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terça-feira, março 13, 2007

Os Infiltrados


Frank Costello (Jack Nicholson) é um personagem construído para entrar no rol das grandes figuras – de criminosos – do cinema. A sua apresentação é em grande estilo: vemo-lo discursar em off como se numa entrevista, enquanto se ocupa de coisas “cotidianas” como extorquir um pequeno comerciante, sem nunca vermos claramente o seu rosto – envolto em sombras. Isso já dá um ar mítico para o personagem, mas ao mesmo tempo vago, desimportante. Planos de rostos cortados por sombras fazem lembrar Cidadão Kane (Orson Welles, 1941). O próprio Martin Scorsese confessou que, ao realizar Os Infiltrados, procurou inspirar-se em filmes noir antigos, particularmente os de gângsters. O sombreamento da face é algo interessante porque, ao mesmo tempo que engrandece o personagem, o faz diminuir, como se fosse uma vergonha. É a ambigüidade do ato de esconder: esconde-se tanto o que é de alto e raro valor, e por isso deve ser preservado longe da perscrutação demolidora do olhar alheio, quanto o que é de baixo valor, o constrangido e constrangedor; esconder um rosto também é tirar a individualidade do ser, como se reduzindo-o a mera função social.

E aqui é onde a coisa se torna significativa e tensa, pois a frase que inicia o filme, dita por Frank Costello, é: “I don’t wanna be a product of my environment, but my environment to be a product of me”. Essa é uma das angústias que mais atormentam o homem moderno e pós-moderno: os limites dos determinismos sociais. Em que medida somos, e podemos nos fazer, autênticos? Em que medida podemos exercer um papel consciente e importante na comunidade em que vivemos? Acredito que a idéia mais em voga entre os intelectuais é a negativa: somos irremediavelmente determinados pelo meio social; as conquistas e liberdades que podemos ter são ou ilusórias ou mínimas. Entretanto, os personagens dos filmes de Martin Scorsese lutam com todas as suas forças – mesmo já combalidas – para conquistar a sua liberdade e afirmar a sua identidade pessoal e diferenciada. Eis o drama que procura tomar espaço nas tragédias que são as histórias de Scorsese. Tragédias, pois afinal o personagem não conseguirá, ou conseguirá de maneira ilusória e mínima, ou ainda às muitas e terríveis expensas, conquistar a sua individualidade. Em Os Infiltrados, os clamores do policial undercover William Costigan (Leonardo diCaprio) para que lhe seja devolvida a sua identidade revelam o fundo e também o patético do drama individual no palco da tragédia social.

Também é significativa na composição desse quadro a alegria com que o investigador Ellerby (Alec Baldwin) elogia o Patrioct Act, sem o qual seus trabalhos poderiam ser largamente ineficientes.

A primeira vez em que vemos, à luz e de frente, o rosto de Frank Costello, é quando ele pergunta ao seu pupilo (o jovem Collin Sullivan, na fase adulta vivido por Matt Damon) se ele quer ser um policial ou um criminoso. O próprio Frank imediatamente já responde – com o rosto colocando-se de frente na luz: “when you’re facing a loaded gun, there is no diference”. Essa fala revela e explica muito do comportamento dos dois personagens infiltrados (Collin Sullivan na polícia e William Costigan no crime), ao longo do filme. Quando se tem uma arma apontada para si – que é uma das experiências-limite na vida do sujeito em sociedade – todas as funções sociais perdem o sentido; só interessa, nesse caso, a sobrevivência e a afirmação do indivíduo em si, colocado então em xeque. Eis porque se ilumina o rosto de Frank Costello.

N’Os Infiltrados, mocinhos e bandidos, polícia e crime, bem e mal não se equivalem; apenas se dissolvem quando despejados na panela onde ferve a sopa do indivíduo.

“The Departed”: os mortos, os enviados, os abandonados, os relegados, os entregues, etc. Os personagens procuram libertar-se de quaisquer determinantes que se lhes impõem como limites ao vôo do indivíduo. Costello, o gângster-mor, quer sempre mais de si mesmo, quer ser um produtor em seu meio; Sullivan, infiltrado de Costello na polícia, cogita o como seria a sua vida se pudesse fazer faculdade de direito à noite enquanto trabalha na polícia de dia; Costigan, expulso da academia de polícia, mas escolhido para o trabalho sujo de infiltrar-se na gangue de Costello, quer romper o histórico de fracasso e preconceito de que sua família é alvo. O resultado e o patético de tudo isso já é dado no título do filme. O banho de sangue no final é quase cômico, farsesco, mas também aí está o patético de uma tragédia que se quer viver como drama.

Exceto por uma coisa: o personagem policial de Mark Wahlberg (Dignam) é o único no controle total de suas ações e intenções; é o único indivíduo que é o que quer e faz o que quer. Sua participação é demais! Será que há esperança? Talvez os outros, se por um lado buscam a auto-afirmação, por outro não deitam abaixo as máscaras sociais; querem ser produtores de seu meio, mas não têm coragem de deixar totalmente de serem produto: Costello renega o conselho de Costigan para abandonar o crime e se aposentar; o próprio Costigan não se demite do seu “trabalho”; Sullivan não consegue dizer não a Costello. Dignam é o único que age à sua própria maneira, sem se preocupar com as reações de outras pessoas nem com as relações. É o único que sai vitorioso.

Este mais recente filme de Scorsese é sobre “ratos”, que em inglês são gíria para espiões infiltrados. Ratos também são a imagem da covardia, da vergonha. Ratos são um dos mais fortes e terríveis produtos de um meio social que pode ser julgado justamente por ter ratos como um de seus principais “produtos”. Contudo, ratos acabam sendo também produtores: produzem (ainda mais) sujeira, nojo, doenças, enfim, decadência. Ratos têm consciência dessas coisas? Certamente não. E se tivessem? Eis a estimulante premissa de Os Infiltrados.

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