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quinta-feira, janeiro 11, 2007

O Jogo da Morte


Alguns pontos altos da rica experiência cinematográfica vêm até nós, muitas vezes, de maneira abrupta e inesperada. Uma das melhores maneiras de se viver um filme é assisti-lo “sem querer querendo” – quando, vítimas inertes daquele tédio sonolento, zapeamos os canais da TV até cair em uma produção que nos hipnotiza lenta e astutamente; ou quando, para escapar ao metrô lotado da hora do rush, nós nos enfurnamos solitariamente em uma sala de exibição para ver “qualquer coisa”; ou ainda, quando somos praticamente arrastados a contra-gosto por alguém (namorada, amigos, etc), para ver aquele filme que, se dependesse de nossa única decisão, nunca o veríamos.

Essas situações tornam-se assim tão especiais quando o filme em questão realmente nos surpreende, além da nossa vontade, demolindo todas as nossas expectativas e transformando por completo nosso estado de espírito. Quando saímos profundamente enriquecidos por um filme do qual inicialmente não esperávamos coisa alguma – no máximo um entretenimento mediano. A experiência de começar a ver um filme com uma indisposição nervosa (ou com mera indiferença) e terminar a sessão tendo essa indisposição gradativamente transformada em um alegre entusiasmo é uma das melhores coisas que o cinema tem a oferecer. Pelo menos, é muito melhor do que entrar para ver aquela “obra-prima” e sair com a cara totalmente quebrada...

A televisão, e sua programação sempre randômica de filmes, é um excelente meio para assistir a produções que desconhecemos por completo e que dificilmente viríamos a conhecer de outro modo. A maioria dos pequenos grandes filmes que vi foi na TV, nas circunstâncias retratadas no primeiro parágrafo deste texto. Esses “pequenos grandes filmes” não fazem parte da queridinha linha do cinema “independente”, “alternativo”, “cabeça”. De jeito nenhum. São, na maioria dos casos, filmes de gênero produzidos com baixo orçamento (em relação aos blockbusters), porém, dotados de uma criatividade inversamente proporcional a este.

Filmes assim passam “batido” pela crítica e pelo grande público (alguns sequer entram no circuito comercial dos cinemas brasileiros, indo parar direto nas locadoras de vídeo ou na TV), mas conquistam o seu grupo de fãs, que, graças ao poderoso e anárquico marketing do “de boca em boca”, transformam-nos em cult. É extremamente interessante analisar filmes assim, as questões em que eles se baseiam e as que eles levantam, e que contribuem muito para assinalar a sua originalidade.

O Jogo da Morte (“Five Fingers”, EUA, 2005) ainda é por demais recente para ganhar a aura de “cult”, e talvez sequer tenha a capacidade para tanto; mas é um filme carregado de imaginação e de questões pertinentes a serem discutidas, e que surpreende. Assisti a ele nesta segunda-feira de madrugada, no canal pago Telecine Premium. Não chamou a atenção da mídia ou da crítica. Foi lançado em DVD em março do ano passado e acho que não passou pelos cinemas brasileiros (mas não tenho certeza total disso).

Escrito e dirigido por Laurence Malkin – que, antes dele, só realizara o obscuro “Soul Assassin” –, contando no elenco com os ótimos Laurence Fishburne (o Morpheus da trilogia “Matrix”) e Ryan Phillippe (que está na mais recente obra de Clint Eastwood, “A Conquista da Honra”, prestes a estrear no Brasil), Five Fingers (o título original é ótimo) é um suspense psicológico altamente claustrofóbico, com repercussões em questões sócio-políticas da mais alta prioridade no cenário mundial pós 11 de setembro. O enredo trata de Martijn (Phillippe), um jovem idealista holandês que está em Marrocos para implantar um programa de combate à fome por sua própria autoria e recursos. Então, ele é raptado – junto com o seu guia (vivido por Colm Meaney, o Chief O’Brien de “Star Trek: the Next Generation” e “Deep Space Nine”) pelo misterioso muçulmano Ahmat (Fishburne) que, usando recursos dos mais variados: desde uma partida de xadrez até a amputação sistemática dos dedos do pobre holandês, procura interrogá-lo sobre fatos que Martijn nega, mas que no fundo... Calarei por aqui. Deixo apenas as perguntas: quem é Ahmat e o que ele realmente quer? Será que Martijn é realmente quem diz ser? Quem é que diz a verdade? E o que é a verdade?

Se essa sinopse inicial já parece interessante, veja o filme inteiro e surpreenda-se com os acontecimentos posteriores.

A mútua desconfiança, a rede de mentiras tão bem trançada que se torna uma verdade, os segredos mantidos a todo custo, a paranóia, a descrença cínica em grandes ideais ao mesmo tempo em que se luta por eles com um fundamentalismo assustador, a frieza, a naturalidade, o cinismo e até a crueldade com que se faz um “trabalho” altamente discutível (com métodos mais discutíveis ainda), tudo isso é muito pertinente no mundo pós 11 de setembro de 2001 e aparece de modo contundente no filme. A atual geopolítica é um jogo, um jogo delicado e muito perigoso, onde nem todas as regras, peças, jogadas e jogadores estão claros e à mostra. Às vezes, tudo fica muito confuso, podemos ter em mente com precisão o que devemos fazer, mas, em tal cenário, vacilamos. Nesses casos, jogar o jogo é, na verdade, jogar o adversário, estudá-lo e manipulá-lo. É também o filme que manipula as emoções, idéias, ideais, preconceitos e expectativas do público; existe algo de hitchkokiano neste filme, em mais de um ponto. Ahmat diz, durante a partida de xadrez com Martijn, que os ocidentais jogam muito pôker e que deveriam jogar mais xadrez. Lembre-se dessa fala no final do filme e reflita.



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