Páginas

segunda-feira, fevereiro 25, 2008

Melhor Filme no Oscar 2008


Comemorando a vitória de “No Country For Old Men” nos Academy Awards de melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro adaptado e melhor ator coadjuvante (para Javier Bardem), publico aqui a crítica que saiu na Cahiers du Cinema sobre o filme, numa tradução do original em Francês empreendida por mim mesmo.

O Grande Retorno

por Vincent Malausa

Agonizante. Eis o estado no qual gira a obra dos irmãos Coen desde Os Matadores de Velhinhas (“Ladykillers”, 2004), comédia do fundo do poço que sucedeu a um filme tão leviano quanto inútil, Crueldade Intolerável (“Intolerable Cruelty”, 2003). Portanto, é preciso, para se medir a enormidade – e a brutalidade – do grande retorno ocasionado por Onde Os Fracos Não Têm Vez, partir de tal estado, e sobretudo não deixar passar em branco o período de estiagem artística iniciado por um filme majestoso como uma ave de mau agouro, O Homem Que Não Estava Lá (2001).

As primeiras imagens de Onde Os Fracos Não Têm Vez são uma negação da escuridão “noir” na qual se refestela O Homem Que Não Estava Lá, este belo filme que também não está lá, assim como o seu personagem-título. Na obra mais recente, ao contrário, todos os elementos afirmam uma presença reencontrada, a vontade de estar lá, e exatamente lá: planos suntuosos de estrada e de deserto; a ferida de um policial estirado em um decurso insustentável; os passos silenciosos do jovem “cowboy” Llewelyn Moss, durante uma caçada, ao descobrir os restos de uma carnificina. O renascimento dos irmãos Coen passa por uma violência tamanha, e mais ainda pela terra natal do Texas, lugar remoto que, na representação da cidadezinha perdida do barbeiro de O Homem Que Não Estava Lá, não era mais do que uma metáfora em preto e branco para uma rua sem saída.

Tirado de um best-seller do mestre americano Cormac McCarthy, Onde Os Fracos Não Têm Vez traduz ao pé da letra a trama e todos os seus elementos. A adaptação se resume essencialmente a um desafio de mise en scène. A estrutura narrativa é altamente depurada: Moss se depara com o produto de um roubo, encontrado na cena da chacina, e se vê imediatamente caçado por Chigurh, um medonho matador de sangue frio (Javier Bardem) procurado em toda a região. A parte moral e quase bíblica do conto é representada pelo velho xerife Bell (Tommy Lee Jones), que toma o caso em dois tempos, os dois únicos do filme: conter a hemorragia causada pela doença (a fuga de Llewelyn, o massacre de Chigurh por onde quer que passe) e expressar seu olhar de pai desiludido com o Oeste agonizante.

Esta presença reencontrada coloca em evidência o retorno de uma mise en scène ao presente. Mas trata-se de um presente ligeiramente diferente do qual seria necessário falarmos. Neste ponto também, a abertura do filme é decisiva. As botas do policial que se debate desenham um caos de borracha preta no assoalho, uma mancha de sangue da caça atingida por Moss inscreve-se em vermelho vivo sobre a areia prateada. O modo de percepção de Onde Os Fracos Não Têm Vez é o do realce – impressões, traços, sinais, restos. E é ainda a partir da descoberta por Moss da matança, cena de crime imóvel e muda, que se desenrola uma das seqüências mais dinâmicas, a perseguição com um cão através de montanhas e pequenas ravinas. A coletânea destes signos desencadeia a ação, chama a atenção para a paisagem; ou, ao menos, descobrem na mise en scène um trabalho de escrita. Não obstante, esta arte de presságios, característica dos irmãos Coen, ainda encontra terreno para se enraizar discretamente na velocidade incerta do enredo, road-movie nos limites do filme de ação – uma novidade para os cineastas.

Estamos em 1980, outro índice de contemporaneidade decadente. Para Cormac McCarthy, esse momento é, evidentemente, o da passagem do Velho Oeste para a era moderna dos novos traficantes, tanto quanto parece porosa a fronteira entre o Texas e o México, sobre a qual reina o xerife Bell. Para os Coen, este espaço e este tempo difusos, os quais eles não sentem maior necessidade de circunscrever mais detalhadamente, marcam com a maior certeza uma passagem. E se Onde Os Fracos Não Têm Vez finge de voltar às origens, terra de “losers” e de caipiras ignorantes, jogo de massacre à lá Gosto de Sangue ou Fargo, a recusa a um ambiente impecável rompe sobretudo com o gosto pelos mecanismos em circuito fechado e os pequeninos mundos em vasos fechados. Não podendo associar a clareza da mise en scène ao espaço incerto da história, assim como o xerife perde pouco a pouco o uso do seu sistema de valores, os Coen soltam a fivela que parecia apertar o seu barbeiro de O Homem Que Não Estava Lá.

Mais tarde, o pequeno receptor que permite a Chigurh seguir atrás de Moss, graças ao emissor de sinal escondido dentro da valise de dinheiro, toma as rédeas da percepção deficiente. O dispositivo atinge o seu melhor papel na seqüência em que o matador, orientado pelos apitos estridentes do aparelho, avança lentamente à procura do quarto de motel no qual está refugiado Moss, equivocando-se levemente, o que é mostrado através de um refinado truque de montagem. Para estes efeitos sutis de latência, de defasagem ou de retardo que perturbam o avançar da carruagem, o filme mantém os personagens numa flutuação entre proximidade e distanciamento. As imagens funcionam por meio de contrastes visuais bem diretos, conduzindo lado a lado o dia (o deserto e suas luzes douradas, magnificamente fotografadas por Roger Deakins na abertura) e a noite (o retorno noturno de Moss ao lugar da carnificina). Assim, sob irradiação ou às apalpadelas, Onde Os Fracos Não Têm Vez avança rumo a uma extinção dos signos.

Daí a impressão de os personagens flutuarem em um espaço mais e mais heterogêneo. Os Coen juntam a tudo isso uma gama de efeitos de “flou” inéditos. Enquadramentos através de vidros, vão de porta, pára-brisa quebrado ou reflexo jogado numa tela de TV desligada, os personagens se extenuam em silhuetas sombrias ou desmembradas. Reduzidas a pó fino pela peneira da mise en scène. Tal fragmentação é salutar: ela impede o filme de se gastar no mecanismo perfeitamente lubrificado do thriller (figuras plenas, hiper-precisão típica dos cineastas) e impõe aos personagens ficarem apenas à escuta. Remeter às cegas à ação, expor a parte de ilegibilidade e de ineficácia da percepção visual, eis o que faz esta obra se agitar vivamente, uma obra acima de tudo inclinada a se embriagar da sua transparência e da sua claridade.

Esta ponta de sombra que relança em permanência o road-movie, no qual os personagens escapam literalmente por entre os dedos, evoca um outro grande filme: Zodíaco, de David Fincher. O psicopata encarnado por Javier Bardem, com o seu penteado bem comportado, bradando uma mangueira e um botijão de ar comprimido, poderia ser o inverso do assassino misterioso de Fincher. Seus homicídios selvagens, que ele tempera com joguetes do tipo cara-ou-coroa, ou com diálogos de se cair por terra, chamam a atenção por sua gratuidade. Tudo parece tropeçar em cima deste bloco de estranheza extrema, e o fôlego do filme se prende em qualquer dos seus momentos de ultra-violência. Poderia ver-se aí não mais do que a encarnação do fatalismo irônico e do gosto pelo absurdo que colam nas produções dos irmãos Coen como uma lama metafísica. Contudo, ainda há mais: Chigurh aspira tudo o que a intriga mantém febrilmente suspenso em seu fio.

Este responde, portanto, em perfeita simetria ao personagem do xerife Bell, fantasma sem conquista. É preciso então voltar ao título (“No Country For Old Men”), cuja beleza crepuscular está anestesiada pela tradução francesa (e também pela brasileira, acrescenta o tradutor). É nesta consciência desencantada do Velho Oeste – que a fisionomia de Tommy Lee Jones afirma com realeza – que se firma o horizonte do filme. Reinando sobre esse espaço pontilhado, o xerife se coloca como um guardião de um museu (da obra dos Coen e, mais ainda, de uma “desconquista” do Oeste, frustradas desde o seu início) do qual não há mais controle. O relato de impressões metódico e sem cessar frustrado que lhe permite avançar diz ainda melhor: voltar à pista e ultrapassar o Mal; malgrado o nível do ponto de vista que impõe a tarefa, trata-se sempre de evitar a desgraça de se chegar depois.

Ao avanço de Moss, e ao retardo do velho xerife, o filme opõe o abismo figurativo de Chigurh. O monstro se coloca no centro dos dois tempos da história, igualmente órfãos: a ingenuidade do cowboy que nos remete à veia enérgica e burlesca dos primeiros filmes dos Coen, a inércia do xerife evocando a morbidez extenuada do Barbeiro (de O Homem Que Não Estava Lá) e seu reino de ruínas. Às vezes, os dois se confundem: e o xerife, no tempo de um sonho despedaçado, diminui-se numa infância que o seu pai abandonara à noite. Esta pode ser a chave. Consciência do fim de um mundo para McCarthy, Bell coloca para os Coen uma questão de ordem mais cinematográfica: o que sobra da herança dos pais frente à juventude cega de Chigurh, encarnação do avanço que o filme tem sobre si mesmo? A resposta parece clara: uma simples voz basta para encher novamente a história da sua memória, sendo o caso simplesmente de se compreender o seu murmúrio e a sua persistência.

Esta sutil reaprendizagem do escutar não é a menor das surpresas oferecidas por Onde Os Fracos Não Têm Vez. Esconde-se no filme uma secreta benevolência que permite ver longe, e reviver uma das questões que esta década deixou aberta. A geração americana dos anos 90 (Coen, Fincher, Tarantino) com toda a sua hiper-tonicidade e agressividade referenciais, consegue ser solúvel no regime um tanto quanto delicado do contemporâneo? Depois de Zodíaco e de Death Proof, Onde Os Fracos Não Têm Vez confirma: sim, ainda há um país para os nossos heróis.

Nenhum comentário:

Postar um comentário