca de muita gente por aí), no magnífico ensaio “Educação após Auschiwitz” (do livro “Educação e Emancipação”), eu digo que não adianta sermos pacifistas agora no momento em que o Terceiro Reich já está invadindo a Polônia, quando não fomos pacifistas no momento em que o Imperialismo europeu devastava África e Ásia (causa mais remota da Primeira Guerra Mundial, que por sua vez é a causa mais remota da Segunda), e no momento (também na passagem do século XIX para o XX) em que se desenvolvia a plenos vapores nas escolas alemãs uma educação, uma pedagogia, uma cultura que acabaria culminando no nazismo (eis a tese de Adorno).
Repito: não adianta fazermos vista grossa para o adolescente que adora praticar o “bullying” e, depois que ele se tornou um carrasco na fase adulta, queremos convencê-lo de que não está no caminho certo... Como vovó já dizia, educação vem do berço. Será que é tão difícil as pessoas enxergarem tais coisas? Como eu fico triste e decepcionado em ver certas reações de pessoas bastante “inteligentes” a filmes como “Rambo 4” ou “Tropa de Elite”. Há uma cena muito sutil na película de Sylvester Stallone: o missionário-chefe diz muito arrogantemente a Rambo – depois de este ter dizimado uma patrulha que pretendia matá-los e estuprar a única mulher do grupo – que ele podia pensar que o que fizera era certo, mas não é... matar nunca é certo. Rambo não diz nada. Não diz nada, porque não pensa em nada. E não pensa em nada porque é um brutamontes estúpido e alienado? Não. Não diz nada porque não há o que dizer.
A arrogância e a cegueira do missionário estão além de qualquer argumento em contrário que pudesse ser eficaz. E Rambo não diz nada, porque sabe que, naquela situação, o discurso não vale nada; é uma situação-limite que pede a apenas ação. O que o missionário não é capaz de enxergar é que a atitude de Rambo não se baseia em ideologia ou moral (o certo e o errado), mas na mais pura pragmática, a pragmática da sobrevivência numa situação-limite (que não é a coisa mais importante de tudo, afinal?). O missionário só entende do seu próprio universo de experiências, do seu próprio mundo confortável do Colorado, de suas próprias idéias que são muito bem adequadas àquele mundo. Mas o mundo de Rambo é outro. Rambo está no Coração das Trevas (“The Heart of Darkness”: o filme ressoa bastante o romance de Joseph Conrad e a sua adaptação mais famosa, no filme “Apocalipse Now”, de Francis Ford Coppola, inclusive na temática do barco subindo o rio e mergulhando no coração das trevas).
O eu do missionário, que se julga tão esclarecido, não é nem um pouco capaz de se abrir e procurar compreender (o que não quer dizer “concordar” com) a visão do outro, a experiência e o universo do outro. É a mesma “cegueira” que contamina os universitários em “Tropa de Elite”, assim como muitos intelectuais e críticos de cinema. Esta cegueira é a que José Saramago satirizou tão bem no romance “Ensaio sobre a Cegueira” (cujo filme, dirigido por Fernando Meireles, está para sair). Naquela cena, o missionário não percebe que Rambo, na verdade, não acha que suas atitudes são certas, nem que são erradas. Nossa “inteligentzia” mesquinha ainda se baseia numa glamourização da violência “revolucionária” do bandido-herói (basta ver o “heroísmo” moderno das FARC, de Hugo Chávez, do Osama Bin Laden que teve a coragem de atacar o coração do capitalismo mundial, etc).
Assim, ninguém reclama das selvagerias perpetradas nos filmes dos irmãos Coen, de Quentin Tarantino, de David Cronenberg, ou em “Cidade de Deus”. Mas quando a violência vem das estruturas que mantêm o poder – os militares norte-americanos (Rambo) ou a polícia brasileira (BOPE) – o policiamento ideológico já cai matando em cima... Ora, por um acaso violência não é violência, algo moralmente execrável por si só? Ou será que certas violências são justificáveis? Olha o perigo... sinto cheiro de suástica aí... Por que “Cães de Aluguel” ou “Kill Bill” não são fascistas, mas “Rambo 4” e “Tropa de Elite” o são? Por uma mera questão estética? Convenhamos...
Vamos crescer, gente, por favor!...
São incríveis as similaridades entre Rambo 4 (EUA, 2007, dir: Sylvester Stallone) e Tropa de Elite (Brasil, 2007, dir.: José Padilha). E as similaridades são tais, que será um exercício bem curioso ver e analisar a recepção dessas duas obras, principalmente dentre os meios “cultos”. É natural que aqueles que taxam o filme de Padilha de “fascista”, também presentearão com o mesmo adjetivo a nova produção de Sylvester Stallone (o que revela, como já se discutiu, o “fascismo” do próprio crítico). Agora, quem eventualmente der credibilidade ao filme do Capitão Nascimento, e não ao de John Rambo, parecerá mais fascista ainda (do tipo xenófobo). O fato é: dentro do que esses dois filmes têm em comum (apesar das óbvias diferenças), parece-me racionalmente impossível qualificar apenas um (qualquer que seja) e desqualificar o outro.
Primeiro porque, antes de mais nada, nenhum dos dois é “fascista”. É preciso acabar com esta miopia intelectual de calouro universitário que ouve ou lê duas linhas de um Foucault ou de um Adorno da vida e já passa a se considerar o detentor de todas as verdades esclarecidas. Já falei do filme de Padilha, por isso, vamos nos concentrar aqui em “Rambo 4”. Independente da ideologia que o seu filme carrega (pois toda e qualquer forma de discurso é prenhe de ideologia e de visão de mundo), o que Stallone mais procura destacar é uma realidade que já mergulhou e se perdeu tanto no abismo de uma guerra ideológica, que a única coisa que sobrou e que continua sendo praticada (a única frente de batalha) é a mais pura, insensata e gratuita matança.
Depois que se permite que a coisa chegue neste ponto, torna-se no mínimo uma ingenuidade (e uma ingenuidade muito alienada) ficar discutindo filosoficamente as causas, os efeitos e as ideologias, o que é certo, o que é errado, etc. Ingenuidade ridiculamente pedante, exatamente como a dos missionários (em “Rambo 4”) e como a dos universitários em “Tropa de Elite”. É incrível o como, de uma maneira extremamente preconceituosa, ambos os tipos se acham intelectual e moralmente superiores aos soldados que têm que fazer o serviço sujo que a própria sociedade lhes relegou (Rambo aqui, “aspira” André lá); é a mesma atitude que se vê em muitos críticos. De qualquer maneira, numa situação-limite, deve-se fazer o que é necessário, e não o que é “certo”. É isso o que fazem Capitão Nascimento e John Rambo.
Agora, antes que me chamem de “fascista”, eu me explico: a verdadeira sabedoria aqui é não permitir, de forma alguma, que a situação de “guerra” (fisica, ideológica ou moral) chegue a este ponto. Mas os esforços que a sociedade como um todo exerce para evitar a catástrofe total ainda deixam muito, muito a desejar. Baseando-me no mesmo Adorno (que não passa de um adorno na boca de muita gente por aí), no magnífico ensaio “Educação após Auschiwitz” (do livro “Educação e Emancipação”), eu digo que não adianta sermos pacifistas agora no momento em que o Terceiro Reich já está invadindo a Polônia, quando não fomos pacifistas no momento em que o Imperialismo europeu devastava África e Ásia (causa mais remota da Primeira Guerra Mundial, que por sua vez é a causa mais remota da Segunda), e no momento (também na passagem do século XIX para o XX) em que se desenvolvia a plenos vapores nas escolas alemãs uma educação, uma pedagogia, uma cultura que acabaria culminando no nazismo (eis a tese de Adorno).
Repito: não adianta fazermos vista grossa para o adolescente que adora praticar o “bullying” e, depois que ele se tornou um carrasco na fase adulta, queremos convencê-lo de que não está no caminho certo... Como vovó já dizia, educação vem do berço. Será que é tão difícil as pessoas enxergarem tais coisas? Como eu fico triste e decepcionado em ver certas reações de pessoas bastante “inteligentes” a filmes como “Rambo 4” ou “Tropa de Elite”. Há uma cena muito sutil na película de Sylvester Stallone: o missionário-chefe diz muito arrogantemente a Rambo – depois de este ter dizimado uma patrulha que pretendia matá-los e estuprar a única mulher do grupo – que ele podia pensar que o que fizera era certo, mas não é... matar nunca é certo. Rambo não diz nada. Não diz nada, porque não pensa em nada. E não pensa em nada porque é um brutamontes estúpido e alienado? Não. Não diz nada porque não há o que dizer.
A arrogância e a cegueira do missionário estão além de qualquer argumento em contrário que pudesse ser eficaz. E Rambo não diz nada, porque sabe que, naquela situação, o discurso não vale nada; é uma situação-limite que pede a apenas ação. O que o missionário não é capaz de enxergar é que a atitude de Rambo não se baseia em ideologia ou moral (o certo e o errado), mas na mais pura pragmática, a pragmática da sobrevivência numa situação-limite (que não é a coisa mais importante de tudo, afinal?). O missionário só entende do seu próprio universo de experiências, do seu próprio mundo confortável do Colorado, de suas próprias idéias que são muito bem adequadas àquele mundo. Mas o mundo de Rambo é outro. Rambo está no Coração das Trevas (“The Heart of Darkness”: o filme ressoa bastante o romance de Joseph Conrad e a sua adaptação mais famosa, no filme “Apocalipse Now”, de Francis Ford Coppola, inclusive na temática do barco subindo o rio e mergulhando no coração das trevas).
O eu do missionário, que se julga tão esclarecido, não é nem um pouco capaz de se abrir e procurar compreender (o que não quer dizer “concordar” com) a visão do outro, a experiência e o universo do outro. É a mesma “cegueira” que contamina os universitários em “Tropa de Elite”, assim como muitos intelectuais e críticos de cinema. Esta cegueira é a que José Saramago satirizou tão bem no romance “Ensaio sobre a Cegueira” (cujo filme, dirigido por Fernando Meireles, está para sair). Naquela cena, o missionário não percebe que Rambo, na verdade, não acha que suas atitudes são certas, nem que são erradas. Nossa “inteligentzia” mesquinha ainda se baseia numa glamourização da violência “revolucionária” do bandido-herói (basta ver o “heroísmo” moderno das FARC, de Hugo Chávez, do Osama Bin Laden que teve a coragem de atacar o coração do capitalismo mundial, etc).
Assim, ninguém reclama das selvagerias perpetradas nos filmes dos irmãos Coen, de Quentin Tarantino, de David Cronenberg, ou em “Cidade de Deus”. Mas quando a violência vem das estruturas que mantêm o poder – os militares norte-americanos (Rambo) ou a polícia brasileira (BOPE) – o policiamento ideológico já cai matando em cima... Ora, por um acaso violência não é violência, algo moralmente execrável por si só? Ou será que certas violências são justificáveis? Olha o perigo... sinto cheiro de suástica aí... Por que “Cães de Aluguel” ou “Kill Bill” não são fascistas, mas “Rambo 4” e “Tropa de Elite” o são? Por uma mera questão estética? Convenhamos...
Vamos crescer, gente, por favor!...
Bela resenha. Concordo plenamente que não adianta ser pacificista confortavelmente no diretório acadêmico, proferindo lindas palavas ocas, bem longe de onde a situação tá de fato pegando fogo, nos Balcãs, na Palestina, em Myanmar, na Somália, em Darfur, etc. Um abraço.
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