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sexta-feira, fevereiro 29, 2008

Os Senhores do Crime


A violência extrema e explícita, nascida de uma situação absolutamente banal logo na primeira cena, já nos deixa bastante tranqüilizados: é mesmo um filme de David Cronenberg. Nas cenas seguintes, vamos dando as boas vindas de volta a todo o grafismo de corpos, vísceras e fluidos orgânicos que compõem a mesa do banquete do diretor desde Scanners – Sua Mente Pode Matar (1981). Os Senhores do Crime (“Eastern Promisses”, Reino Unido / Canadá / EUA, 2007) é a sua mais nova produção, a segunda com o ator Viggo Mortensen (o eterno Aragorn de “O Senhor dos Anéis”). Temos aqui uma fita de gângster, com os temperos especiais de Cronenberg, o que significa mergulhos profundos na podridão humana (tanto psíquica quanto social) com toques do bizarro e do violento, tudo muito visual e claro.

A linha narrativa, muito bem construída, parte de um ponto bem determinado, chegando a outros e desenvolvendo outras linhas, interseccionando tudo numa rede muito bem intrincada de acontecimentos e de personagens. Este caráter de thriller também perpassa a obra do diretor. Os filmes de Cronenberg (sejam eles dramas, filmes de crime ou ficção científica) pegam gêneros específicos e os transportam para onde eles jamais imaginariam que iriam parar: o cineasta estica os gêneros e os testa até o limite – dentro dos parâmetros do próprio gênero. Este experimentalismo também parece animar a obra de Paul Verhoeven, outro cineasta da violência e da mesma geração do diretor canandense. Contudo, se a violência de Cronenberg evoca Verhoeven, o seu gosto pelo bizarro e pelo quase surreal leva-o a se encontrar com um outro “colega”: o xará David Lynch.

O percurso do personagem protagonista nos filmes de Cronenberg é muito similar ao que vemos em Lynch. Em ambos temos, grosso modo, um personagem que, munido da melhor das intenções, adentra temerariamente um universo obscuro que ele não poderá jamais assimilar. Tampouco exercer qualquer controle, qualquer postura ativa sobre ele, ou sobre si mesmo, uma vez que está por demais inserido, mergulhado até o pescoço na lama. Dentro deste universo fechado e aberto ao mesmo tempo (que é, na verdade, o mundo), o personagem ficará completamente exposto a forças cuja malícia está muito além da sua pobre e inexperiente compreensão.

Suas aventuras nos subterrâneos da alma humana assumirão, portanto, um tom de forte estranhamento, quase surreal (ou propriamente surreal, no caso de Lynch). Este personagem é como uma Alice adulta no País das Maravilhas Macabras. E neste meio, Alice será assediada e vilipendiada das piores e mais inimagináveis formas possíveis. Quem mandou seguir o coelho toca adentro? É aí que percebemos o tributo que gente como Joel Schumacher e David Fincher devem ao diretor de Gêmeos – Mórbida Semelhança (“Dead Ringers”, 1988). Eis a “fábula” que é contada em quase todos os filmes de David Cronenberg. São variações de um mesmo tema, preste atenção. De Scanners, passando por A Mosca (“The Fly”, 1986) e eXistenZ (1999), até chegar em Marcas da Violência (“A History of Violence”, 2005) e neste Os Senhores do Crime.

A enfermeira inglesa Anna (a loira Naomi Watts) faz aqui as vezes daquela Alice adulta que mergulha num pesadelo inimaginável, porém bastante real. Pode-se até fazer alguma conexão com o papel que a atriz interpreta em Cidade dos Sonhos (“Mulholland Drive”, 2002), de David Lynch. No entanto, Anna não estará totalmente indefesa. Como a personagem de Lewis Carroll, ela canaliza seu medo para uma indignação que se expressa em corajosas atitudes de revolta e de enfrentamento, petulante até (mas sem deixar de ser, no fundo, assustado). Ela não desiste de fazer o que acredita ser justo e certo. Uma Alice mais indefesa e infantil (e sobretudo macabra) seria a prostituta adolescente Tatiana, “McGuffin” de toda a história.

Na verdade, Os Senhores do Crime está mais para algo do tipo Cidadão Kane no País das Maravilhas. Pois Tatiana aparece logo no começo do filme só para morrer, depois de dar a luz a uma criança nos braços de Anna, é lógico. Daí, as investigações que esta vai fazer para descobrir a identidade de Tatiana (ela tinha 14 anos) e reconstituir sua história serão feitas com base no diário da menina (em russo). O filme se ocupará do gradativo processo de tradução do caderno, cujas informações levarão Anna a entrar perigosamente no universo da máfia russa em Londres, que aliciara a adolescente. O interessante é que a narrativa do filme se passa toda no presente, sem qualquer flashback. Isto é, o espectador vivencia e conhece apenas o que os personagens daquele momento vivenciam e conhecem, e da mesma maneira. Tatiana não é mais do que uma presença virtual, mas de uma virtualidade pesada que provocará grandes e muito concretas transformações no real.

Assim como em Juno, um recém-nascido, que seria em princípio fruto de uma desgraça, tornar-se-á causa de acontecimentos positivos e da felicidade de várias pessoas, funcionando também como elemento de agregação, de unificação e conciliação entre pessoas das mais opostas e destinos dos mais estranhos uns aos outros, improváveis de se encontrarem um dia. Assim é o caso, para citar o exemplo mais evidente, do encontro entre Anna e o soturno gângster Nikolai Luzhin (Mortensen, numa interpretação cheia de personalidade que concorreu ao Oscar de melhor atuação). E o filme enfatiza o choque entre o universo burguês-trabalhador de Anna (do qual fazem parte a mãe e o tio com quem vive) e a “família” mafiosa de Nikolai.

Há uma cena que mostra bem isso: enquanto o tio de Anna dita a tradução do diário para a mãe da protagonista, esta chega, senta-se à mesa e dá uma péssima e perigosa notícia. A mãe fica preocupadíssima e diz à filha que deixe tudo para lá, pois aquele não é o mundo deles, eles são pessoas comuns. O tio, então, com grande comoção e apontando para o diário diz que Tatiana também era uma pessoa comum... Fim de papo. Por estas e outras (e principalmente pelo final), Os Senhores do Crime é um filme mais interessante, mais humano e esperançoso do que Marcas da Violência. É interessante considerar o equilíbrio entre o “mundo cão” e o “mundo Pollyana” como um sinal de maturidade. Bom trabalho!

quinta-feira, fevereiro 28, 2008

Juno


Juno (EUA, 2007, dir.: Jason Reitman) não é um filme independente. É um filme indie. A diferença? Bem, Indie é um gênero, e um gênero não só artístico, mas cultural. O Indie nasceu da cultura pop dita alternativa, e tem as suas expressões no comportamento jovem, no seu vestuário, na música e também – por que não? – no Cinema. No entanto, o Indie já cresceu o suficiente para ser assimilado e engolido pela famigerada “indústria cultural”, caindo nas redes do “sistema”, do mainstream. Neste caso, ele só continuaria sendo “alternativo” por se tratar de um gênero com suas próprias especificidades; mas não passaria de mais uma marca de refrigerante na prateleira.

Como produto de mercado, as características da cultura e da estética indie se transformam em fórmulas e cacoetes. Estas fórmulas e cacoetes são trabalhados meticulosamente não como expressão artística, mas como estratégia de marketing que visa a melhor aceitação do produto. Muitas vezes, jornalistas, críticos e o próprio público-alvo são “trabalhados” previamente para que se crie neles – e eles criem em outros – uma expectativa, até mesmo uma ansiedade pelo produto prestes a ser lançado; esta ansiedade poderá contribuir muito positivamente para a recepção do produto. É o que chamamos de hype.

Agora, por que estou eu falando dessas coisas? Para acusar Juno de um bem sucedido golpe publicitário? Não. Meu desejo, do fundo do coração, é questionar a natureza e a razão deste filme. A dúvida cruel que me aflige é: seria Juno indie, mesmo se não existisse o mercado indie? Ou será que Juno não passa de um “hype” muito bem tramado? A nova obra de Jason Reitman é autêntica ou não? Melhor ainda: em que medida ela é autêntica? Pois há tantos elementos no filme que nos fazem acreditar que ela o seja, quanto há os que nos fazem duvidar e torcer o nariz.

O caso de Juno me lembra bastante o da banda de rock The White Stripes. Todos os elementos do grupo de Meg e Jack White – e não só os musicais, mas também a “atitude”, o figurino, o visual dos shows, dos videoclipes e das capas dos discos – contribuem e confluem para a criação de uma identidade visual única e bem marcante, quase como se fosse... uma marca! Um produto bem chamativo à venda nos supermercados da cultura... É claro que tudo o que eu digo são apenas especulações, difíceis de serem conferidas e comprovadas. Mas a dúvida surge e fica.

Talvez a coisa seja e não seja ao mesmo tempo, e propositalmente. Graças a um manejo muito engenhoso de uma profunda e rica ambigüidade (dialética até), coisas como os White Stripes e Juno seriam obras autenticamente artísticas que se disfarçam de produtos de mercado para comentar e criticar esses mesmos produtos – ou simplesmente para carregarem mais livremente a suas próprias idéias originais –, aproveitando-se do processo mercadológico para se difundirem melhor a si mesmas. É uma campanha de marketing, um golpe publicitário, mas também é mais do que isso; e por uma causa nobre. Eis a Pop Art.

De qualquer maneira, como alguns discos ou bandas de rock, Juno é um filme conceitual. Todos os seus elementos (todos mesmo), desde o design dos créditos e da abertura, passando pela fotografia (com uma composição quase musical entre os elementos do quadro, incluindo o rico trabalho com cores vivas), pela montagem (com um ritmo também musical, lembrando um videoclipe do REM ou do Belle and Sebastian) e pela trilha sonora (recheada de indie rock, é claro), chegando na atuação repleta de “atitude” e de mil e um trejeitos da protagonista (vivida pela promissora Ellen Page) e de outros personagens (todos carismáticos e deliciosamente disfuncionais), tudo neste filme ajuda na criação de uma identidade perfeitamente coesa, coerente e sobretudo simpática.

Identidade que é destacada do começo ao fim da projeção como se fosse um caso de auto-afirmação. Ou seja, como se o filme fosse em si tão adolescente quanto os personagens que o animam. Esta é uma coerência que o recente Paranoid Park de Van Sant não tem (coisa que eu critiquei quando escrevi sobre ele). Apesar das óbvias diferenças na história e nos personagens, o discurso audiovisual de Jason Reitman neste filme está mais “colado” ao seu assunto do que o de Gus Van Sant em relação ao dele. Isto faz com que Juno seja mais simpático e agradável de se ver do que Paranoid Park. Mas não quer dizer que seja um filme “melhor”.

De qualquer modo, Juno é como um disco do Belle and Sebastian (banda escocesa paradigma do indie rock), que aliás faz parte da trilha sonora, inclusive no que toca à sensibilidade. O roteiro, escrito pela ex-stripper Diablo Cody (que ganhou um Oscar por ele), daria perfeitamente uma letra para alguma canção da banda de Stuart Murdoch. Juno é poser como os típicos freqüentadores das baladas indie daqui de São Paulo, o que pode ser bom ou mal, dependendo do gosto e da opinião que o espectador tenha em relação a posers, e a posers indie, especificamente. Na medida em que for um produto da pequena grande indústria do “alternativo”, as fórmulas e cacoetes de Juno podem agradar àqueles que os apreciam, mas é importante lembrar que não passariam de fórmulas e cacoetes, da mesma família (embora não do mesmo gênero) que as fórmulas e cacoetes dos filmes de Michael Bay, por exemplo.

A história de Juno gira em torno das quatro estações de um ano, que nos países de clima temperado possuem características bem próprias e trazem cores bem diferentes para a paisagem. Estas quatro estações mudarão consideravelmente as cores da vida e da pessoa de Juno McGuff (Ellen Page), uma adolescente que engravida acidentalmente durante o outono. Até as portas do verão seguinte (quando nascerá o bebê), Juno passará por grandes transformações e mudará as pessoas ao seu redor – justamente como a natureza atingida pelos efeitos das estações. Após cogitar muito brevemente o aborto, ela decidirá desde cedo dar o bebê para a adoção.

Para tanto, ela escolhe um casal muito gente fina, bem-sucedido, cujo maior desejo é ter filhos, mas que até então não os conseguiu: Mark (Jason Bateman, o Michael Bluth da série “Arrested Development”) e Vanessa Loring (Jeniffer Garner). O processo de adoção não ocorrerá sem os seus percalços, mas, no final, o caráter sazonal associado à narrativa provará ser bem significativo. A vida é um ciclo. Eis a sua beleza e sentido. O interessante também é que Juno é um filme de personagem, como o próprio título o atesta. A personagem de Ellen Page é quase como uma Capitu: menina-mulher forte, decidida, com uma inteligência maliciosa e sarcástica, manifesta em atitudes sempre indubitavelmente pragmáticas.

Em vários aspectos, Juno é mais madura do que os adultos que a rodeiam: o pai, a mãe ausente, a madrasta, os Loring. Tanto que ela dá lições claras de maturidade e todos eles. Contudo, uma maturidade tamanha só poderia estar ligada a uma ingenuidade também muito grande. Quero dizer, somente com uma certa dose de ingenuidade, inexperiência ou ignorância que podemos tomar certas atitudes com tanta segurança e rapidez. Desta forma, a pureza de Juno faz com que ela seja mais adulta do que os adultos que, perdendo tal pureza, passam a cometer erros “infantis”.

Mark Loring é o típico “kidult” norte-americano: entre os seus “late thirdies” e “early fourthies”, mas que ainda não viveu, processou e superou muitas experiências e mentalidades adolescentes. Não é à toa que vai rolar uma forte identificação entre ele e Juno. E o fato de Mark ser fanático pelo rock dos anos 90, enquanto Juno defende os clássicos da década de 70, também é bastante bizarro e significativo. Aliás, quase chorei ao ver no filme o raro álbum “If I were a Carpenter”, tributo aos Carpenters feito nos anos 90 por bandas do rock alternativo. É um dos discos que fizeram a minha adolescência! Pena que pouca gente conhece (não é o caso de Jason Reitman)...

É importante lembrar também que Juno (Hera, na versão grega), esposa de Júpiter (Zeus, entre os gregos), é a “femme-fatale” da mitologia greco-romana. Esta referência é explicada pela própria personagem de Page. Mas a jovem Juno é maquiavélica e altruísta ao mesmo tempo: a solução que ela encontra para a “desgraça” da sua gravidez será a “graça divina” para outras e necessitadas pessoas. Isto é que é estar dentro do melhor espírito do “fazer das tripas coração”. E ela acredita na humanidade (mas não sem abalos de fé) e no amor. Personagem forte e polêmica, contraditória mas sempre vencedora, Juno lembra muito o protagonista de Obrigado Por Fumar (2006), filme anterior e estréia na direção de Jason Reitman. Interpretado intensamente por Aaron Eckhart, Nick Naylor e Juno são pessoas intensas e carismáticas, anti-heróis que realizam às avessas o sonho americano. Vamos ver o que vem em seguida.

quarta-feira, fevereiro 27, 2008

Diary of the Dead - The Official Trailer

A mais nova pepita na saga dos mortos de George A. Romero. Desta vez, no estilo de "A Bruxa de Blair" e "Cloverfiled". Romero vem para mostrar quem é o mestre dentre "os homens com a câmera".

Sem data de estréia no Brasil.

terça-feira, fevereiro 26, 2008

Star Trek XI Teaser Trailer

To boldly go BEYOND no man has gone before!

Trekkers do mundo, uni-vos! Pois eis que vem até nós mais uma produção cinematográfica da série, desta vez dirigida pelo midas J.J. Abrams, o qual, além de ser um dos nomes mais promissores da Indústria ("Alias", "Lost", "Missão Impossível: III", "Cloverfield", além dos episódios de "The Office" que ele dirigiu), é fã declarado do legado de Gene Roddenberry.

Previsão de estréia: EUA, natal de 2008; Brasil, junho de 2009...

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Melhor Filme no Oscar 2008


Comemorando a vitória de “No Country For Old Men” nos Academy Awards de melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro adaptado e melhor ator coadjuvante (para Javier Bardem), publico aqui a crítica que saiu na Cahiers du Cinema sobre o filme, numa tradução do original em Francês empreendida por mim mesmo.

O Grande Retorno

por Vincent Malausa

Agonizante. Eis o estado no qual gira a obra dos irmãos Coen desde Os Matadores de Velhinhas (“Ladykillers”, 2004), comédia do fundo do poço que sucedeu a um filme tão leviano quanto inútil, Crueldade Intolerável (“Intolerable Cruelty”, 2003). Portanto, é preciso, para se medir a enormidade – e a brutalidade – do grande retorno ocasionado por Onde Os Fracos Não Têm Vez, partir de tal estado, e sobretudo não deixar passar em branco o período de estiagem artística iniciado por um filme majestoso como uma ave de mau agouro, O Homem Que Não Estava Lá (2001).

As primeiras imagens de Onde Os Fracos Não Têm Vez são uma negação da escuridão “noir” na qual se refestela O Homem Que Não Estava Lá, este belo filme que também não está lá, assim como o seu personagem-título. Na obra mais recente, ao contrário, todos os elementos afirmam uma presença reencontrada, a vontade de estar lá, e exatamente lá: planos suntuosos de estrada e de deserto; a ferida de um policial estirado em um decurso insustentável; os passos silenciosos do jovem “cowboy” Llewelyn Moss, durante uma caçada, ao descobrir os restos de uma carnificina. O renascimento dos irmãos Coen passa por uma violência tamanha, e mais ainda pela terra natal do Texas, lugar remoto que, na representação da cidadezinha perdida do barbeiro de O Homem Que Não Estava Lá, não era mais do que uma metáfora em preto e branco para uma rua sem saída.

Tirado de um best-seller do mestre americano Cormac McCarthy, Onde Os Fracos Não Têm Vez traduz ao pé da letra a trama e todos os seus elementos. A adaptação se resume essencialmente a um desafio de mise en scène. A estrutura narrativa é altamente depurada: Moss se depara com o produto de um roubo, encontrado na cena da chacina, e se vê imediatamente caçado por Chigurh, um medonho matador de sangue frio (Javier Bardem) procurado em toda a região. A parte moral e quase bíblica do conto é representada pelo velho xerife Bell (Tommy Lee Jones), que toma o caso em dois tempos, os dois únicos do filme: conter a hemorragia causada pela doença (a fuga de Llewelyn, o massacre de Chigurh por onde quer que passe) e expressar seu olhar de pai desiludido com o Oeste agonizante.

Esta presença reencontrada coloca em evidência o retorno de uma mise en scène ao presente. Mas trata-se de um presente ligeiramente diferente do qual seria necessário falarmos. Neste ponto também, a abertura do filme é decisiva. As botas do policial que se debate desenham um caos de borracha preta no assoalho, uma mancha de sangue da caça atingida por Moss inscreve-se em vermelho vivo sobre a areia prateada. O modo de percepção de Onde Os Fracos Não Têm Vez é o do realce – impressões, traços, sinais, restos. E é ainda a partir da descoberta por Moss da matança, cena de crime imóvel e muda, que se desenrola uma das seqüências mais dinâmicas, a perseguição com um cão através de montanhas e pequenas ravinas. A coletânea destes signos desencadeia a ação, chama a atenção para a paisagem; ou, ao menos, descobrem na mise en scène um trabalho de escrita. Não obstante, esta arte de presságios, característica dos irmãos Coen, ainda encontra terreno para se enraizar discretamente na velocidade incerta do enredo, road-movie nos limites do filme de ação – uma novidade para os cineastas.

Estamos em 1980, outro índice de contemporaneidade decadente. Para Cormac McCarthy, esse momento é, evidentemente, o da passagem do Velho Oeste para a era moderna dos novos traficantes, tanto quanto parece porosa a fronteira entre o Texas e o México, sobre a qual reina o xerife Bell. Para os Coen, este espaço e este tempo difusos, os quais eles não sentem maior necessidade de circunscrever mais detalhadamente, marcam com a maior certeza uma passagem. E se Onde Os Fracos Não Têm Vez finge de voltar às origens, terra de “losers” e de caipiras ignorantes, jogo de massacre à lá Gosto de Sangue ou Fargo, a recusa a um ambiente impecável rompe sobretudo com o gosto pelos mecanismos em circuito fechado e os pequeninos mundos em vasos fechados. Não podendo associar a clareza da mise en scène ao espaço incerto da história, assim como o xerife perde pouco a pouco o uso do seu sistema de valores, os Coen soltam a fivela que parecia apertar o seu barbeiro de O Homem Que Não Estava Lá.

Mais tarde, o pequeno receptor que permite a Chigurh seguir atrás de Moss, graças ao emissor de sinal escondido dentro da valise de dinheiro, toma as rédeas da percepção deficiente. O dispositivo atinge o seu melhor papel na seqüência em que o matador, orientado pelos apitos estridentes do aparelho, avança lentamente à procura do quarto de motel no qual está refugiado Moss, equivocando-se levemente, o que é mostrado através de um refinado truque de montagem. Para estes efeitos sutis de latência, de defasagem ou de retardo que perturbam o avançar da carruagem, o filme mantém os personagens numa flutuação entre proximidade e distanciamento. As imagens funcionam por meio de contrastes visuais bem diretos, conduzindo lado a lado o dia (o deserto e suas luzes douradas, magnificamente fotografadas por Roger Deakins na abertura) e a noite (o retorno noturno de Moss ao lugar da carnificina). Assim, sob irradiação ou às apalpadelas, Onde Os Fracos Não Têm Vez avança rumo a uma extinção dos signos.

Daí a impressão de os personagens flutuarem em um espaço mais e mais heterogêneo. Os Coen juntam a tudo isso uma gama de efeitos de “flou” inéditos. Enquadramentos através de vidros, vão de porta, pára-brisa quebrado ou reflexo jogado numa tela de TV desligada, os personagens se extenuam em silhuetas sombrias ou desmembradas. Reduzidas a pó fino pela peneira da mise en scène. Tal fragmentação é salutar: ela impede o filme de se gastar no mecanismo perfeitamente lubrificado do thriller (figuras plenas, hiper-precisão típica dos cineastas) e impõe aos personagens ficarem apenas à escuta. Remeter às cegas à ação, expor a parte de ilegibilidade e de ineficácia da percepção visual, eis o que faz esta obra se agitar vivamente, uma obra acima de tudo inclinada a se embriagar da sua transparência e da sua claridade.

Esta ponta de sombra que relança em permanência o road-movie, no qual os personagens escapam literalmente por entre os dedos, evoca um outro grande filme: Zodíaco, de David Fincher. O psicopata encarnado por Javier Bardem, com o seu penteado bem comportado, bradando uma mangueira e um botijão de ar comprimido, poderia ser o inverso do assassino misterioso de Fincher. Seus homicídios selvagens, que ele tempera com joguetes do tipo cara-ou-coroa, ou com diálogos de se cair por terra, chamam a atenção por sua gratuidade. Tudo parece tropeçar em cima deste bloco de estranheza extrema, e o fôlego do filme se prende em qualquer dos seus momentos de ultra-violência. Poderia ver-se aí não mais do que a encarnação do fatalismo irônico e do gosto pelo absurdo que colam nas produções dos irmãos Coen como uma lama metafísica. Contudo, ainda há mais: Chigurh aspira tudo o que a intriga mantém febrilmente suspenso em seu fio.

Este responde, portanto, em perfeita simetria ao personagem do xerife Bell, fantasma sem conquista. É preciso então voltar ao título (“No Country For Old Men”), cuja beleza crepuscular está anestesiada pela tradução francesa (e também pela brasileira, acrescenta o tradutor). É nesta consciência desencantada do Velho Oeste – que a fisionomia de Tommy Lee Jones afirma com realeza – que se firma o horizonte do filme. Reinando sobre esse espaço pontilhado, o xerife se coloca como um guardião de um museu (da obra dos Coen e, mais ainda, de uma “desconquista” do Oeste, frustradas desde o seu início) do qual não há mais controle. O relato de impressões metódico e sem cessar frustrado que lhe permite avançar diz ainda melhor: voltar à pista e ultrapassar o Mal; malgrado o nível do ponto de vista que impõe a tarefa, trata-se sempre de evitar a desgraça de se chegar depois.

Ao avanço de Moss, e ao retardo do velho xerife, o filme opõe o abismo figurativo de Chigurh. O monstro se coloca no centro dos dois tempos da história, igualmente órfãos: a ingenuidade do cowboy que nos remete à veia enérgica e burlesca dos primeiros filmes dos Coen, a inércia do xerife evocando a morbidez extenuada do Barbeiro (de O Homem Que Não Estava Lá) e seu reino de ruínas. Às vezes, os dois se confundem: e o xerife, no tempo de um sonho despedaçado, diminui-se numa infância que o seu pai abandonara à noite. Esta pode ser a chave. Consciência do fim de um mundo para McCarthy, Bell coloca para os Coen uma questão de ordem mais cinematográfica: o que sobra da herança dos pais frente à juventude cega de Chigurh, encarnação do avanço que o filme tem sobre si mesmo? A resposta parece clara: uma simples voz basta para encher novamente a história da sua memória, sendo o caso simplesmente de se compreender o seu murmúrio e a sua persistência.

Esta sutil reaprendizagem do escutar não é a menor das surpresas oferecidas por Onde Os Fracos Não Têm Vez. Esconde-se no filme uma secreta benevolência que permite ver longe, e reviver uma das questões que esta década deixou aberta. A geração americana dos anos 90 (Coen, Fincher, Tarantino) com toda a sua hiper-tonicidade e agressividade referenciais, consegue ser solúvel no regime um tanto quanto delicado do contemporâneo? Depois de Zodíaco e de Death Proof, Onde Os Fracos Não Têm Vez confirma: sim, ainda há um país para os nossos heróis.

domingo, fevereiro 24, 2008

80's Movies Rewind

Teen Wolf, 1985

Na Internet, quem procura acha. Existe um site chamado 80’S MOVIES REWIND, que é a maior coletânea de informações que já encontrei sobre filmes hollywoodianos dos anos 80 – especialmente aqueles que são os clássicos da Sessão da Tarde. O único ponto que pode ser negativo é o fato de a página ser totalmente em Inglês: se já é difícil, em alguns casos, lembrar o nome em Português daquela fita que a Globo passou no Supercine há uns 20 anos atrás, imagine fazer a associação com o título original... Mas o resto da rede pode ajudar bastante neste sentido.

80’S MOVIES REWIND é como uma enciclopédia on-line, com mais de 500 filmes catalogados em suas próprias páginas, ricas em dados dos mais diversos e completos, como: informações técnicas, sinopse, nota de avaliação, “trivia” (curiosidades), fotos, trailers, links, trilha sonora, guia de compras, dentre outras coisas.

Assim como o IMDB (Internet Movie Database) e como a Wikipedia, o site é aberto a contribuições e acréscimo de informações trazidas pelos próprios internautas, o que faz a coisa crescer bastante. O layout é dominado pelas cores e pelo design “trash” da época, uma homenagem bem interessante, como num bar temático; mas tem uma cara já meio velha para a rede (o site tem essa mesma estrutura há anos). Os editores prometem uma grande reformulação e modernização para breve...

Para quem pesquisa, ou escreve sobre Cinema, ou simplesmente para os curiosos, nostálgicos ou apaixonados de plantão, vale muito a pena dar uma conferida. Lá se acharão filmes deliciosos que trarão muitas sensações proustianas aos marmanjos, como:

Te Pego Lá Fora (“Three O’Clock High”, 1987);
Namorada de Aluguel (“Can´t Buy Me Love”, 1987);
Comando Para Matar (“Commando”, 1985);
Viagem ao Mundo dos Sonhos (“Explorers”, 1985);
Gotcha – Uma Arma do Barulho (“Gotcha!”, 1985);
Howard, O Pato (“Howard The Duck”, 1986);
O Último Americano Virgem (“The Last American Virgin, 1982);
O Último Guerreiro das Estrelas (“The Last Starfighter”, 1984);
Sem Licença para Dirigir (“License to Drive”, 1988);
O Sobrevivente (“The Running Man”, 1987);
Papai Noel: O Filme (“Santa Claus: The Movie”, 1985);
Curso de Verão (“Summer School”, 1987);
O Garoto do Futuro (“Teen Wolf”, 1985);
Tron – Uma Odisséia Eletrônica (“Tron”, 1982);
Mulher Nota 1000 (“Weird Science”, 1985);
The Wraith – A Aparição (“The Wraith”, 1986);
Trânsito Muito Louco (“Moving Violations”, 1985);
Marcas do Destino (“Mask”, 1985).

E todos os mais famosos e nunca esquecidos, como Curtindo a Vida Adoidado, a série Indiana Jones, a série De Volta para o Futuro, etc. Então, boa visita e boas lembranças! Ah, e boas lágrimas!...

http://www.fast-rewind.com/

sábado, fevereiro 23, 2008

Novidades no Cinematheque


O blog CINEMATHEQUE já conta com dois textos meus produzidos exclusivamente para ele. O primeiro é um comentário a respeito da premiação de Tropa de Elite com o Urso de Ouro no último festival de Berlim:

http://blogcinemateque.wordpress.com/2008/02/17/tropa-de-elite-e-a-maturidade-do-nosso-publico-de-cinema/

O segundo é uma análise de Ratatouille no contexto das suas indicações para o Oscar:

http://blogcinemateque.wordpress.com/2008/02/22/ratatouille/

Nesta semana, o CINEMATHEQUE conta com textos produzidos pelos seus membros a respeito dos filmes indicados para a 80a. premiação da Academia de Hollywood, que ocorrerá neste domingo. Confira! E boa leitura!

http://blogcinemateque.wordpress.com/

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

Alain Robbe-Grillet (1922-2008)


Notícia um pouco atrasada, me desculpem, dormi no ponto. Mas antes tarde do que nunca. Portanto, aí vai.

Faleceu na última segunda-feira o romancista, contista, ensaísta, roteirista e diretor francês Alain Robbe-Grillet. Grillet é co-criador do noveau roman francês, que revolucionou a técnica do romance na segunda metade do século XX. O “novo romance”, influenciado pelo Cinema, também o influenciou, particularmente o movimento da nouvelle vague francesa. O próprio Robbe-Grillet escreveu o roteiro de O Ano Passado em Marienbad (“L’Année Dernière à Marienbad”, França, 1961, dir.: Alain Resnais), obra-prima de primeira grandeza do cinema francês.

Também escreveu e dirigiu seus próprios filmes: L’Immortelle (1962); Trans-Europ-Express (1966); L’Homme qui Ment (1968); L’Eden et Après (1970); Glissements Progressifs du Plaisir (1974); O Jogo com o Fogo (“Le Jeu Avec le Feu”, 1975); La Belle Captive (1983); Un Bruit qui Rend Fou (1994); Gradiva (C’est Gradiva qui vous appelle) (2006).

quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Cloverfield - Monstro


A incrível impressão de realidade trazida pelo Cinema deu muita matéria para as reflexões apaixonadas dos seus maiores pensadores e experimentadores. Dentre estes, são clássicos os nomes de: Dziga Vertov (com os filmes Cine-Olho – 1924, Cinema-Verdade – 1925, Um Homem Com Uma Câmera – 1929); e do crítico André Bazin. Contudo, hoje em dia, a pura realidade captada pela câmera transformou-se numa espécie de fetiche (culpa da indústria?), ou, pelo menos, perdeu força o aspecto racional de tal cinema: o mero real, capturado com uma exatidão cujas preocupações não vão além do documental.

Em Cloverfield – Monstro (“Coverfield”, EUA, 2008, dir.: Matt Reeves), o homem com a câmera – uma filmadora caseira que constrói e conduz a totalidade do filme – diz e repete a importância de documentar tudo o que está acontecendo, enquanto luta desesperadamente para salvar a própria vida. Mas, em meio a todo aquele contexto (um monstro gigantesco à lá Godzilla que ataca Manhattan), é impossível para um sujeito manter a compostura necessária para manejar a câmera de modo a criar a fantasia ou impressão de que se trata apenas de um olho incorpóreo a testemunhar tudo, sem qualquer envolvimento (que é o que acontece em qualquer filme, seja de ficção ou documentário).

Em Cloverfield, o olho mecânico da filmadora está identificado não só ao olho orgânico do homem que a segura, mas também ao seu próprio corpo, como um todo – vejam-se os momentos em que a câmera fica apenas a filmar o teto, o chão e outras coisas sem o menor enquadramento, indicando claramente que aquele que a segura está ocupado em correr ou em fazer qualquer outra atividade necessária com o seu corpo que não segurar adequadamente uma câmera a filmar um objeto específico.

Poderíamos chamar isto de uma “filmagem inconsciente”, na qual o sujeito não está a par da diferenciação entre o seu próprio corpo e olhar, com seus movimentos específicos e necessários, e o “corpo” da câmera, com um outro olhar, que pede outros movimentos. O processo é o mesmo de se colocar uma filmadora na mão de uma criança (ou mesmo de um adulto absolutamente inexperiente no manejo desta tecnologia) e pedir que ela filme a festinha de aniversário do seu irmãozinho. Aliás, isto é uma coisa muito comum. Nesta forma de “cinema”, o corpo e o olhar da câmera transformam-se indissociavelmente no corpo e no olhar do sujeito.

Se o Cinema é a arte maior da Realidade, não seria este o maior Cinema? Uma vez que se advoga um Cinema profundamente realista e fenomenológico, não seria o caso de dizer que qualquer filmezinho caseiro representa o melhor e mais bem filmado Cinema? Qualquer criança poderia ser considerada o maior gênio da Sétima Arte, muito mais do que os gênios oficiais de D. W. Griffith, Orson Welles, Alfred Hitchcock, Serguei Eisenstein, dentre tantos outros. Filmes como A Bruxa de Blair (“The Blair Witch Project”, EUA, 1999, dir.: Daniel Myrick e Eduardo Sánchez) e este Cloverfield teriam as maiores e melhores qualidades estéticas.

E a onda continua. A mais nova produção a aportar nas salas de projeção dentro desta “escola” é Diary of the Dead (“Diário dos Mortos”), do grande mestre das fitas de zumbi George A. Romero. O “documentário” é o que mostra a câmera de um jovem que presenciara a primeira noite do ataque dos mortos-vivos, mostrada originalmente em A Noite dos Mortos-Vivos (“Night of the Living Dead”, 1968). Não duvido nada que o gênio dos zumbis de Romero vá colocar no chinelo o monstro de que estamos aqui falando e a bruxa que o antecedeu – por mais que estes sejam de fato bons.

Colocando em outras palavras, o fato mais interessante de filmes assim é: não basta dizer que o Cinema é a Realidade. Pois não existe pura e simplesmente uma realidade objetiva a ser captada objetivamente (a não ser por uma máquina, pela máquina da filmadora, por exemplo; mas a câmera não possui consciência, além de ser um invento do homem). Essencialmente, a única realidade de que podemos falar é aquela que nós mesmos experimentamos segundo nossos próprios sentidos. E tal experiência é sempre carregada de mil e uma determinações subjetivas, ou que têm a ver com o complicado contexto fenomenológico-existencial da situação vivida.

Desse modo, a realidade estará sempre subjugada a um ponto de vista. Sabemos que as melhores obras do Cinema e da Literatura lutam com todas as suas forças para transmitir da maneira mais viva possível um ponto de vista interior, subjetivo (que não será necessariamente o de seu autor, mas principalmente o do personagem). Sendo assim, não há que se desconsiderar as experimentações do tipo Cloverfield. Pelo contrário, elas merecem bastante reflexão, quando não até mesmo algum crédito. O Cinema industrial contemporâneo, buscando soluções criativas para a sua própria sobrevivência, parece dividir-se em dois caminhos absolutamente distintos, trilhando-os ao mesmo tempo:

1. O caminho da alta tecnologia, que busca aprimorar ao máximo o poder de fantasia das artes cinematográficas: é o caso de todo o trabalho com os efeitos especiais e com o tratamento tecnológico-computadorizado da imagem, culminando em experimentos como A Lenda de Beowulf (“Beowulf”, EUA, 2007, dir.: Robert Zemeckis). 2. O caminho do despojamento extremo de qualquer tecnologia, tendo-se em vista a naturalidade, a simplicidade e a espontaneidade acima de tudo, tentando aprimorar ao máximo o poder de realidade da Sétima Arte. É o caso deste Cloverfield.

Tanto o poder de fantasia (que nos remete às origens do cinema com Georges Méliès) quanto o poder de realidade (que traz de volta a origem do cinematógrafo com os irmãos Lumière) possuem claros e fortes apelos comerciais (dos quais seus dois pioneiros procuraram se aproveitar). Fantasia e realidade são necessidades sócias e psicológicas; não é à toa que a Indústria as transforma a ambas em fetiches. Agora, o que parece ser uma conquista específica de Cloverfield é o fato desta película unir e trabalhar as duas frentes: o filme todo não passa da filmagem de uma câmera caseira nas mãos de um amador, e esta câmera capta nada mais nada menos do que um monstro gigante de computação gráfica que assola, também muito graficamente, a cidade de Nova York...

terça-feira, fevereiro 19, 2008

Sangue Negro


Apesar do grande talento do diretor Paul Thomas Anderson, Sangue Negro (“There Will Be Blood”, EUA, 2007) não é o canto de ganância e loucura, de tragédia e ironia que é O Tesouro de Sierra Madre (1948, dir.: John Huston), exemplo maior do gênero. Apesar dos ricos encadeamentos e associações entre os elementos: o subjetivo e o objetivo, a natureza e o homem, os diversos valores, os dilemas, o psíquico e o social, o micro e o macro, falta-lhe a harmonia e o equilíbrio que há nas grandes obras. Em alguns aspectos, falta também o aprofundamento temático (na situação, na personagem, e em suas múltiplas relações). O protagonista, Daniel Plainview, mesmo com o talento absoluto do ator Daniel Day-Lewis, não passa de um daqueles “self-made men” excêntricos que Hollywood não se cansa de elogiar (O “American Gangster” de Ridley Scott é apenas o exemplo mais recente). O mestre-sala e porta-bandeira do sonho americano, ao mesmo tempo.

Suas idiossincrasias, suas forças e fraquezas, suas contradições são no fundo simples e esquemáticas, apesar – repito – do virtuosismo absurdo de Day-Lewis. Daniel Plainview (o sobrenome significa, ironicamente, “visão plana, achatada”) não é o herói (ou vilão, ou anti-herói) shakespeariano que se tem em, por exemplo, no Michael Corleone (Al Pacino) da série O Poderoso Chefão (“The Godfather”), de Francis Ford Coppola. É claro que isso não seria em princípio um defeito. E se o filme quisesse mostrar, de fato, um homem pequeno e ridículo que se acha por demais grande? (Aí, toda a afetação de Daniel Day-Lewis ficaria muito bem empregada). Mas, se fosse este o caso, seria mais interessante o filme adotar uma postura irônica – ou, pelo menos, suficientemente distanciada – em relação ao personagem, coisa que Paul Thomas Anderson não fez.

Contudo, por outro lado, Sangue Negro não é tão apologético assim em relação ao seu herói, e isso faz parte das qualidades do filme, que podem ser atribuídas ao seu diretor. Paul T. Anderson filma a ascensão de Daniel Plainview com um tom de estranhamento, presente principalmente na trilha sonora: graças a ela, a primeira imagem do filme é, ao mesmo tempo, de uma naturalidade tranqüila e de um estranhamento que leva quase ao pânico. Esse estranhamento – que transforma em misterioso e amedrontador algo que é, em princípio, familiar – faz parte da estética surrealista (eu já discuti o processo neste blog, na postagem referente ao Eraserhead de David Lynch). Surrealismo que está mais presente e evidente em Embriagado de Amor (“Punch-Drunk Love”, 2002) e especialmente em Magnólia (1999), ambos de Anderson, que surgiu para a fama com Boogie Nights (1997).

Dentro de um “surrealismo realista”, também são muito fortes algumas outras imagens da película: 1. a imagem do trabalho árduo de garimpagem feito por Plainview no começo do filme: é a solitária, persistente e angustiante luta do homem contra a natureza, para penetrar na mãe-terra e extrair dela algum sustento e algum sonho (pena que o resto do filme não invista muito nesta temática); não há qualquer fala nos quase 10 primeiros minutos de filme, concentrados nesta tarefa ao mesmo tempo tão cotidiana mas digna de um Prometeu (eis o bom Cinema); 2. o rosto negro de Day-Lewis, coberto de petróleo; 3. a torre de perfuração em chamas dia e noite, com o jorro incandescente do “ouro negro”; 4. os cultos protestantes para lá de “pentecostais”; 5. o rosto sempre imutável (com um leve sorriso quase irônico) do calado filho de Daniel Plainview, H. W. (aliás, esta sigla significa o quê?).

Mas há coisas que deixam a desejar. O desenlace que teve a personagem de H. W. parece muito sumário para a importância que o rapaz vinha tendo ao longo do filme. No conjunto das grandes ambições temáticas do roteiro, algo acabou ficando de lado, esquecido assim como o Sr. Plainview se esquecera do Sr. Bandy. Como eu disse no começo, é difícil juntar e trabalhar equilibradamente tantos elementos. O todo corre muito o risco de ficar desigual, assimétrico, apesar de muitos elementos e momentos serem da mais alta grandeza. O melhor da história é, com certeza, a relação entre o barão do petróleo Daniel Plainview e o jovem pregador Eli Sunday. Ambos são o mesmo tipo de homem: inteligentes, ambiciosos até as raias da obsessão, talentosos – até virtuosos – no que fazem, manipuladores das vontades alheias: são grandes vendedores, discursadores.

Entretanto, cada um representa uma força que é a mais eternamente oposta e antagonista da outra: Plainview é o mestre da matéria, enquanto Sunday é o mestre do espírito. É a velha antítese entre os planos platônicos. Não obstante, como todo bom platônico também deve saber, esses planos vão se misturar, interferindo mutuamente um no outro, dialeticamente. A linha narrativa que realmente interessa no filme, a que tem maior força e significado, é a que se desenvolve entre o relacionamento Plainview / Sunday: no seu começo, desenrolar e conclusão. Temos aqui um verdadeiro tour de force, que só pode dar certo quando se dispõe de atores capazes para tanto: assim sendo, palmas para Daniel Day-Lewis e para Paul Dano. Boa parte das mais de duas horas e meia da projeção poderiam ser reduzidas e condensadas em torno das cenas que envolvem esses dois personagens, seja cada um em si mesmo, seja na relação entre eles. Mas é pelos passos desequilibrados deste Sangue Negro que eu acabo ficando com Onde Os Fracos Não Têm Vez na disputa do Oscar de melhor filme, neste domingo.

domingo, fevereiro 17, 2008

Cinematheque


A partir de agora, também passarei a escrever como colaborador para o blogue de cinema CINEMATHEQUE, revista coletiva formada por autores de blogues cinematográficos da rede. O endereço é:

http://blogcinemateque.wordpress.com/

Atualmente, os membros do grupo são:

Luciano Lima, do A SALA:
http://www.asala.com.br/
Ronald Perrone, do CINE ART:
http://www.cineart2.blogspot.com/
Vinícius Pereira, do BLOG DO VINÍCIUS:
http://blogdovinicius.wordpress.com/
Wanderley Teixeira, do ESPAÇO LUMIÈRE:
http://www.eco-social.blogspot.com/
João Paulo, do CINE JP:
http://cinevita.wordpress.com/
Kamila, do CINÉFILA POR NATUREZA:
http://cinefilapornatureza.blogspot.com/
Alex Gonçalves, do CINE RESENHAS:
http://cine-resenhas.blogspot.com/
Marcus Vinícius, do CAMINHANTE NOTURNO:
http://caminoturno.blogspot.com/
Rômulo Silva, do MOVIESN:
http://moviesn.blogspot.com/
André Renato, do SOMBRAS ELÉTRICAS:

sábado, fevereiro 16, 2008

Os Indomáveis


Perguntas perigosas: Como reinventar um gênero – ainda mais um gênero já antigo e bastante trabalhado – mantendo-o vivo e respirando por seus próprios pulmões o tanto quanto for possível? Caso não se consiga realizar essa (eterna) reinvenção, a dúvida assombrosa ficará sendo: Em que ponto um determinado gênero poderá ser considerado esgotado? Quando e como perceberemos que não dá mais para criar coisas novas, nem para repetir o que já foi criado? Mas estas são perguntas intransigentes, e a verdadeira sabedoria nunca está nos extremos. Portanto, talvez o que se deva questionar é: Em que medida a originalidade é necessária? Será que ela é necessária, em primeiro lugar? Não confundir originalidade com criatividade. Toda obra precisa ser criativa, mas quase toda criatividade sempre trabalha com parâmetros já determinados, trabalhando-os, transformando-os e expressando-os à sua própria maneira, sem necessariamente reformulá-los em seu “DNA”, o que daria origem a novos parâmetros – isso é muito raro em Arte e geralmente é uma tarefa reservada aos grandes gênios inventores.

De qualquer modo, segundo as respostas que se derem às perguntas propostas, poder-se-á gostar mais ou gostar menos de Os Indomáveis (“03:10 to Yuma”, EUA, 2007, dir.: James Mangold). Pode-se não gostar tanto dele, mas dificilmente será um filme desgostável; pois, na pior das hipóteses, a mais nova produção do diretor de Johnny e June (2005), Garota, Interrompida (1999) e Cop Land (1997) tem tudo o que as maiores realizações do gênero possuem de melhor e de mais estimulante. Para quem gosta de filmes de “bangue-bangue” (mas não só), é um prato cheio. Estão ali todos os motivos temáticos e visuais que fazem a “cara” dos faroestes: a disputa mais ou menos legal por terras e território; o dilema de um homem dilacerado pelos diversos deveres: o dever moral para com a família, o dever moral para consigo mesmo, o dever cívico, o dever financeiro-profissional; a questão dos índios; a questão do progresso civilizador (representado mais uma vez pela chegada da linha férrea), em conflito com a ocupação dos pioneiros; o “oeste selvagem”: as gangues de bandoleiros impiedosos; o ataque às diligências;

os saloons e quartos de hotel; as prostitutas; os jogos de cartas (geralmente trapaceados); a guerra civil americana; as cidadezinhas sitiadas por tiroteios e aterrorizadas por bandidos bagunceiros; os pistoleiros rápidos no gatilho; as sublimes paisagens naturais (o sertão oceânico onde se passam esses épicos); os meninos corajosos que querem ser homens a todo custo (naquele contexto, eles precisam mesmo ser); está tudo lá. Só não há nenhum duelo homem a homem... Quanto ao cinematógrafo, estão lá tanto o rigor formal e o olhar paisagístico de John Ford e Anthony Mann, quanto o prazer de filmar e os olhares de Sérgio Leone e de Samuel Fuller, focados nos rostos em primeiro plano. Todos esses motivos típicos – e outros – estão intimamente inter-relacionados, e podem ser resumidos na santíssima trindade dos valores do Romantismo do século XIX: honra – amor – lealdade. A história de Os Indomáveis parece uma mistura de Matar ou Morrer (“High Noon”, 1952, dir.: Fred Zinnemann) com O Preço de um Homem (“The Naked Spur”, 1953, dir.: Anthony Mann), com uns toques de Era Uma Vez no Oeste (“Once Upon a Time in the West”, 1968, dir.: Sérgio Leone).

Apesar das aparentes referências, não se pode dizer exatamente que o filme seja uma “homenagem” aos clássicos, pois, em princípio, trata-se da refilmagem de uma fita (“03:10 to Yuma”, que recebeu no Brasil o título de O Galante e o Sanguinário, de 1957, dirigida por Delmer Daves) que pertence a uma época em que John Ford ainda não tinha feito O Homem Que Matou o Fascínora (“The Man Who Shot Liberty Valence”, 1962). Ou seja, um tempo em que a mitologia e os valores do velho oeste ainda estavam bem vivos e reinantes. Assim, as identificações entre Os Indomáveis e o western clássico talvez estejam mais para uma questão de irmandade genética do que para uma herança espiritual. Mas, de qualquer modo, não vi o filme original e não posso dizer mais nada. Os Indomáveis pode não ser tão filosófico, até transcendente, quanto as melhores obras de John Ford, mas é tão competente, digno e valoroso quanto os faroestes de Anthony Mann. Algum espírito mais malicioso talvez diga que este filme é apenas tão interessante quanto um espetáculo do “Beto Carrero World”. Mas o que é o gênero e o que é o espetáculo, afinal de contas, senão isso mesmo?

Às vezes, e em alguns círculos, se fala em “filme de gênero” como se fosse uma coisa menor; mas deve-se pensar e analisar com muito cuidado. Os Indomáveis não precisa ser melhor do que um western típico, mas também não pode – e não é – pior. Faz muito jus à tradição, sem acrescentar nada a ela, mas sem lhe ser subserviente. O filme não exala aquele “oba-oba” idiota das “homenagens” feitas por um diretor-fã (coisa de Tarantinos da vida). Este filme não quer se mostrar, apenas mostrar. É uma obra de concepção e realização aplicadas, feita por gente que estuda o gênero do faroeste e procura reproduzi-lo como se estivéssemos na época áurea desse tipo de filme. No roteiro, temos o rancheiro Dan Evans (Christian Bale), que está sendo pressionado a abandonar suas terras em função da construção de uma linha férrea. Desprovido de recursos financeiros por causa da temporada de estio, ele acaba aceitando o “trampo” de ajudar a conduzir sob mira de revólver o perigosíssimo líder da gangue de assaltantes mais temida de toda a região, Ben Wade (Russell Crowe), até a estação de Contentown, onde o bandido deverá ser colocado no trem das 03:10 da tarde que o levará para a prisão de Yuma.

Logicamente, o bando de Wade, que continua à solta, fará de tudo para resgatá-lo. Até onde a compensação financeira deste trabalho valerá os riscos para Evans? E quanto ao valor moral e cívico da missão? Ben Wade é capaz de escapar por conta própria a qualquer momento da jornada, mas a simpatia que sente por Evans faz com que o criminoso aceite e jogue o jogo de prisioneiro-e-captor, curioso de descobrir até onde Evans é capaz de jogá-lo. Até onde vai a vontade, a persistência e a integridade do pobre rancheiro? Qual é sua real motivação? Wade vislumbra no interior de Evans um homem forte, um homem de valor, mas cuja força e valor ainda precisam vir mais à tona, serem dilapidados e canalizados. A afeição que o bandido sente pelo rancheiro não se deve a qualquer valor “cristão” (apesar de Wade gostar de recitar de cor versículos da Bíblia e de gabar-se de tê-la lido inteira), mas ao fato de Ben reconhecer em Evans uma vontade individual como a sua, impetuosa e íntegra (qualquer que seja essa vontade, não importa se “boa” ou “má”).

Eis o único valor que interessa de fato no Velho Oeste. Esse valor iguala num plano superior mocinho e bandido, esse valor é o que está por detrás dos indivíduos-lenda do velho oeste, estejam eles dentro ou fora da lei. Dan Evans diz ao próprio filho que quer ser o homem que levou (ou tentou levar) Ben Wade até o trem de Yuma quando “nobody else would” (“ninguém mais o faria – o queria fazer). O interessante é que ele diz “would”, e não “could” (o que equivaleria a “quando ninguém mais o poderia fazer”). Vê-se então que o único valor, a única competência, a única atribuição que importa é a da vontade, a do querer. Nem que seja a vontade de um único homem contra as vontades unidas de todos os outros (inclusive daqueles que deveriam ser seus aliados). Já viu esse filme?...

sexta-feira, fevereiro 15, 2008

quinta-feira, fevereiro 14, 2008

Hitchcock rules!




A famosa revista Vanity Fair publicou neste mês (ref. “march 2008”) um número especial: The Hollywood Issue. Trata-se da recriação de imagens-ícone de filmes clássicos do mestre Alfred Hitchcock, usando astros e estrelas da atualidade, como Charlize Theron, Scarlet Johansson, Javier Bardem, Naomi Watts, Keira Knightley, Jennifer Jason-Leigh, Émile Hirsch, Renée Zellweger, Gwyneth Paltrow, Robert Downey Jr., Jodie Foster.

O link para o portfolio completo, com todas as imagens, é:
http://community.livejournal.com/ohnotheydidnt/20148385.html

Agradeço por esta riquíssima informação ao ótimo blog do Professor André Setaro (está na sua postagem de 10 de fevereiro), o Setaro´s Blog:
http://setarosblog.blogspot.com/
Grande apreciador e conhecedor da obra do mestre-mor da Arte Cinematográfica.

Divulgar e manter sempre em primeiro plano o que é Cinema de verdade. Eis a idéia. Valeu!

segunda-feira, fevereiro 11, 2008

Surfe no Havaí


Surfe no Havaí (“North Shore”, EUA, 1987, dir.: William Phelps) é um clássico da sessão da tarde. Este pequeno e gostoso filme conta a história de Rick Kane, recém-saído da “High School”, que acaba de vencer o campeonato de surfe do Arizona (!) – que, obviamente, fora realizado numa piscina de ondas artificiais. Achando-se um grande surfista, Rick decide aproveitar as férias de verão e o prêmio em dinheiro recebido em uma viagem para o Havaí, para pegar “altas ondas”. Aqui já temos um tema muito comum em filmes sobre adolescentes norte-americanos: a grande viagem após terminar a escola e antes de ir para a Universidade, viagem que funciona como uma peregrinação individual de reflexão, descoberta interior e descoberta do mundo, uma espécie de rito de passagem que os tornará mais aptos a entrarem para o mundo adulto das colleges.

No caso do jovem Kane, nesta viagem também entra um dilema muito comum: investir no próprio sonho, ambicioso, louco e arriscado, ou acomodar-se num trabalho “normal”, numa vida “normal” e com bastante “segurança”? Antes de ir para a faculdade em Nova York, para estudar artes (ele desenha muito bem), Rick Kane prefere dar mais uma chance ao surfe. Como ele mesmo diz, para depois não se tornar uma daqueles velhos barrigudos que ficam assistindo a competições de surfe pela TV e dizendo: “eu era bom nisso!...” Contudo, assim que chega no Havaí, terra do surfe, o pobre Rick descobre que não entende nada de surfe nem de surfistas. O ingênuo rapaz do deserto é passado para trás por todo mundo, é roubado, cai em “pegadinhas”, quase morre ao tentar pegar as ondas grandes. Ele é o estereótipo do Haole – o turista, o otário.

Mas, de acordo com o bom espírito americano (ainda mais nos anos 80, com toda aquela cultura yuppie), ele não desiste. Continua batalhando e consegue fazer algumas amizades: com a caridosa nativa Kiani (que será o seu par romântico), com o surfista “doidão” Tartaruga e, principalmente, com Chandler – o mais respeitado artesão de pranchas de surfe do lugar, que se tornará o seu mestre e guru nos mistérios do mar e do esporte sobre as ondas. Chandler (obviamente, um homem mais velho) ensinará o jovem Kane tudo sobre a arte e a cultura do surfe, de acordo com uma mentalidade quase taoísta: é preciso compreender, respeitar e amar o mar, o bom surfista é aquele que sente a onda e vai com ela, sem impor suas próprias manobras violentas a todo custo. O bom surfista é um “surfista de alma”. Mas, infelizmente, só se encontram surfistas assim dentre os mais velhos, daqueles que usam “pranchões”.

Desse modo, Chandler é um tipo de Senhor Miyagi (ou Mestre Yoda) do surfe, e Rick Kane é um “Karatê Kid” das ondas. Um filme assim, só mesmo nos saudosos anos 80. O final não se conta, mas ele procura conciliar essa mentalidade “zen” oriental, desencanada, com a mentalidade ocidental do “ o importante é ser winner, e não looser” – também de uma maneira bem norte-americana. Enfim, por que este filme é interessante? Pelo roteiro pretensioso, mas sincero, bem construído e amarrado, trabalhando ideais e valores diversificados e pertinentes que dão um bom debate, de um modo naïf (com aquela leveza e ingenuidade que caracteriza os filmes juvenis da “sessão da tarde”). Pela boa caracterização das personagens (também de acordo com os padrões acima) e pelas belas imagens de surfe, que deixam qualquer um com vontade de se tornar “surfista de fim-de-semana” – contrariando logicamente a mensagem do filme.

sábado, fevereiro 09, 2008

Bom Dia


Bom Dia (1959), de Yasujiro Ozu, é dotado de uma graça muito semelhante àquela que sentimos nos filmes de Jacques Tati, particularmente em Meu Tio (1956). Ambas as obras são construídas com um rigor formal bastante rígido: a fotografia e a montagem são meticulosamente sóbrias e calculadas com minuciosa exatidão. Mas, para quem assiste a esses filmes, eles se mostram com uma surpreendente leveza, deliciosamente graciosa. Essa leveza vem do conteúdo apegado ao cotidiano mais banal, trabalhado com humor sutil e com sensível humanismo, expressos numa forma exata que só faz por agraciá-los e engrandecê-los sem exagerá-los. É com muito gosto que vemos películas assim, com um gosto bastante tranqüilo, com verdadeira paz de espírito. O cinema de Ozu é altamente contemplativo, de uma maneira bem “zen”, oriental, numa visão que dosa com invejável equilíbrio gravidade e bom humor.

Em Bom Dia, o rigor quase ritualístico da forma está na câmera “ajoelhada”, identificada ao olhar das crianças que são o foco deste filme; também está no uso muito consciente da profundidade de campo em 3 ou 4 planos de fundo sucessivos, cada um demarcado por batentes de portas, paredes ou outros objetos de cenário que funcionam para demarcar a perspectiva. O olhar da câmera de Ozu mantém sempre uma profundidade incrível. Na composição dos quadros, também é bem evidente o jogo de linhas retas que vão se interseccionando, formando figuras quadriláteras, um xadrez que está em tudo: na arquitetura das casas, na sua decoração interna, nas portas, janelas e cortinas, nas roupas das personagens e nas roupas de cama. E, o mais importante de todos os objetos no filme: o quadrado que forma a tela da televisão que é o mote central da intriga.

O trabalho com a cor também é muito bem cuidado: chamam a atenção os tons pastéis que predominam nos interiores das casas e no vestuário dos seus habitantes, rompidos aqui e ali por um vermelho bem vivo, vermelho este que atravessa numa listra o suéter bege dos dois meninos protagonistas, que lutarão contra seus pais para ganharem uma TV. Será este vermelho a marca da nova geração num Japão “moderno” e ocidentalizado? De qualquer modo, a grande harmonia entre todos os elementos visuais faz deste filme uma verdadeira pintura. Contudo, se juntarmos os elementos visuais estáticos (objetos de cenário, figurino, a fotografia fixa sem qualquer movimento de câmera) aos elementos visuais móveis (os atores – que são praticamente as únicas “coisas” dotadas de movimento no filme – e a montagem minimalista, apegada ao corte seco, construindo junto com a trilha sonora um tom geral muito leve para a narrativa de um cotidiano o mais banal) e aos elementos sonoros (que também são “móveis”: as falas mansas e os silêncios tensos, os ruídos baixos, a trilha sonora meio cômica – o que nos remete a Tati), então, não teremos mais uma pintura, mas uma canção.

Ozu e Tati estão longe de fazerem musicais, mas seus filmes são como canções. Eis a impressão, a sensação e a emoção maior que eles nos passam. Bom Dia é uma canção que se ouve com os olhos. As imagens valem por si só, por sua beleza humilde e por sua realidade comum. O enredo não importa, a intriga é reduzida ao mais essencial: um pedaço da vida do dia-a-dia, com as suas pequenas vontades e frustrações, enganos e desenganos, medos e esperanças. É claro que Ozu não despreza as questões psicológicas ou sociais, tudo isso está lá: um retrato das classes trabalhadoras do Japão dos anos 50, em vias de recuperação veloz sob o domínio norte-americano. A fascinação e desejo das crianças pela TV, o aposentado que tem de trabalhar como vendedor ambulante para complementar a renda da família, as fofocas e pequenas intrigas entre as vizinhas (que se resolvem de maneira tão banal e ilógica quanto surgiram), os flertes entre a jovem tia dos meninos e o professor de inglês deles.

Entretanto, para o cineasta, esses fatos todos não são elementos para a construção de uma tese, mas apenas fatos; e fatos acima de tudo humanos. Fatos que são mais interessantes de se viver ou de se testemunhar, do que de se ficar refletindo sobre eles com todo o veneno das abstrações teórico-racionalistas. E o que também é muito importante: mostrar tais fatos usando toda a arte e a poesia despretensiosa do cinema. Nestes pontos, o Neo-Realismo nipônico de Bom Dia é mais realista do que algumas obras dos italianos. O que significa o título “Bom Dia”? Ele mostra justamente a importância e o significado intrínseco das coisas cotidianas que para muitas pessoas não têm importância ou significado alguns. A linguagem que caracteriza a função fática da linguagem verbal é discutida num momento-chave da história: quando os meninos fazem greve de silêncio para se rebelarem contra ela, motivo que só será compreendido pelos adultos mais jovens – o professor e a tia dos garotos.

Mas o filme em si é uma grande defesa da poesia desta forma de linguagem, que não valerá de verdade pela sua mera definição acadêmica (de acordo com o lingüista Roman Jakobson, a função fática de expressões como “bom dia” e “como o dia está bonito hoje” serve para que se estabeleça o contato ou canal entre emissor e receptor numa situação de comunicação verbal, ou para que se mantenha vivo esse contato ou canal), mas pelo seu significado poético, ou seja, através da beleza de tais expressões em si mesmas e pela maneira como elas vão construindo a beleza das relações e das histórias humanas do dia-a-dia. O valor poético das coisas pequenas, simples e banais, em si mesmas. Valor esse que muitas vezes só é captado e compreendido pelo olhar fascinado da criança. Eis o filme de Ozu, mais do que qualquer pretensão “sociológica” que se lhe atribua. Bom dia!

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Vítimas da Tormenta


O Neo-Realismo já está aí há mais de 60 anos e tem o seu papel mais do que sedimentado na História do Cinema. Entretanto, como são poucos os filmes, de quaisquer lugares e épocas ao longo do último meio século, que logram alcançar o tamanho frescor, a naturalidade, a paixão forte e sincera pelas coisas as mais pequenas da vida e do mundo que movem os mestres italianos! Eles nos fazem sentir algo que transcende a experiência estética. Vemos um filme neo-realista com o mesmo gosto com que vemos a vida em si, testemunhando-a ou vivenciando-a diretamente. A impressão com que se fica ao se terminar de ver um filme italiano do pós-guerra é a impressão de um enriquecimento da nossa própria experiência de vida. Filmes assim são os mais gostosos de se ver. Gostosos como é gostoso mastigar um pedaço de bolo de chocolate.

Repito: não se trata de uma experiência estética racionalmente elaborada e racionalmente apreendida; mas de uma experiência puramente sensorial. É o viver mais essencial, o prazer e a dor mais essenciais. Tais idéias não são nenhuma descoberta, mas a gente nunca se cansa de se surpreender ao ver e rever os clássicos italianos. Seu efeito nunca se esgota. É a constante redescoberta, um (re)nascimento a todo momento para a novidade do mundo. Talvez por isso esses filmes focam tanto a figura da criança – como neste Vítimas da Tormenta (“Sciuscià”, 1946) – ou na do velho – caso de Umberto D, dos mesmos Vittorio de Sica (direção) e Cesare Zavattini (roteiro). A criança e o velho são as criaturas mais próximas das experiências fundamentais, das sensações essenciais, da vida mais pura que mais se apresenta no seu começo e no fim.

Vítimas da Tormenta é a história de dois jovens engraxates – Pasquale Maggi e Giuseppe Filippucci – que, ingenuamente, se envolvem numa trama de crime e castigo. Ambos são praticamente meninos de rua e o filme concentra a força narrativa na amizade dos dois (e nos seus trágicos conflitos). Como as melhores fitas do Neo-Realismo, esta aqui está repleta de elementos simbólicos (o cavalo que representa a união e, posteriormente, a desunião entre os dois garotos), tanto na fotografia – que é belíssima, são verdadeiras pinturas, o que é comum na Escola Italiana – quanto na montagem, onde mais se revela a discussão moral, a tese do filme (o que também é comum no cinema italiano do pós-guerra): veja-se a ligação por corte seco entre o plano que mostra o diretor do presídio juvenil onde estão presos Giuseppe e Pasquale, inspecionando a (parca e péssima) comida do refeitório, e o plano seguinte, que mostra os verdadeiros bandidos (por cujos crimes os dois rapazes estão pagando) refestelando-se numa farta cantina.

Contudo, é na fotografia que este filme parece realizar os seus maiores feitos estéticos. Os impressionantes contrastes de luz natural lembram a iluminação dos nossos sonhos ou de lembranças remotas da infância. Mas Giuseppe e Pasquale não estão sonhando, infelizmente. Estas figuras pequenas se vêem arremessadas de um lado para outro em um mundo por demais crescido, por demais adulto. Alguns planos filmados ao ar livre, na cidade real (um dos princípios neo-realistas), com os magníficos contrastes da luz e da contra-luz solar, adquirem uma forte impressão onírica, ou de fantasia. Mas o maior contraste é o de tal impressão e a realidade pesada dos fatos sofridos pelos personagens. Aqui a pureza da luz não lava o mundo de sua sujeira, de sua escuridão. Mas fica a tensão, a batalha persiste.

A arte neo-realista se faz pela realidade mais cotidiana e banal que é irremediavelmente afetada pela tragédia – elemento de ruptura que deveria ser o mais incomum, mas não é. A repetição acaba arrancando da tragédia o seu aspecto intrínseco de mais absurdo, bizarro, inaceitável. Acabamos por nos acomodar a ela. Isso se faz visível num plano exemplar de Vítimas da Tormenta, um tipo de plano comum também em outros filmes da escola, utilizando a bela profundidade de campo (o recurso mais interessante da Sétima Arte): no escritório da “FEBEM” italiana, vemos em primeiro plano o escrivão lendo em voz alta a sentença dos dois garotos (Giuseppe e Pasquale) que acabaram de chegar; estes permanecem em pé diante da mesa com rostos desconsolados. Enquanto apresenta as acusações, o escrivão não faz mais do que manter a cabeça baixa (sem olhar uma vez sequer para os meninos), fixa no papel, e coçar de leve a orelha direita, tediosamente...

A graça dos filmes neo-realistas está nesses pequenos detalhes: no contraste entre a “coçadinha” acima e a gravidade da situação em que se encontram os garotos. Contrastes simples assim têm muito significado e dão bastante matéria para reflexão. Tais sutilezas só se encontram nas melhores obras da arte cinematográfica.

sexta-feira, fevereiro 01, 2008

Onde Os Fracos Não Têm Vez


Há filmes que dão uma verdadeira aula de cinema. Filmes professores. Filmes mestres. Filmes que não só fazem muito bem o que eles se propõem a fazer, como também ensinam outros a fazê-lo. Filmes assim viram modelos, exemplos a serem admirados e seguidos, dão início a novas tradições ou mantêm vivas as velhas escolas. Nesta dança entre o velho e o novo, entre o modelo e o original, vez ou outra pipocam películas que fazem de tudo, mas de tudo mesmo para serem, ou pelo menos parecerem, cool. Outras fitas simplesmente são cool. Sem qualquer esforço visível, sem ficarem “se mostrando” o tempo todo, jogando purpurina nos olhos do espectador. São filmes simplesmente muito legais, de um jeito muito natural e próprio – é claro que, no processo para se atingir o “próprio”, tais filmes lograram assimilar muito sábia e equilibradamente suas influências, fontes, modelos, padrões, etc.

Esse equilíbrio entre a visão digamos pessoal do filme e as visões com que ele dialoga, assimilando-as ou renegando-as, é a coisa mais difícil de se atingir em qualquer forma de arte. Só os grandes mestres conseguem (e alguns jovens talentos muito raros). De imediato, vêm-me à mente dois exemplos óbvios: João Guimarães Rosa – na Literatura; Alfred Hitchcock – no Cinema. Ambos utilizam-se de uma ou de várias tradições a seu próprio proveito. Proveito o qual, dialeticamente, também o será da própria tradição. Numa relação de simbiose que sustenta as melhores obras artísticas, tanto a tradição quanto a obra particular saem enriquecidas de alguma maneira uma em função da outra. Ainda que de maneiras diferentes, pois os grandes artistas mestres e inventores inventam a sua obra reinventando a tradição.

Refiro-me à tradição tanto em sua forma quanto em seu conteúdo, pois qualquer estudante honesto sabe que a Estética só se constrói através de um entrelaçamento muito bom entre essas duas instâncias. Aqueles filmes que desejam tanto serem “cool” não possuem, infelizmente, tal noção (assim como muitos dos seus admiradores e defensores, para fazer aqui uma provocação). Aqueles filmes só enxergam e trabalham a técnica, em sua miopia descabidamente redutora. E muitas vezes também possuem uma visão ridiculamente pequena e fechada da própria técnica. Mas a verdade é que a técnica é algo muito mais rico, complexo, aberto e abrangente do que a preguiça dessas pessoas permite perceber. E a técnica – a forma, ainda por cima e principalmente, deve procurar se unir de uma maneira também muito rica, complexa, aberta e abrangente ao conteúdo da obra.

E o conteúdo, por sua vez e por fim, precisa ser e ser trabalhado de um modo também o mais rico, complexo, aberto e abrangente possível, respondendo sempre à forma, que o carrega e expressa. Somente assim nascerá a Estética (com E maiúsculo), e uma grande Estética. Pena que muitos filmes não se enquadram numa dimensão verdadeiramente Estética, não transcendem até ela. Mas de vez em (quando?) aparecem alguns que nos surpreendem e renovam as nossas crenças na arte e na humanidade. Eis o caso de Onde Os Fracos Não Têm Vez (“No Country For Old Man”, EUA, 2007). Para quem ainda não se deu conta, venho falado deste filme desde a primeira linha. É antológico. Pode ser já o melhor filme a ser exibido nas salas brasileiras em 2008. Com potencial para mais.

Há filmes que parecem já nascer com vocação para clássicos – é claro que estou exagerando: não dá para se saber exata e imediatamente se uma produção vai entrar para a história ou não (e o quanto, e o quando isso ocorrerá). Mas, analisando as características internas do próprio filme, já sentimos ele se aproximar do selo clássico. Que características? Muitas das quais eu já venho falando ao longo destas linhas: o equilíbrio incrível atingido entre o original e o tradicional, entre o individual e o coletivo, entre a forma e o conteúdo, entre o belo e o feio, entre o particular e o universal (principalmente). Os irmãos Joel e Ethan Coen trabalham todas essas coisas de uma maneira tão rica e tão profunda que a obra chega a uma verdadeira transcendência. O filme engloba tudo ao mesmo tempo em que transcende tudo. Segundo Aristóteles, o Belo é atingido no momento em que o receptor (espectador, leitor, ouvinte, etc) percebe que a obra transcende a si mesma.

Este é o momento de uma revelação, uma iluminação pela qual a obra de arte faz o seu apreciador passar. É o momento da Epifania. Alguns filmes incríveis apresentam sua epifania em algum momento bem específico e fugaz, perdido no meio da narrativa, ou no final. Outros, apresentam-na logo no começo (já ouvi dizer que um grande filme se reconhece logo nos 10 primeiros minutos de exibição). Outros, ainda, mais raros, mostram sua alma em diversos momentos, do começo até o final. Eis o caso de Onde Os Fracos Não Têm Vez. E esta película faz isso como só os grandes poemas fazem: com uma naturalidade, simplicidade e espontaneidade que esconde muito bem a riquíssima elaboração Estética que lhe dá corpo. Um filme assim não precisa de nenhum “efeito”, de nenhuma frescura tecnológica, não precisa de “botox”; basta trabalhar com os elementos que verdadeiramente fazem a Arte do Cinema: fotografia, montagem, direção, roteiro e atores. Pronto!

Não é à toa (ponto para a “Academia”, pelo menos neste caso) que a mais nova pérola dos irmãos Coen está concorrendo aos Oscars de melhor filme, fotografia, montagem, direção, roteiro adaptado e ator coadjuvante para Javier Bardem (o filme também concorre nas categorias de melhor som e edição de som). Fico realmente muito curioso e ansioso para saber o resultado final da premiação. Como eu já disse, a riqueza, a densidade, a profundidade e o equilíbrio desta obra notável lhe trazem um ar de clássico (ou de classicismo). No cinema contemporâneo dos Estados Unidos, há dois tipos de filme que são (ou serão) os mais merecedores da alcunha de clássicos: aqueles assinados por Clint Eastwood e os que pesam sob a autoria a quatro mãos de Joel e Ethan Coen.

Este Onde Os Fracos Não Têm Vez segue com maestria a melhor tradição do cinema clássico norte-americano: histórias de crime onde o individual e o coletivo, o psicológico e o sociológico, o texto e o contexto dialogam com muita riqueza e complexidade, em narrativas onde cada imagem, cada plano, incluindo todos os seus elementos visuais constituintes, está e se faz em função de algo que lhe transcende, um significado maior e mais abrangente. Como falei outro dia a respeito de O Gângster, todos os elementos da fotografia, da montagem, do roteiro e da direção exercem um papel específico, unem-se e contribuem para a criação e expressão de um todo que é mais do que a mera adição das partes. Não há pontas deixadas soltas. Não há o acaso, o mistério, o desvio inesperado, o cotidiano, o banal, ou seja: não há a própria vida como ela é, sem graça, cinza, monótona e monocromática.

Totalmente diferente e oposto ao que se tem no cinema europeu – basta ver o recente 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias. Se o cinema americano é de ação, o europeu é de estado; se o cinema americano é de acontecimentos, o europeu é de situações; se o cinema americano é de extra-ordinário, o europeu é de ordinário. Para colocar em terminologia teórica, segundo Gilles Deleuze, se o cinema americano é o da imagem-movimento, o cinema europeu é o da imagem-tempo. Se os filmes americanos se baseiam nas ações sensório-motoras, o europeu é fundamentado nas percepções ótico-sonoras puras. Este vocabulário já fala bastante por si só. Os irmãos Coen levam quase à perfeição o “sistema americano”, de uma maneira que só encontramos em fitas hollywoodianas dos anos 50 para trás – especialmente se pegarmos as obras de Alfred Hitchcock, o mais perfeito representante dessa tradição.

Em Onde Os Fracos Não Têm Vez, é belíssima a maneira como as paisagens semi-áridas do sudoeste norte-americano (Texas) dialogam com a aridez da história e dos seus personagens. Se o filme fosse composto apenas pelas imagens de abertura, que focalizam aquelas paisagens desertas enquanto a voz em off do personagem de Tomy Lee Jones faz justamente aquele pequeno discurso, ou lamento, ou confissão, já teríamos aí um grande filme. De resto, é em pequenos mas significativos detalhes que a arte do filme se faz. Que detalhes? Um certo enquadramento (em primeiro plano ou com profundidade de campo), um certo corte na montagem, o qual, assim como o enquadramento, escolhe muito bem o que mostrar e o que não mostrar – as coisas que é melhor que fiquem implícitas, pressupostas, subentendidas, sugeridas... Ou simplesmente coisas que não existem ou não aconteceram de fato – deixar margem à dúvida.

É muito significativo o fato de certas violências serem mostradas explicitamente, e outras não (sendo que, dentre estas últimas, algumas ficam na dúvida se aconteceram ou não, graças ao corte-seco na montagem, que separa o momento do “prestes a acontecer” do momento do “depois que já aconteceu” – mas será que aconteceu mesmo?...). Eis a sutileza dos irmãos Coen, e talvez o único elemento neste filme do humor negro, da ironia característica de outras produções dos diretores. Além da paisagem árida (que dialoga muito bem com a paisagem nevada de Fargo, também dos Coen), outros elementos e detalhes do cenário são trabalhados e orquestrados muito significativamente. Às vezes, um rastro de sangue no chão, outras vezes um gato bebendo leite de uma tigela, são pequenas coisas que dão o suspense e uma espécie de humor grave à história, bem ao modo de Hitchcock.

Tome-se a seguinte cena: o pobre Llewelyn Moss (Josh Brolin) mantém guarda sentado na cama do seu quarto de hotel, voltado para a porta, esperando com arma em punho o assassino (Anton Chigurh, verdadeiramente vivenciado por Javier Bardem) que poderá entrar a qualquer momento. É noite, o quarto está totalmente escuro e o protagonista mantém os olhos fixos no vão embaixo da porta, iluminado pela luz do corredor. De repente, surgem a sombra de dois pés, que param bem diante da porta... Alguém discorda que tal cena seja tão assustadora quanto uma outra cena bastante parecida de Janela Indiscreta, dirigida pelo “mestre do suspense”? Veja essa cena até o fim e compare-a ainda mais com a sua “fonte”. É um trabalho bem interessante.

Enfim, quase todos os elementos de Onde Os Fracos Não Têm Vez atestam o classicismo norte-americano. Pois há algo que cai fora da ordem. Algumas ações praticadas pelos personagens não surtem efeito (pelo menos, não o efeito desejado). Principalmente as ações mais decisivas, as mais essenciais. Assim, há sempre um espaço intransponível entre o sujeito e o objeto que busca. Lembremos que tal objeto também é sujeito, a buscar o mesmo objeto-sujeito que o persegue. Temos aí duas cobras que tentam morder a cauda uma da outra. O espaço intransponível, percorrido em seu limite pelo sujeito-objeto e pelo objeto sujeito, é mais do que o espaço físico do Texas (e um pouco do México) que há entre o Sr. Moss, o Sr. Chigurh, o Sr. Carson Wells (Woody Harrelson) e o Sr. Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones) que se perseguem e se buscam uns aos outros. Os espaços, de quaisquer natureza que sejam, são refletidos uns nos outros ao infinito – como se fossem espelhos – no entrelaçamento do jogo Estético do filme, que eu discuti antes.

São tais reflexos, e suas reflexões implícitas, que interessam à obra. A mala do dinheiro “roubado” é apenas um chamariz, um elemento unificador apenas em termos de narrativa. É o que Hitchcock chama de “MacGuffin” (ver as entrevistas com Truffaut): uma mera desculpa para que se fale de outras coisas. Tanto é assim que o filme não mostra exatamente, não deixa claro qual foi o destino final da “mala”. Não interessa, não importa. O roteiro também não se preocupa em tratar detalhadamente da sua origem, nem daqueles que seriam os seus donos (os que a deram e os que a receberam na mais ou menos misteriosa transação “comercial”). Os irmãos Coen querem é falar dos intermediários, dos “middle-men”, daqueles que – por planejamento ou por acaso – interferiram numa história que daria outro filme. A história desses homens deu neste filme. Que homens? Llewelyn Moss, Anton Chigurh e Ed Tom Bell.

Veja como é elaborado o roteiro escrito pelos próprios Coen. Ricamente elaborado, mas sem qualquer aparência de pretensão. Eis o melhor! Outra “armadilha” narrativa, esta mais facilmente perceptível: o verdadeiro protagonista, o foco digamos temático e ideológico do filme não é o Sr. Moss, mas o Sr. Bell. E nisto, mais um ponto para a atuação de Tommy Lee Jones. Mas, como eu estava discutindo, há algo de furado, de frustrado nas ações dos personagens, o que desfaz o circuito perfeito dos acontecimentos numa narrativa tradicionalmente hollywoodiana. Eles estão sempre aquém do que buscam: seja porque são simplesmente incapazes (Moss); seja porque as forças do mundo são maiores, as forças de um mundo que não mais lhes pertence, um mundo no qual foram exilados pelo tempo (uma tradução mais exata do título seria “Onde Os Velhos Não Têm Vez), um mundo transformado que não reconhecem mais e, assim, perderam a competência de lidar com ele (caso de Ed Tom Bell); seja por causa do próprio acaso, que jamais poderá ser suprimido, por melhores que sejam os planejamentos (o que se aplica, de modo incrível, ao Sr. Chigurh).

Com tudo isso, o filme que mais carrega em si a tradição do cinema americano não deixa de ter algo de europeu. Algo de Antonioni – que é um dos grandes mestres do “sistema europeu”, assim como Hitchcock o é do “sistema americano”. O inatingível: como se pode agir ou reagir em relação a algo que está fora do alcance?. O incompreensível: como agir ou reagir em relação a algo que se percebe (e, às vezes, mal se percebe) mas que não se compreende de modo algum? (É a angústia-mote do filme, expressa por Tommy Lee Jones logo na abertura e reiterada em diversos momentos até o final). O incomunicável: como expressar tudo isso? Talvez só mesmo misturando Hitchcock com Antonioni é que se pode fazer um western contemporâneo, adaptado e pertinente a contemporaneidade. Expressando a modernidade – ou pós-modernidade, ou como o diabo o chame.

Por isso, Onde Os Fracos Não Têm Vez é um filme que discute a crise. A crise de valores, valores esses expressos pelo personagem de Tommy Lee Jones. Os irmãos Coen não propõem o resgate, sequer a defesa, de valor ético, moral, ideológico ou social algum. Mas, tal qual num poema antigo, apenas lamentam a sua perda, confessam a dor e o espanto de o indivíduo sobreviver num mundo no qual algo importante se perdeu, irremediavelmente. Trata-se do leitmotiv do Ubi Sunt (“Onde está?”), recorrente na história da poesia desde a Idade Média (vide “As Neves de Antanho”, do francês François Villon). O título original do filme é bem mais significativo, pois não se trata de “fracos”, mas de “velhos”. Ao pé da letra: “Sem país (sem lugar, sem terreno, sem região) para os homens velhos”. Aí se resume toda a força do conteúdo desta obra. É a história da nação e também do cinema norte-americano, ambos os locais onde já não há mais espaço para os “velhos”, para os “clássicos”. O tom de lamento e de confissão perpassa o filme de cabo a rabo. Se isso é ser de “direita”, ser “conservador”, então este é o mais belo (e inteligente) filme de direita que eu já vi. Mas tais rotulações são sempre perigosamente redutoras. Eu odeio citá-las, nem que seja só relativamente ou de brincadeira, pois há sempre alguém que não vai entender direito e levar a coisa para o lado ruim.