O mito.
O mito é a figura que encarna os valores e anseios de toda uma população. A concretude icônica do mito dá realidade e resistência aos pensamentos mais vagos e longínquos. Todas as culturas, de todos os povos, de todos os lugares e de todas as épocas possuem a sua galeria de mitos. O mito ajuda tanto o indivíduo quanto o coletivo a viver e evoluir. Dois grandes especialistas em mitologia: o antropólogo Joseph Campbell e o psicanalista C. G. Jung (para o qual os mitos representam os arquétipos básicos) alertaram em suas obras para os males de uma sociedade sem mitos. Males que afetam nosso mundo urbano, industrial, progressivamente cínico pois cada vez mais desiludido e confuso. Entretanto, nossa sociedade (pós) moderna não deixa de encontrar e valorizar a sua própria mitologia. Nossos mitos já não são exatamente os mesmos de outros tempos e lugares, eles são mais adequados às nossas circunstâncias e mentalidades específicas. O mito precisa se atualizar, renovar-se e transformar-se para que continue tendo algo a oferecer às pessoas. Apesar disso, certas características universais permanecem, pois, no fundo, trata-se de uma mesma humanidade.
Onde estão, então, os nossos mitos atuais? Onde podemos reconhecer, como num espelho, aquilo que somos e – além disso – aquilo que buscamos? Em dois lugares especiais: o Cinema e as Histórias em Quadrinhos. Esses dois veículos de comunicação têm uma difusão e um impacto no meio da população geral que, em outras eras, eram atributos da Literatura e da Religião. E é nas histórias em quadrinhos, em particular, que encontramos aquele que está no topo do Olimpo moderno: O Super-Homem.
Paradoxalmente, o alienígena Kal-El (nome de nascimento do herói que, na urbe mítica de Metrópolis, disfarça-se como o jornalista Clark Kent) representa em princípio os maiores ideais e sonhos humanos: super-força, super-velocidade, super-resistência e capacidade de voar, além de outros fascinantes atributos físicos; um incorruptível senso de altruísmo, desprendimento pessoal e responsabilidade que fazem com que a figura do (super) herói seja a nova reencarnação do Messias. Tudo, na figura e no universo do Superman, faz referência simbólica e exemplar à nossa sociedade ocidental.
Apesar de tudo isso, a figura do herói de capa vermelha deixou de ser atual, deixou de nos surpreender e de nos comover. Como já dissemos, nós somos hoje muito cínicos e desiludidos, levados por traumas terríveis a descrer de valores puros e absolutos, que apenas nos parecem por demais ingênuos, tolos. Assim, não aceitamos (pelo menos, não seriamente) a figura de um homem bonito demais, bondoso demais e poderoso demais, que nem homem é de verdade (é extraterrestre).
Por isso, é interessantíssimo o enfoque que o diretor Bryan Singer deu ao já velho e desgastado mito do Super-Homem, concedendo-lhe humanidade e falibilidade, lembrando-se de uma tendência já presente nas histórias em quadrinhos mais recentes. Esse é o grande diferencial em relação ao filme original de Richard Donner (1978), não obstante tantos outros pontos em comum, como o reaproveitamento da trilha sonora magnífica de John Williams. O Superman de Singer é perfeitamente dotado de todos os poderes míticos que garantem-lhe o papel a desempenhar no mundo, mas é também o solitário último-de-sua-espécie que abandona temerariamente a humanidade que protege para procurar os restos de seu planeta natal, sem avisar nem se despedir sequer de pessoas mais queridas, como Lois Lane (pois ele também tem o velho medo das despedidas). Quando retorna, é o soberbo que estufa o peito de orgulho com as palmas por sua mais nova cena de salvamento super-heróico. Ele é o filho do interior, que assistindo em casa aos noticiários de guerras e grandes catástrofes naturais, deve se perguntar: “Com todo o meu poder, o que eu posso fazer?” É o ciumento que espiona a vida íntima da mulher amada (Lois Lane), já casada com outro homem. Mais tarde, para essa mesma mulher, ele confessa o quanto fica tocado e responsabilizado pelas pessoas que clamam todos os dias “pelo salvador”. Ele precisa da humanidade tanto quanto ela precisa dele, ele é o último de sua raça, o filho adotivo do planeta Terra; mais do que discutir se o mundo precisa ou não do Super-Homem, é importante reconhecer que ele precisa do mundo, afinal, ele voltou. Enfim, é o super-herói que falha em sua missão, cai perante o seu inimigo e é praticamente assassinado. Mas é logo salvo e “ressucitado” pelas mesmas pessoas que ele luta para defender: a mulher que ama, os médicos dotados de um poder que é apenas humano, a população em vigília. A cena de Kal-El sendo conduzido às pressas pelos corredores de um pronto-socorro tem uma força cinematográfica que transcende até as esferas do mito: o salvador que é salvo é justamente o que nós queremos ver, exigimos que os nossos mitos espelhem não só os pontos altos, mas também os baixos, de nós mesmos e de nossas vidas nesta realidade cruel. Tal cena encontra um paralelo também perfeito em Homem-Aranha 2, no combate entre este e o Dr. Octopus em um trem do metrô de Nova York.
O Super-Homem de Bryan Singer é o Mito Total, unindo o perfeito e o imperfeito de tal maneira que só encontra equivalência (guardadas as devidas proporções, apesar de as ambições de Singer serem altas) no mito cristão do redentor: o Jesus Cristo que é humano e divino a um só tempo. Como um deus, esse Super-Homem é onipotente (ele sustenta às costas o imenso globo metálico do jornal “O Planeta Diário” tanto quanto um gigantesco mini-continente rochoso que arremessa ao espaço – ele é o Atlas pós-moderno), onipresente (pratica ações heróicas ao redor do mundo todo, viajando próximo da velocidade da luz; o grande super-herói americano tornou-se globalizado), onisciente (com sua visão de raio-x, ele vê tudo, e com sua super-audição, ele tudo ouve) e, finalmente, imortal. E, contrariamente a tudo isso, mas complementando tudo isso dentro do mito cristão, quando ele vai cair (estando em órbita do planeta Terra), ele assume a postura de pernas juntas, braços abertos e cabeça tombada do Cristo na cruz, com o planeta azul ao fundo. Ecce Homo.
O mito é a figura que encarna os valores e anseios de toda uma população. A concretude icônica do mito dá realidade e resistência aos pensamentos mais vagos e longínquos. Todas as culturas, de todos os povos, de todos os lugares e de todas as épocas possuem a sua galeria de mitos. O mito ajuda tanto o indivíduo quanto o coletivo a viver e evoluir. Dois grandes especialistas em mitologia: o antropólogo Joseph Campbell e o psicanalista C. G. Jung (para o qual os mitos representam os arquétipos básicos) alertaram em suas obras para os males de uma sociedade sem mitos. Males que afetam nosso mundo urbano, industrial, progressivamente cínico pois cada vez mais desiludido e confuso. Entretanto, nossa sociedade (pós) moderna não deixa de encontrar e valorizar a sua própria mitologia. Nossos mitos já não são exatamente os mesmos de outros tempos e lugares, eles são mais adequados às nossas circunstâncias e mentalidades específicas. O mito precisa se atualizar, renovar-se e transformar-se para que continue tendo algo a oferecer às pessoas. Apesar disso, certas características universais permanecem, pois, no fundo, trata-se de uma mesma humanidade.
Onde estão, então, os nossos mitos atuais? Onde podemos reconhecer, como num espelho, aquilo que somos e – além disso – aquilo que buscamos? Em dois lugares especiais: o Cinema e as Histórias em Quadrinhos. Esses dois veículos de comunicação têm uma difusão e um impacto no meio da população geral que, em outras eras, eram atributos da Literatura e da Religião. E é nas histórias em quadrinhos, em particular, que encontramos aquele que está no topo do Olimpo moderno: O Super-Homem.
Paradoxalmente, o alienígena Kal-El (nome de nascimento do herói que, na urbe mítica de Metrópolis, disfarça-se como o jornalista Clark Kent) representa em princípio os maiores ideais e sonhos humanos: super-força, super-velocidade, super-resistência e capacidade de voar, além de outros fascinantes atributos físicos; um incorruptível senso de altruísmo, desprendimento pessoal e responsabilidade que fazem com que a figura do (super) herói seja a nova reencarnação do Messias. Tudo, na figura e no universo do Superman, faz referência simbólica e exemplar à nossa sociedade ocidental.
Apesar de tudo isso, a figura do herói de capa vermelha deixou de ser atual, deixou de nos surpreender e de nos comover. Como já dissemos, nós somos hoje muito cínicos e desiludidos, levados por traumas terríveis a descrer de valores puros e absolutos, que apenas nos parecem por demais ingênuos, tolos. Assim, não aceitamos (pelo menos, não seriamente) a figura de um homem bonito demais, bondoso demais e poderoso demais, que nem homem é de verdade (é extraterrestre).
Por isso, é interessantíssimo o enfoque que o diretor Bryan Singer deu ao já velho e desgastado mito do Super-Homem, concedendo-lhe humanidade e falibilidade, lembrando-se de uma tendência já presente nas histórias em quadrinhos mais recentes. Esse é o grande diferencial em relação ao filme original de Richard Donner (1978), não obstante tantos outros pontos em comum, como o reaproveitamento da trilha sonora magnífica de John Williams. O Superman de Singer é perfeitamente dotado de todos os poderes míticos que garantem-lhe o papel a desempenhar no mundo, mas é também o solitário último-de-sua-espécie que abandona temerariamente a humanidade que protege para procurar os restos de seu planeta natal, sem avisar nem se despedir sequer de pessoas mais queridas, como Lois Lane (pois ele também tem o velho medo das despedidas). Quando retorna, é o soberbo que estufa o peito de orgulho com as palmas por sua mais nova cena de salvamento super-heróico. Ele é o filho do interior, que assistindo em casa aos noticiários de guerras e grandes catástrofes naturais, deve se perguntar: “Com todo o meu poder, o que eu posso fazer?” É o ciumento que espiona a vida íntima da mulher amada (Lois Lane), já casada com outro homem. Mais tarde, para essa mesma mulher, ele confessa o quanto fica tocado e responsabilizado pelas pessoas que clamam todos os dias “pelo salvador”. Ele precisa da humanidade tanto quanto ela precisa dele, ele é o último de sua raça, o filho adotivo do planeta Terra; mais do que discutir se o mundo precisa ou não do Super-Homem, é importante reconhecer que ele precisa do mundo, afinal, ele voltou. Enfim, é o super-herói que falha em sua missão, cai perante o seu inimigo e é praticamente assassinado. Mas é logo salvo e “ressucitado” pelas mesmas pessoas que ele luta para defender: a mulher que ama, os médicos dotados de um poder que é apenas humano, a população em vigília. A cena de Kal-El sendo conduzido às pressas pelos corredores de um pronto-socorro tem uma força cinematográfica que transcende até as esferas do mito: o salvador que é salvo é justamente o que nós queremos ver, exigimos que os nossos mitos espelhem não só os pontos altos, mas também os baixos, de nós mesmos e de nossas vidas nesta realidade cruel. Tal cena encontra um paralelo também perfeito em Homem-Aranha 2, no combate entre este e o Dr. Octopus em um trem do metrô de Nova York.
O Super-Homem de Bryan Singer é o Mito Total, unindo o perfeito e o imperfeito de tal maneira que só encontra equivalência (guardadas as devidas proporções, apesar de as ambições de Singer serem altas) no mito cristão do redentor: o Jesus Cristo que é humano e divino a um só tempo. Como um deus, esse Super-Homem é onipotente (ele sustenta às costas o imenso globo metálico do jornal “O Planeta Diário” tanto quanto um gigantesco mini-continente rochoso que arremessa ao espaço – ele é o Atlas pós-moderno), onipresente (pratica ações heróicas ao redor do mundo todo, viajando próximo da velocidade da luz; o grande super-herói americano tornou-se globalizado), onisciente (com sua visão de raio-x, ele vê tudo, e com sua super-audição, ele tudo ouve) e, finalmente, imortal. E, contrariamente a tudo isso, mas complementando tudo isso dentro do mito cristão, quando ele vai cair (estando em órbita do planeta Terra), ele assume a postura de pernas juntas, braços abertos e cabeça tombada do Cristo na cruz, com o planeta azul ao fundo. Ecce Homo.
Há, também, em Superman, o sacrifício pela humanidade, a função salvífica, e a angústia terrível de uma imensa responsabilidade. É o invulnerável-vulnerável, o filho-órfão. Bravos pelo Blog
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