A gente nunca cansa de se surpreender com a maneira como o cinema parece espelhar a vida real; e esta, por sua vez, devolve-lhe a mesma imagem – como se tudo não passasse de ficção. Muito já se comentou desse jogo de reflexos a respeito das imagens dos ataques no 11 de setembro de 2001, transmitidas ao vivo pelas TVs. De fato, para mim mesmo foi uma experiência curiosa acordar naquela manhã, ligar o aparelho e ver cenas que pareciam saídas de um filme-catástrofe. Para quem se interessa em reviver o fato (ou vivê-lo pela primeira vez), recomendo fortemente o documentário 102 Minutos Que Mudaram A América (“102 Minutes That Changed America”), dirigido por Nicole Rittenmeyer e Seth Skundrick, produzido em 2008 para o canal de TV paga “History Channel”. Em tempo real, o filme acompanha os acontecimentos que ocorreram entre o choque do primeiro avião e o desabamento da segunda torre, tomando como material – exclusivamente – gravações de câmeras caseiras e de equipes de TV, sem qualquer narração, comentário, etc. Lembra muito a ficção Cloverfield (2008, Matt Reeves).
Enfim, agora estamos testemunhando – mesmo participando – de circunstâncias bastante parecidas, como se fôssemos cinéfilos da própria realidade. Primeiro parêntese: o voyeurismo dos “reality shows”, de telejornais sensacionalistas e de uma infinidade de vídeos amadores que pipocam todos os dias na Internet atesta esse fato para além de quaisquer discussões ético-morais, as quais, no entanto, não deixam de ser – e precisar ser – colocadas. Segundo parêntese: interessante é pensar o que o Dziga Vertov de O Homem Com A Câmera (1929) e o neorrealista Cesare Zavattini, que idealizava um filme de 90 minutos que acompanhasse a vida de um homem na qual nada de substancial acontecesse, achariam da civilização das imagens em movimento no século XXI – principalmente após a revolução dos gadgets que fazem com que todos e qualquer um seja o “homem (ou mulher) com a câmera”, e a rede mundial de computadores, com seus “youtubes” e redes sociais.
Voltando, mais uma vez. Nestes últimos dias vimos acompanhando os assombrosos terremotos e tsunamis que assolaram o Japão. Para além de notícias, análises, comentários, reportagens, etc, qualquer pesquisa rápida pela Internet encontrará uma efusão de vídeos amadores de testemunhas e (ou) vítimas da catástrofe, sem qualquer edição, sem qualquer narração, sem qualquer comentário que não sejam as reações e interjeições que expressam e transportam até nós a essência mais pura da experiência humana no momento em ela toma de assalto nossas vidas, nosso ser. E principalmente: sem quaisquer efeitos especiais. São imagens estonteantes, imagens épicas que atiçam perigosamente nossa volúpia, nosso fetiche pelo Sublime (no sentido kantiano do termo): sensação parecida que temos ao nos colocar à beira de um penhasco. Algumas dessas imagens despertam também nosso sentido estético: a fotografia de uma vaca (viva) que foi parar no alto de uma árvore não deixa de nos fazer lembrar uma pintura surrealista ou instalação de arte contemporânea.
De toda essa plástica, o que mais impressiona é ver o volume de aparência infinita das águas do oceano crescer irreprimivelmente e invadir cidades, apagando ruas e arrastando carros, levando casas inteiras para o meio do mar e embarcações (grandes até) para o meio da terra. Sentimos nessas imagens não apenas a força das águas, mas quase a fúria dos deuses – pagãos ou não: Netuno obcecado por destruir a frota de Ulisses; Javé mandando o dilúvio do qual se salvará tão somente a Arca de Noé. Tais imagens – pouco importa se fictícias ou “reais” – ativam arquétipos muito enterrados dentro de nós e suas formas míticas. Nossa civilização da ciência pouco dará voz a essas sugestões; infelizmente, não nascerão lendas e poemas que contribuam até mesmo para processarmos o grande efeito que tais tragédias provocam em nosso íntimo. Tanto porque sabemos – ou achamos que sabemos – as causas “materiais” e “científicas” dessas revoltas do planeta, sejam estas contra a nossa presença ou não. O desencanto reina.
Enfim, não existem mais homeros ou antigos testamentos. Mas há o cinema. Eis a sétima arte, descendente anônima (e escravizada) de uma antiquíssima mas esquecida linhagem de reis e rainhas. Os filmes, em nosso tempo, mal ocupam o lugar e a função das narrativas fundadoras, dos mitos exemplares – e mal se pode exigir que o façam pura e simplesmente. No entanto, ainda resta algo. “De tudo fica um pouco”, já dizia o poeta Drummond. Ao assistir ontem a um vídeo caseiro na Internet, que mostrava o momento exato em que o mar invadia e destruía uma cidade na costa do Japão, não pude deixar de me lembrar – involuntariamente – da sequência de abertura do filme mais recente de Clint Eastwood: Além da Vida (“Hereafter”, 2010). São imagens muito, muito parecidas. E qual foi a minha surpresa (no fundo, nenhuma) ao ler num portal de notícias, poucos minutos depois, que o governo japonês havia retirado de cartaz o mesmo filme? O pensamento “civilizado” dirá: mas é lógico! Não obstante, a parcela “selvagem” em todos nós reconfortar-se-á com tais sincronicidades e buscará processar os seus significados mais profundos. Talvez numa forma artística.
Enfim, agora estamos testemunhando – mesmo participando – de circunstâncias bastante parecidas, como se fôssemos cinéfilos da própria realidade. Primeiro parêntese: o voyeurismo dos “reality shows”, de telejornais sensacionalistas e de uma infinidade de vídeos amadores que pipocam todos os dias na Internet atesta esse fato para além de quaisquer discussões ético-morais, as quais, no entanto, não deixam de ser – e precisar ser – colocadas. Segundo parêntese: interessante é pensar o que o Dziga Vertov de O Homem Com A Câmera (1929) e o neorrealista Cesare Zavattini, que idealizava um filme de 90 minutos que acompanhasse a vida de um homem na qual nada de substancial acontecesse, achariam da civilização das imagens em movimento no século XXI – principalmente após a revolução dos gadgets que fazem com que todos e qualquer um seja o “homem (ou mulher) com a câmera”, e a rede mundial de computadores, com seus “youtubes” e redes sociais.
Voltando, mais uma vez. Nestes últimos dias vimos acompanhando os assombrosos terremotos e tsunamis que assolaram o Japão. Para além de notícias, análises, comentários, reportagens, etc, qualquer pesquisa rápida pela Internet encontrará uma efusão de vídeos amadores de testemunhas e (ou) vítimas da catástrofe, sem qualquer edição, sem qualquer narração, sem qualquer comentário que não sejam as reações e interjeições que expressam e transportam até nós a essência mais pura da experiência humana no momento em ela toma de assalto nossas vidas, nosso ser. E principalmente: sem quaisquer efeitos especiais. São imagens estonteantes, imagens épicas que atiçam perigosamente nossa volúpia, nosso fetiche pelo Sublime (no sentido kantiano do termo): sensação parecida que temos ao nos colocar à beira de um penhasco. Algumas dessas imagens despertam também nosso sentido estético: a fotografia de uma vaca (viva) que foi parar no alto de uma árvore não deixa de nos fazer lembrar uma pintura surrealista ou instalação de arte contemporânea.
De toda essa plástica, o que mais impressiona é ver o volume de aparência infinita das águas do oceano crescer irreprimivelmente e invadir cidades, apagando ruas e arrastando carros, levando casas inteiras para o meio do mar e embarcações (grandes até) para o meio da terra. Sentimos nessas imagens não apenas a força das águas, mas quase a fúria dos deuses – pagãos ou não: Netuno obcecado por destruir a frota de Ulisses; Javé mandando o dilúvio do qual se salvará tão somente a Arca de Noé. Tais imagens – pouco importa se fictícias ou “reais” – ativam arquétipos muito enterrados dentro de nós e suas formas míticas. Nossa civilização da ciência pouco dará voz a essas sugestões; infelizmente, não nascerão lendas e poemas que contribuam até mesmo para processarmos o grande efeito que tais tragédias provocam em nosso íntimo. Tanto porque sabemos – ou achamos que sabemos – as causas “materiais” e “científicas” dessas revoltas do planeta, sejam estas contra a nossa presença ou não. O desencanto reina.
Enfim, não existem mais homeros ou antigos testamentos. Mas há o cinema. Eis a sétima arte, descendente anônima (e escravizada) de uma antiquíssima mas esquecida linhagem de reis e rainhas. Os filmes, em nosso tempo, mal ocupam o lugar e a função das narrativas fundadoras, dos mitos exemplares – e mal se pode exigir que o façam pura e simplesmente. No entanto, ainda resta algo. “De tudo fica um pouco”, já dizia o poeta Drummond. Ao assistir ontem a um vídeo caseiro na Internet, que mostrava o momento exato em que o mar invadia e destruía uma cidade na costa do Japão, não pude deixar de me lembrar – involuntariamente – da sequência de abertura do filme mais recente de Clint Eastwood: Além da Vida (“Hereafter”, 2010). São imagens muito, muito parecidas. E qual foi a minha surpresa (no fundo, nenhuma) ao ler num portal de notícias, poucos minutos depois, que o governo japonês havia retirado de cartaz o mesmo filme? O pensamento “civilizado” dirá: mas é lógico! Não obstante, a parcela “selvagem” em todos nós reconfortar-se-á com tais sincronicidades e buscará processar os seus significados mais profundos. Talvez numa forma artística.
André, mestre, preciso de um e-mail teu para contato.
ResponderExcluirAbraço!
Aí vai, Pedro:
ResponderExcluirtheahasverus@hotmail.com
Valeu!