O fato de “Tróia” (EUA, 2004, dir.: Wolfgang Petersen), pretensa adaptação da clássica epopéia “A Ilíada”, não apresentar qualquer dos elementos fantásticos da mitologia grega revela bastante sobre a nossa cultura contemporânea. Vivemos um tempo de profunda (e cada vez maior) desilusão, que disfarçamos sob uma máscara de obsessão pelo “realismo”. Parece que não nos permitimos mais dar asas livres à fantasia... como se isso fosse coisa de criança ou de tolos. Assim, nossos novos mitos – e também as releituras que fazemos de velhos mitos – são cada vez mais permeáveis (e até vítimas, assim como todos nós) de todas as vicissitudes que caracterizam a vida no mundo material.
Neste ano de 2006 que passou, tivemos no cinema dois grandes exemplos que ilustram deliciosamente tal situação:
1. O Super-Homem vaidoso, ciumento e falível, em “Super-Homem, o Retorno” (EUA, 2006, dir.: Bryan Synger);
2. O James Bond inexperiente, indeciso, sensível (até apaixonado) e – é lógico – falível, em “007 – Cassino Royale” (EUA, 2006, dir.: Martin Campbell).
Reclamou-se da “feiúra” de Daniel Craig para encarnar o agente 007, mas seus traços mais “rudes” condizem bem com o personagem: esse novo 007 (na verdade, em início de sua carreira como agente “00”) não tem qualquer sutileza, sabedoria ou aquele charme cínico / dândi / niilista que caracterizam os outros 007. Ele vai aprender tudo isso – a muito custo – ao longo de suas aventuras e desventuras neste filme. E o filme mostra esse processo muito bem. “Cassino Royale” é como que um “romance de formação” (bildungsroman) de James Bond, o qual já foi um mito “cavaleiresco-cavalheiresco” para o homem-masculino ocidental na segunda metade do século XX, mas que aqui recebe carne e espírito humanos como qualquer outro pobre-diabo.
Com o perdão do termo, neste filme James Bond praticamente só se “fode”... Seus fracassos e sofrimentos são levados muito a sério pelo filme (em comparação, é claro, com todos os outros filmes da franquia). A cena da tortura é magnífica, atinge de maneira muito significativa a exata masculinidade do Sr. Bond. Depois dos mais de vinte filmes da série, uma cena dessas num filme desses joga uma luz surpreendentemente nova no mito e no homem 007. Eu nunca imaginaria que um dia veria o Sr. Bond chorar...
Mas o mais interessante é ver que tudo o que faz de James Bond um mito nasceu de muito sofrimento e frustração. De uma maneira muito romântica, só mesmo um homem que perdeu a sua humanidade pode transformar-se nessa figura que tanto conhecemos. Neste filme, a polaridade se inverte completamente e o agente 007 vira um verdadeiro e profundo anti-herói. Em princípio, são valores positivos para o crescimento do indivíduo a superação dos traumas, a adaptação às condições adversas e a manutenção da objetividade para se fazer “o que é preciso”; mas, em se tratando de um agente do MI-6 com permissão para matar, a coisa fica mais complicada...
Nunca fui um fã incondicional de franquias cinematográficas. Meus diretores prediletos sempre abominaram esse tipo de cinema. No entanto, devo admitir que Cassino Royale foi uma das experiências mais fantásticas que vi do gênero até hoje. Durante anos, legiões de fãs sentiram saudades do eterno Sean Connery (até hoje). Finalmente, um diretor corajoso como Martin Campbell soube trabalhar um novo Bond (que tem tudo para dar um novo gás a franquia, que andava morta, pelo menos para mim, desde que Roger Moore entregou a cadeira). Abraços do crítico da caverna e feliz 2007.
ResponderExcluirEstou passando para falar sobre o meu novo blog
ResponderExcluir(http://claque-te.blogspot.com) onde eu escreverei sobre filmes que chamaram minha atenção enquanto
que o the cave ficará como um panorama global do que está rolando na sétima arte ultimamente. Além disso, há textos meus de 15 em 15 dias no portal
Reação Cultural (http://reacaocultural.blogspot.com), uma revista virtual da qual participo.
Abraços do crítico da caverna.