Publiquei o texto abaixo, originalmente, no site CINEFILIA, em 2009. O que segue é uma revisão, levemente modificada.
Existem alguns filmes clássicos que só podem ser categorizados como paradigmas do cinema. É claro que muitos desses paradigmas vão perdendo a sua majestade, enquanto outros permanecem, mas o que importa é reconhecer quais os filmes que fundaram ou levaram à perfeição uma determinada concepção de cinema. Segundo essa maneira de ver e apreciar a arte inventada por Méliès (os Lumière criaram não mais do que os meios tecnológicos), não interessa, absolutamente, decidir qual dentre os grandes clássicos seja o melhor, ou os cinco, dez ou 575 melhores filmes da “história” do cinema. É irrelevante discutir quais os critérios de desempate entre O Encouraçado Potemkim e Cidadão Kane enquanto maiores obras-primas de todos os tempos. Por mais que seja divertido fazer isso, às vezes, é bom nos lembrarmos de não levar tal trabalho muito a sério.
Assim sendo, eu não quero saber qual é a quantidade de filmes que eu considero os maiores da sétima arte, tampouco me preocuparei em organizar “pódiuns” entre eles – a não ser de acordo com critérios profundamente afetivos. Mas, com certeza, há um punhado de fitas que ficam guardadas numa parte especial da estante, todas lado a lado. Trágico Amanhecer (“Le Jour se Lève”, França, 1939, dir.: Marcel Carné) é definitivamente uma delas. Esta obra pode não ser tão conhecida ou apreciada hoje em dia – especialmente pela galera mais jovem – mas é aí que devemos pensar na questão dos paradigmas, para reconhecermos o devido valor dessa obra-prima. Podem estar ultrapassadas a estética, temática ou mensagem de um filme qualquer; mas, se o diretor conseguiu atingir satisfatoriamente os princípios estéticos buscados, o filme há de merecer grande crédito e – quiçá – ser colocado dentre os “mais-mais” de todos os tempos.
O problema é que parte bastante considerável dos paradigmas cinematográficos de hoje em dia não recua para além além dos anos 60 ou 70 (o cinema-desconstrução, o cinema-político, o exploitation). Posso soar velho, mas juro que não sou. Na verdade, esta vida é um processo de incríveis e maravilhosas descobertas – para quem tem mente e coração abertos para tanto. Aos 17 anos, eu baseava meus critérios de apreciação cinematográfica essencialmente em Seven – Os Sete Crimes Capitais (1994, dir.: David Fincher). Mas, a gente cresce e amadurece. Por isso, eu recomendo Trágico Amanhecer especialmente àqueles que estão na maravilhosa fase de descoberta do potencial estético do cinema. Quem fica maravilhado com coisas como Sangue Negro (2007, dir.: Paul Thomas Anderson), saiba que o buraco é muito mais embaixo e que existem filmes – alguns bem antigos – que levaram o cinema muito mais longe na trilha das grandes e belas artes.
Isso não desmerece, de modo algum, a obra de jovens cineastas ou de qualquer corrente estética posterior. Mas o fato é que um filme como o de Carné sobreviveu às areias do tempo (perdoem a breguice da expressão). A proposta é: vamos esperar uns 50 anos e saberemos se Anderson ou Fincher merecerão o mesmo entusiasmo que dedicamos a Marcel Carné e Jacques Prèvert (o poeta que roteirizou muitos de seus filmes, incluindo o da nossa pauta aqui). É perfeitamente savido que, na história das artes, muitas obras queridas de um determinado período morrem impiedosamente com ele. Com certeza, havia muitos filmes em 1939 que podiam ser considerados obras-primas (alguns talvez até mais do que Trágico Amanhecer, quem sabe). No entanto, certamente nem todos eles continuam sendo exibidos, assistidos, lançados em DVD, etc.
Enfim, “Le Jour se Lève” narra a história do proletário François (interpretado pelo igualmente clássico Jean Gabin), que acaba de assassinar um homem em seu apartamento, permanecendo entocado lá por toda a madrugada, enquanto a polícia e toda a população dos arredores tentam fazê-lo descer – por bem ou por mal. Em flashbacks que vão se conectando a momentos dramáticos do cerco a François, este vai se lembrando de como tudo começou; e as revelações, incluindo a identidade do seu inimigo e por que ele acabou sendo morto, são feitas ao espectador numa narrativa sincopada e de teor dramático gradativo dos mais envolventes. A última imagem do filme é um dos momentos singulares mais poéticos – cruel, irônica e simbolicamente poéticos – que a arte do cinema já soube produzir: o relógio despertando, de manhã, para um homem morto.
O enquadramento, o movimento de câmera e o assunto dessa cena são de uma força sem par em toda a história do filme. Vale por um curso completo de cinema, principalmente por sua simplicidade evocativa. Trágico Amanhecer é uma das grandes realizações do “realismo poético” francês, escola importante dos anos 30, da qual o nome de Jean Renoir é geralmente o mais lembrado. São filmes que ofereceram objetos e inspirações para que André Bazin, mais tarde, desenvolvesse sua teoria e crítica (vejam o que ele tem a dizer, por exemplo, sobre o uso extensivo e consciente da profundidade de campo pelo autor de A Regra do Jogo – também de 1939). O realismo poético também faz parte da árvore genealógica da nouvelle vague – e, por extensão, de todo o cinema moderno (anos 60 em diante).
O fato é: trata-se de um cinema virtuoso, indiscutivelmente; contudo, a serviço de um projeto estético que valoriza acima de tudo o despojamento dos meios. É poético, mas é rigorosamente realista (daí a preferência, por Bazin, na defesa da sua ontologia da imagem, em oposição ao cinema-discurso da montagem soviética ou do expressionismo alemão). Naturalmente, essa humildade – podemos dizer assim – não pressupõe que se joguem fora todos e quaisquer elementos da linguagem cinematográfica; mas é neste ponto que reside a virtuose de Renoir ou Carné: seus filmes não aparentam ser, de modo algum, ambiciosos. Sutileza acima de tudo. Bem que alguns cineastas de hoje poderiam aprender com eles. Alarguemos nossos paradigmas.
André, outra coisa que eu percebi nesse pequeno grande filme é que o Carné e o Prèvert pareciam já aqui estar gestando sua obra máxima, O Boulevard do Crime, que seria lançada seis anso depois, em plena França ocupada. Veja se o personagem do treinador de cachorros não remete ao rufião Lacennaire de "O Boulevard..." E mesmo a personagem da Arletty lembra a "Garance" que ela desempenharia no filme de 1945. A maneira como a própria rua é, ela mesma, uma espécie de personagem, viva, pulsante, tb está presente no Boulevard do Crime.
ResponderExcluirNossa! Grandes considerações! Faz muito tempo já que não vejo "O Boulevard..." Mas vou correr atrás e verificar, já estava querendo mesmo rever esse filme...
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