Páginas

quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Cloverfield - Monstro


A incrível impressão de realidade trazida pelo Cinema deu muita matéria para as reflexões apaixonadas dos seus maiores pensadores e experimentadores. Dentre estes, são clássicos os nomes de: Dziga Vertov (com os filmes Cine-Olho – 1924, Cinema-Verdade – 1925, Um Homem Com Uma Câmera – 1929); e do crítico André Bazin. Contudo, hoje em dia, a pura realidade captada pela câmera transformou-se numa espécie de fetiche (culpa da indústria?), ou, pelo menos, perdeu força o aspecto racional de tal cinema: o mero real, capturado com uma exatidão cujas preocupações não vão além do documental.

Em Cloverfield – Monstro (“Coverfield”, EUA, 2008, dir.: Matt Reeves), o homem com a câmera – uma filmadora caseira que constrói e conduz a totalidade do filme – diz e repete a importância de documentar tudo o que está acontecendo, enquanto luta desesperadamente para salvar a própria vida. Mas, em meio a todo aquele contexto (um monstro gigantesco à lá Godzilla que ataca Manhattan), é impossível para um sujeito manter a compostura necessária para manejar a câmera de modo a criar a fantasia ou impressão de que se trata apenas de um olho incorpóreo a testemunhar tudo, sem qualquer envolvimento (que é o que acontece em qualquer filme, seja de ficção ou documentário).

Em Cloverfield, o olho mecânico da filmadora está identificado não só ao olho orgânico do homem que a segura, mas também ao seu próprio corpo, como um todo – vejam-se os momentos em que a câmera fica apenas a filmar o teto, o chão e outras coisas sem o menor enquadramento, indicando claramente que aquele que a segura está ocupado em correr ou em fazer qualquer outra atividade necessária com o seu corpo que não segurar adequadamente uma câmera a filmar um objeto específico.

Poderíamos chamar isto de uma “filmagem inconsciente”, na qual o sujeito não está a par da diferenciação entre o seu próprio corpo e olhar, com seus movimentos específicos e necessários, e o “corpo” da câmera, com um outro olhar, que pede outros movimentos. O processo é o mesmo de se colocar uma filmadora na mão de uma criança (ou mesmo de um adulto absolutamente inexperiente no manejo desta tecnologia) e pedir que ela filme a festinha de aniversário do seu irmãozinho. Aliás, isto é uma coisa muito comum. Nesta forma de “cinema”, o corpo e o olhar da câmera transformam-se indissociavelmente no corpo e no olhar do sujeito.

Se o Cinema é a arte maior da Realidade, não seria este o maior Cinema? Uma vez que se advoga um Cinema profundamente realista e fenomenológico, não seria o caso de dizer que qualquer filmezinho caseiro representa o melhor e mais bem filmado Cinema? Qualquer criança poderia ser considerada o maior gênio da Sétima Arte, muito mais do que os gênios oficiais de D. W. Griffith, Orson Welles, Alfred Hitchcock, Serguei Eisenstein, dentre tantos outros. Filmes como A Bruxa de Blair (“The Blair Witch Project”, EUA, 1999, dir.: Daniel Myrick e Eduardo Sánchez) e este Cloverfield teriam as maiores e melhores qualidades estéticas.

E a onda continua. A mais nova produção a aportar nas salas de projeção dentro desta “escola” é Diary of the Dead (“Diário dos Mortos”), do grande mestre das fitas de zumbi George A. Romero. O “documentário” é o que mostra a câmera de um jovem que presenciara a primeira noite do ataque dos mortos-vivos, mostrada originalmente em A Noite dos Mortos-Vivos (“Night of the Living Dead”, 1968). Não duvido nada que o gênio dos zumbis de Romero vá colocar no chinelo o monstro de que estamos aqui falando e a bruxa que o antecedeu – por mais que estes sejam de fato bons.

Colocando em outras palavras, o fato mais interessante de filmes assim é: não basta dizer que o Cinema é a Realidade. Pois não existe pura e simplesmente uma realidade objetiva a ser captada objetivamente (a não ser por uma máquina, pela máquina da filmadora, por exemplo; mas a câmera não possui consciência, além de ser um invento do homem). Essencialmente, a única realidade de que podemos falar é aquela que nós mesmos experimentamos segundo nossos próprios sentidos. E tal experiência é sempre carregada de mil e uma determinações subjetivas, ou que têm a ver com o complicado contexto fenomenológico-existencial da situação vivida.

Desse modo, a realidade estará sempre subjugada a um ponto de vista. Sabemos que as melhores obras do Cinema e da Literatura lutam com todas as suas forças para transmitir da maneira mais viva possível um ponto de vista interior, subjetivo (que não será necessariamente o de seu autor, mas principalmente o do personagem). Sendo assim, não há que se desconsiderar as experimentações do tipo Cloverfield. Pelo contrário, elas merecem bastante reflexão, quando não até mesmo algum crédito. O Cinema industrial contemporâneo, buscando soluções criativas para a sua própria sobrevivência, parece dividir-se em dois caminhos absolutamente distintos, trilhando-os ao mesmo tempo:

1. O caminho da alta tecnologia, que busca aprimorar ao máximo o poder de fantasia das artes cinematográficas: é o caso de todo o trabalho com os efeitos especiais e com o tratamento tecnológico-computadorizado da imagem, culminando em experimentos como A Lenda de Beowulf (“Beowulf”, EUA, 2007, dir.: Robert Zemeckis). 2. O caminho do despojamento extremo de qualquer tecnologia, tendo-se em vista a naturalidade, a simplicidade e a espontaneidade acima de tudo, tentando aprimorar ao máximo o poder de realidade da Sétima Arte. É o caso deste Cloverfield.

Tanto o poder de fantasia (que nos remete às origens do cinema com Georges Méliès) quanto o poder de realidade (que traz de volta a origem do cinematógrafo com os irmãos Lumière) possuem claros e fortes apelos comerciais (dos quais seus dois pioneiros procuraram se aproveitar). Fantasia e realidade são necessidades sócias e psicológicas; não é à toa que a Indústria as transforma a ambas em fetiches. Agora, o que parece ser uma conquista específica de Cloverfield é o fato desta película unir e trabalhar as duas frentes: o filme todo não passa da filmagem de uma câmera caseira nas mãos de um amador, e esta câmera capta nada mais nada menos do que um monstro gigante de computação gráfica que assola, também muito graficamente, a cidade de Nova York...

5 comentários:

  1. Fazia tempo que eu não via um filme do gênero ser tão tenso. Gostei de Cloverfield.

    7.0

    Abraço!!!

    ResponderExcluir
  2. André, excelente reflexão. Compartilho do seu pensamento e vindo de um filme da trupe de J.J. Abrams, me surpreendo o quanto pode se extrair do ponto de vista da linguagem, considerando que é um filme de puro entretenimento. Não que o filme tenha em si alguma substância, mas não há dúvidas de que é um objeto de estudo exemplar. By the way, linkei seu texto lá no Cinematório.

    []s!

    ResponderExcluir
  3. Gostei do filme, mas para mim ficou um ar de enganação ao final. Tem seus momentos de tensão e prende a atenção do espectador, porém esperava bem mais.

    ResponderExcluir
  4. Valeu pelos comentários, galera! Renato, obrigado especialmente pelo link no Cinematório!

    "Cloverfield" não é nenhuma obra-prima acabada, mas é uma ótima experimentação! É inspirador e abre caminhos...

    Abraços!

    ResponderExcluir