A incrível impressão de realidade trazida pelo Cinema deu muita matéria para as reflexões apaixonadas dos seus maiores pensadores e experimentadores. Dentre estes, são clássicos os nomes de: Dziga Vertov (com os filmes Cine-Olho – 1924, Cinema-Verdade – 1925, Um Homem Com Uma Câmera – 1929); e do crítico André Bazin. Contudo, hoje em dia, a pura realidade captada pela câmera transformou-se numa espécie de fetiche (culpa da indústria?), ou, pelo menos, perdeu força o aspecto racional de tal cinema: o mero real, capturado com uma exatidão cujas preocupações não vão além do documental.
Em Cloverfield – Monstro (“Coverfield”, EUA, 2008, dir.: Matt Reeves), o homem com a câmera – uma filmadora caseira que constrói e conduz a totalidade do filme – diz e repete a importância de documentar tudo o que está acontecendo, enquanto luta desesperadamente para salvar a própria vida. Mas, em meio a todo aquele contexto (um monstro gigantesco à lá Godzilla que ataca Manhattan), é impossível para um sujeito manter a compostura necessária para manejar a câmera de modo a criar a fantasia ou impressão de que se trata apenas de um olho incorpóreo a testemunhar tudo, sem qualquer envolvimento (que é o que acontece em qualquer filme, seja de ficção ou documentário).
Em Cloverfield, o olho mecânico da filmadora está identificado não só ao olho orgânico do homem que a segura, mas também ao seu próprio corpo, como um todo – vejam-se os momentos em que a câmera fica apenas a filmar o teto, o chão e outras coisas sem o menor enquadramento, indicando claramente que aquele que a segura está ocupado em correr ou em fazer qualquer outra atividade necessária com o seu corpo que não segurar adequadamente uma câmera a filmar um objeto específico.
Poderíamos chamar isto de uma “filmagem inconsciente”, na qual o sujeito não está a par da diferenciação entre o seu próprio corpo e olhar, com seus movimentos específicos e necessários, e o “corpo” da câmera, com um outro olhar, que pede outros movimentos. O processo é o mesmo de se colocar uma filmadora na mão de uma criança (ou mesmo de um adulto absolutamente inexperiente no manejo desta tecnologia) e pedir que ela filme a festinha de aniversário do seu irmãozinho. Aliás, isto é uma coisa muito comum. Nesta forma de “cinema”, o corpo e o olhar da câmera transformam-se indissociavelmente no corpo e no olhar do sujeito.
Se o Cinema é a arte maior da Realidade, não seria este o maior Cinema? Uma vez que se advoga um Cinema profundamente realista e fenomenológico, não seria o caso de dizer que qualquer filmezinho caseiro representa o melhor e mais bem filmado Cinema? Qualquer criança poderia ser considerada o maior gênio da Sétima Arte, muito mais do que os gênios oficiais de D. W. Griffith, Orson Welles, Alfred Hitchcock, Serguei Eisenstein, dentre tantos outros. Filmes como A Bruxa de Blair (“The Blair Witch Project”, EUA, 1999, dir.: Daniel Myrick e Eduardo Sánchez) e este Cloverfield teriam as maiores e melhores qualidades estéticas.
E a onda continua. A mais nova produção a aportar nas salas de projeção dentro desta “escola” é Diary of the Dead (“Diário dos Mortos”), do grande mestre das fitas de zumbi George A. Romero. O “documentário” é o que mostra a câmera de um jovem que presenciara a primeira noite do ataque dos mortos-vivos, mostrada originalmente em A Noite dos Mortos-Vivos (“Night of the Living Dead”, 1968). Não duvido nada que o gênio dos zumbis de Romero vá colocar no chinelo o monstro de que estamos aqui falando e a bruxa que o antecedeu – por mais que estes sejam de fato bons.
Colocando em outras palavras, o fato mais interessante de filmes assim é: não basta dizer que o Cinema é a Realidade. Pois não existe pura e simplesmente uma realidade objetiva a ser captada objetivamente (a não ser por uma máquina, pela máquina da filmadora, por exemplo; mas a câmera não possui consciência, além de ser um invento do homem). Essencialmente, a única realidade de que podemos falar é aquela que nós mesmos experimentamos segundo nossos próprios sentidos. E tal experiência é sempre carregada de mil e uma determinações subjetivas, ou que têm a ver com o complicado contexto fenomenológico-existencial da situação vivida.
Desse modo, a realidade estará sempre subjugada a um ponto de vista. Sabemos que as melhores obras do Cinema e da Literatura lutam com todas as suas forças para transmitir da maneira mais viva possível um ponto de vista interior, subjetivo (que não será necessariamente o de seu autor, mas principalmente o do personagem). Sendo assim, não há que se desconsiderar as experimentações do tipo Cloverfield. Pelo contrário, elas merecem bastante reflexão, quando não até mesmo algum crédito. O Cinema industrial contemporâneo, buscando soluções criativas para a sua própria sobrevivência, parece dividir-se em dois caminhos absolutamente distintos, trilhando-os ao mesmo tempo:
1. O caminho da alta tecnologia, que busca aprimorar ao máximo o poder de fantasia das artes cinematográficas: é o caso de todo o trabalho com os efeitos especiais e com o tratamento tecnológico-computadorizado da imagem, culminando em experimentos como A Lenda de Beowulf (“Beowulf”, EUA, 2007, dir.: Robert Zemeckis). 2. O caminho do despojamento extremo de qualquer tecnologia, tendo-se em vista a naturalidade, a simplicidade e a espontaneidade acima de tudo, tentando aprimorar ao máximo o poder de realidade da Sétima Arte. É o caso deste Cloverfield.
Tanto o poder de fantasia (que nos remete às origens do cinema com Georges Méliès) quanto o poder de realidade (que traz de volta a origem do cinematógrafo com os irmãos Lumière) possuem claros e fortes apelos comerciais (dos quais seus dois pioneiros procuraram se aproveitar). Fantasia e realidade são necessidades sócias e psicológicas; não é à toa que a Indústria as transforma a ambas em fetiches. Agora, o que parece ser uma conquista específica de Cloverfield é o fato desta película unir e trabalhar as duas frentes: o filme todo não passa da filmagem de uma câmera caseira nas mãos de um amador, e esta câmera capta nada mais nada menos do que um monstro gigante de computação gráfica que assola, também muito graficamente, a cidade de Nova York...
Em Cloverfield – Monstro (“Coverfield”, EUA, 2008, dir.: Matt Reeves), o homem com a câmera – uma filmadora caseira que constrói e conduz a totalidade do filme – diz e repete a importância de documentar tudo o que está acontecendo, enquanto luta desesperadamente para salvar a própria vida. Mas, em meio a todo aquele contexto (um monstro gigantesco à lá Godzilla que ataca Manhattan), é impossível para um sujeito manter a compostura necessária para manejar a câmera de modo a criar a fantasia ou impressão de que se trata apenas de um olho incorpóreo a testemunhar tudo, sem qualquer envolvimento (que é o que acontece em qualquer filme, seja de ficção ou documentário).
Em Cloverfield, o olho mecânico da filmadora está identificado não só ao olho orgânico do homem que a segura, mas também ao seu próprio corpo, como um todo – vejam-se os momentos em que a câmera fica apenas a filmar o teto, o chão e outras coisas sem o menor enquadramento, indicando claramente que aquele que a segura está ocupado em correr ou em fazer qualquer outra atividade necessária com o seu corpo que não segurar adequadamente uma câmera a filmar um objeto específico.
Poderíamos chamar isto de uma “filmagem inconsciente”, na qual o sujeito não está a par da diferenciação entre o seu próprio corpo e olhar, com seus movimentos específicos e necessários, e o “corpo” da câmera, com um outro olhar, que pede outros movimentos. O processo é o mesmo de se colocar uma filmadora na mão de uma criança (ou mesmo de um adulto absolutamente inexperiente no manejo desta tecnologia) e pedir que ela filme a festinha de aniversário do seu irmãozinho. Aliás, isto é uma coisa muito comum. Nesta forma de “cinema”, o corpo e o olhar da câmera transformam-se indissociavelmente no corpo e no olhar do sujeito.
Se o Cinema é a arte maior da Realidade, não seria este o maior Cinema? Uma vez que se advoga um Cinema profundamente realista e fenomenológico, não seria o caso de dizer que qualquer filmezinho caseiro representa o melhor e mais bem filmado Cinema? Qualquer criança poderia ser considerada o maior gênio da Sétima Arte, muito mais do que os gênios oficiais de D. W. Griffith, Orson Welles, Alfred Hitchcock, Serguei Eisenstein, dentre tantos outros. Filmes como A Bruxa de Blair (“The Blair Witch Project”, EUA, 1999, dir.: Daniel Myrick e Eduardo Sánchez) e este Cloverfield teriam as maiores e melhores qualidades estéticas.
E a onda continua. A mais nova produção a aportar nas salas de projeção dentro desta “escola” é Diary of the Dead (“Diário dos Mortos”), do grande mestre das fitas de zumbi George A. Romero. O “documentário” é o que mostra a câmera de um jovem que presenciara a primeira noite do ataque dos mortos-vivos, mostrada originalmente em A Noite dos Mortos-Vivos (“Night of the Living Dead”, 1968). Não duvido nada que o gênio dos zumbis de Romero vá colocar no chinelo o monstro de que estamos aqui falando e a bruxa que o antecedeu – por mais que estes sejam de fato bons.
Colocando em outras palavras, o fato mais interessante de filmes assim é: não basta dizer que o Cinema é a Realidade. Pois não existe pura e simplesmente uma realidade objetiva a ser captada objetivamente (a não ser por uma máquina, pela máquina da filmadora, por exemplo; mas a câmera não possui consciência, além de ser um invento do homem). Essencialmente, a única realidade de que podemos falar é aquela que nós mesmos experimentamos segundo nossos próprios sentidos. E tal experiência é sempre carregada de mil e uma determinações subjetivas, ou que têm a ver com o complicado contexto fenomenológico-existencial da situação vivida.
Desse modo, a realidade estará sempre subjugada a um ponto de vista. Sabemos que as melhores obras do Cinema e da Literatura lutam com todas as suas forças para transmitir da maneira mais viva possível um ponto de vista interior, subjetivo (que não será necessariamente o de seu autor, mas principalmente o do personagem). Sendo assim, não há que se desconsiderar as experimentações do tipo Cloverfield. Pelo contrário, elas merecem bastante reflexão, quando não até mesmo algum crédito. O Cinema industrial contemporâneo, buscando soluções criativas para a sua própria sobrevivência, parece dividir-se em dois caminhos absolutamente distintos, trilhando-os ao mesmo tempo:
1. O caminho da alta tecnologia, que busca aprimorar ao máximo o poder de fantasia das artes cinematográficas: é o caso de todo o trabalho com os efeitos especiais e com o tratamento tecnológico-computadorizado da imagem, culminando em experimentos como A Lenda de Beowulf (“Beowulf”, EUA, 2007, dir.: Robert Zemeckis). 2. O caminho do despojamento extremo de qualquer tecnologia, tendo-se em vista a naturalidade, a simplicidade e a espontaneidade acima de tudo, tentando aprimorar ao máximo o poder de realidade da Sétima Arte. É o caso deste Cloverfield.
Tanto o poder de fantasia (que nos remete às origens do cinema com Georges Méliès) quanto o poder de realidade (que traz de volta a origem do cinematógrafo com os irmãos Lumière) possuem claros e fortes apelos comerciais (dos quais seus dois pioneiros procuraram se aproveitar). Fantasia e realidade são necessidades sócias e psicológicas; não é à toa que a Indústria as transforma a ambas em fetiches. Agora, o que parece ser uma conquista específica de Cloverfield é o fato desta película unir e trabalhar as duas frentes: o filme todo não passa da filmagem de uma câmera caseira nas mãos de um amador, e esta câmera capta nada mais nada menos do que um monstro gigante de computação gráfica que assola, também muito graficamente, a cidade de Nova York...
Bela análise!
ResponderExcluirFazia tempo que eu não via um filme do gênero ser tão tenso. Gostei de Cloverfield.
ResponderExcluir7.0
Abraço!!!
André, excelente reflexão. Compartilho do seu pensamento e vindo de um filme da trupe de J.J. Abrams, me surpreendo o quanto pode se extrair do ponto de vista da linguagem, considerando que é um filme de puro entretenimento. Não que o filme tenha em si alguma substância, mas não há dúvidas de que é um objeto de estudo exemplar. By the way, linkei seu texto lá no Cinematório.
ResponderExcluir[]s!
Gostei do filme, mas para mim ficou um ar de enganação ao final. Tem seus momentos de tensão e prende a atenção do espectador, porém esperava bem mais.
ResponderExcluirValeu pelos comentários, galera! Renato, obrigado especialmente pelo link no Cinematório!
ResponderExcluir"Cloverfield" não é nenhuma obra-prima acabada, mas é uma ótima experimentação! É inspirador e abre caminhos...
Abraços!