“Foi no ano de 1913 que decidi tentar o passo decisivo – no dia 12 de dezembro. Sentado em meu escritório, considerei mais uma vez os temores que sentia, depois me abandonei à queda. O solo pareceu ceder a meus pés e fui como que precipitado numa profundidade obscura. Não pude evitar um sentimento de pânico. Mas, de repente, sem que ainda tivesse atingido uma grande profundidade, encontrei-me – com grande alívio – de pé, numa massa mole e viscosa. A escuridão era quase total; pouco a pouco meus olhos se habituaram a ela, que parecia um crepúsculo sombrio. Diante de mim estava a entrada de uma caverna obscura; um anão ali permanecia de pé. Parecia feito de couro, como se estivesse mumificado. Tive que me esgueirar, quase roçando nele, a fim de entrar pela passagem estreita e fui patinando, a água gelada alcançando-me os joelhos, até o outro lado da caverna. Percebi então que numa saliência da rocha cintilava um cristal vermelho. Ergui a pedra e embaixo havia um espaço vazio. A princípio nada distingui nele; depois percebi, no fundo, um curso d’água. Passou um cadáver flutuando na corrente: era um adolescente de cabelos louros, ferido na cabeça. Seguiu-o um enorme escaravelho negro e então surgiu, do fundo das águas, um rubro sol nascente. Ofuscado pela luz, tentei repor a pedra no orifício, mas nesse momento um líquido fez pressão e escoou através da brecha. Era sangue! Um jato espesso jorrou e senti náusea. Tive impressão de que isto se prolongou intolerantemente. Afinal o jato de sangue estancou, terminando a visão.” (JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p.214-215)
O trecho acima reproduzido é um devaneio (daydream) do Dr. Jung, criador das teorias dos arquétipos e do inconsciente coletivo, que emolduram a psicologia analítica. Mostra o que o sujeito pode descobrir quando mergulha livre dentro de si mesmo; e livre principalmente de todas as amarras racionais / conscientes. O cinema de Terry Gilliam parece animado e bem disposto à prática constante desse mesmo “esporte”. O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus (“The Imaginarium of Dr. Parnassus”, Reino Unido / Canadá / França, 2009) é mais um exemplo, inserido dentro de uma linha de trabalho na qual assomam Brasil – O Filme (“Brazil”, 1985), As Aventuras do Barão de Munchausen (“The Adventures of Baron Munchausen”, 1988) e Contraponto (“Tideland”, 2005).
Todos esses filmes estruturam suas narrativas em torno da configuração visual das fantasias mais íntimas dos seus personagens. E todos eles se debatem nos limites entre a sanidade e a sua perda total – também podemos citar o caso de Medo e Delírio em Las Vegas (“Fear and Loathing in Las Vegas”, 1998), apesar de a “loucura” aqui estar mais associada à influência de drogas alucinógenas. A mise-en-scène, por sua vez, procura dar uma expressão verdadeiramente suntuosa ao incoerente universo interior desses loucos / iluminados – a direção de arte nos filmes de Gilliam é toda de um exuberante barroco, e o que vemos em Dr. Parnassus não é diferente.
Os cenários que concretizam o abstrato das almas: neste ponto, poderíamos conectar Gilliam à tradição expressionista – especialmente se pensarmos em O Gabinete do Dr. Caligari (1919, dir.: Robert Wiene) –, não fosse o fato de que as distorções e desproporções num filme como o que estamos discutindo não se estilizam segundo as convenções da estética em questão. A arquitetura e a decoração nos filmes do diretor são de um aspecto único, numa espécie de colagem nonsense que ainda hoje lembra as peculiares aberturas da série Monty Phyton Flying Circus (1969-1974), assinadas por ele (Gilliam também atuou no famoso grupo).
Algumas das paisagens da alma que vemos em Dr. Parnassus lembram os relevos surrealistas de um Dali ou de um Magritte – em relação a este último, destacam-se o paradoxal, o ilógico, o – mais uma vez – “nonsense” desses espaços. Neste ponto, o mais interessante do surrealismo de Gilliam é que este se (su)rrealiza atingindo os seus melhores efeitos quando não são usados efeitos especiais, quando a construção da imagem se faz exclusivamente com os cenários materiais e a câmera (olho) que capta a própria realidade intrigante deles. Nisto, o surreal é mais sugerido do que representado, ainda mais levando-se em conta a atmosfera geral da cena – ou do filme inteiro.
E tal forma de surreal deixa as suas marcas não apenas nas imagens que retratam o espaço subjetivo do personagem, mas no espaço propriamente exterior, no espaço físico do mundo que o rodeia, espaço este que se torna, assim, (quase) tão intrigante quanto o outro. Tomemos como ilustração os planos, logo no começo do filme, que mostram a curiosa carruagem-casa da trupe do Dr. Parnassus abrindo espaço por entre edifícios e automóveis de uma Londres pós-moderna até estacionar em frente à saída de uma casa noturna, onde se encenará mais um espetáculo fantástico do imaginarium. É a aproximação de elementos díspares – todos, em princípio, inquestionavelmente reais – que garante a força e o surreal dessa cena.
Encontramos esse procedimento em praticamente todos os filmes de Gilliam: basta lembrar as luzes, cartazes e decorações de ambientes na Las Vegas de Medo e Delírio, que já constituem por si sós fortes estímulos psicodélicos; ou os pantagruélicos e inexplicáveis encanamentos e tubulações que “ornam” o salão de um restaurante fino em Brazil; ou ainda a não menos pantagruélica e exuberante cabeça caída de um cavalo-estátua debaixo da qual se abriga uma família da cidade sitiada nas Aventuras do Barão... Há algo de cômico em todas essas imagens (a irreverência típica dos surrealistas filtrada pelo Monty Phyton?), para o qual também contribui a lente grande-angular – marca registrada do discurso fílmico de Gilliam.
De qualquer maneira, tal colagem entre objetos de campos semânticos distantes faz parte dos princípios da própria vanguarda surrealista, como atestam os escritos de André Breton, inspirados pelos do poeta Pierre Reverdy, que citamos em primeiro lugar (ambos os trechos foram retirados de MOURA, Murilo Marcondes de. Murilo Mendes – a poesia como totalidade. São Paulo: Edusp, 1995. p.19-21):
“A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos distantes.
Quanto mais as relações das duas realidades aproximadas forem longínquas e justas, mais a imagem será forte – mais ela terá poder emotivo e realidade poética.” (L’Image, em Plupart du temps, Paris, Flammarion, 1967, pp.409-410)
Para os surrealistas, essa aproximação deveria ser empreendida de modo inconsciente – a livre e arbitrária associação. Diz Breton, o pai do movimento:
“É da aproximação, de alguma maneira fortuita, de dois termos que brota uma luz particular, luz da imagem, à qual nos mostramos infinitamente sensíveis.
O valor da imagem depende da beleza da faísca obtida; ela é, conseqüentemente, função da diferença de potencial entre os dois condutores.” (Manifestes du Surréalisme, Paris, Gallimard, 1981, p.51).
Esta “faísca”, em Gilliam, produz quase explosões nucleares. Esta “faísca” incendeia o real, incendeia nossa percepção cotidiana e automatizada do real. O insólito aqui nos ensina a enxergar as coisas de maneira mais poética, tal como o fazem as crianças e os velhos, os loucos e os mendigos, os artistas mambembes, os vagabundos e os viciados que formam a fauna humana típica em todos os filmes do cineasta e que são justamente a parcela “não-produtiva” da sociedade da razão e do capital. O tema da encenação e do fingimento também perpassam a obra de Terry Gilliam (nisto, o teatral em Dr. Parnassus remete diretamente ao do Barão de Munchausen).
Mas, para o diretor, a encenação não está somente no trabalho dos atores; Gilliam os dirige tanto quanto parece dirigir o próprio cenário. Promovendo a criação de imagens surrealistas nos padrões que discutimos, ele põe os próprios objetos a encenarem seus “papéis”. Sabotando a configuração habitual das coisas e das paisagens (exteriores e interiores), modificando suas relações práticas umas com as outras, o cineasta consegue efeitos que nos lembram (mas um pouco longe) a genial mise-en-scène de Jacques Tati – especialmente as de Meu Tio (“Mon Oncle”, 1958) e Trafic (1971). Além do filme de que estamos tratando, isso acontece também em O Pescador de Ilusões (“The Fischer King”, 1991).
“The Imaginarium of Dr. Parnassus” acompanha as andanças de uma pequena e semi-miserável trupe formada pelo “Dr.” ancião (manifestação do arquétipo junguiano do “velho sábio”?), interpretado por Christopher Plummer, sua filha adolescente e dois atores / escudeiros (um deles é Verne Troyer, o conhecido “mini-me” da série Austin Powers). Na carruagem / palco / trailer do grupo está um espelho que, uma vez atravessado, conduz o (in)feliz aventureiro às sendas mais profundas do inconsciente – extremamente imaginativo – do Dr. e também aos fundos da alma do próprio “viajante”. Mais uma vez, Terry Gilliam parece dialogar com a literatura de Lewis Carroll, no caso a Alice Através do Espelho (a primeira referência ao escritor britânico encontra-se em Tideland, que cita copiosamente a Alice no País das Maravilhas).
O Dr. Parnassus parece querer ajudar quem mergulha “dentro” dele (e de si mesmo) a melhor conduzir o seu processo de individuação (Jung); sendo originariamente um “monge”, o Dr. parece confirmar-se no papel do velho sábio. Mas ele tem um antagonista. Chamado de o próprio “diabo”, trata-se de um cavalheiro meio dandi vivido pelo envolvente Tom Waits. Ambos se enfrentam numa disputa por “almas”, organizada através de sucessivas apostas. Logicamente, o “diabo” não é o mal; a configuração que o personagem ganha no filme faz-nos pensar nele mais como a expressão de um outro arquétipo, também fundamental: a sombra.
A “sombra” é a parcela mais obscura e teriomórfica da psique humana: seja nas formas de um diabo tentador ou de Darth Vader, é o “lado negro da força” que forma um conjunto dialético com o lado “luminoso”. Ambos precisam estar em equilíbrio, sabendo dialogar entre si, para a saúde mental do sujeito. E Dr. Parnassus mostra bem essa relação de quase amizade, de interdependência entre o ancião e seu “oponente”. Terry Gilliam dá uma dimensão cósmica – passando pela social – a esse embate psíquico. É interessante pensar que o “diabo”, que já aparece em seus trajes finos de cavalheiro vitoriano mesmo nos tempos ancestrais em que contata pela primeira vez o Dr. Parnassus, representa o princípio de invenção, de modernização, de mudança: nisto, o qualificativo de Lúcifer é para ele mais do que adequado.
Contudo, sabemos que, num processo por demais apegado a esses instintos “rebeldes”, a memória pode acabar sendo deixada de lado. É aí que entra o Dr., como seu guardião, zelando pelas narrativas que não podem se interromper, pois elas “sustentam” o universo. Desse modo, temos o embate entre o arcaico e o moderno; entre o intuitivo e o racional; entre a conservação e a invenção; entre o encanto e o desencanto; entre o mágico e o material. Já nas Aventuras do Barão de Munchausen, passadas no acadêmico século XVIII, Gilliam se munia de todo o nonsense do Monty Phyton para corroer sarcasticamente os fundamentos – digamos, fetichistas – da cultura da razão Iluminista.
Em Os Irmãos Grimm (2005), teremos mais uma vez a brava resistência do mito e do arquétipo contra a insegura prepotência de uma ciência e uma tecnologia gauches. Assim, o conteúdo moral mais profundo das fábulas de Terry Gilliam desenha alguns laços com aquelas de Guillermo Del Toro: O Labirinto do Fauno (“El Laberinto Del Fauno”, 2006) e os dois Hellboy (2004 e 2008); com as de Peter Jackson: O Senhor dos Anéis (“The Lord of The Rings”, 2001-2003); e mesmo com as de Tim Burton (excetuando-se, infelizmente, o último Alice). E não podemos nos esquecer do já clássico A História Sem Fim (“The NeverEnding Story”, 1984, dir.: Wolfgang Petersen).
É preciso chamar mais uma vez C. G. Jung, num trecho cujo tom de lamento emana da leitura mesmo a mais “científica” – mas que poderia bem ser tomado como manifesto pelos cineastas acima arrolados:
“A iconoclastia da Reforma abriu literalmente uma fenda na muralha protetora das imagens sagradas e desde então elas vêm desmoronando umas após as outras. Tornaram-se precárias por colidirem com a razão desperta. Além do mais, muito antes seu significado já fora esquecido. Terá sido realmente um esquecimento? Ou, no fundo, o homem jamais soube o que significavam, e só recentemente a humanidade protestante percebeu que não temos a menor idéia do que quer dizer o nascimento virginal, a divindade de Cristo, e as complexidades da Trindade? Até parece que essas imagens simplesmente surgiam e eram aceitas sem questionamento, sem reflexão, tal como as pessoas enfeitam as árvores de Natal e escondem ovos de Páscoa, sem saberem o que tais costumes significam. O fato é que as imagens arquetípicas têm um sentido a priori tão profundo que nunca questionamos seu sentido real. Por isso os deuses morrem, porque de repente descobrimos que eles nada significam, que foram feitos pela mão do homem, de madeira ou pedra, puras inutilidades. Na verdade, o homem apenas descobriu que até então jamais havia pensado acerca de suas imagens. E quando começa a pensar sobre elas, recorre ao que se chama “razão”; no fundo, porém, essa razão nada mais é do que seus preconceitos e miopias.” (JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p.24)
Parece que a grande batalha de nossos dias não se reduz apenas àquela entre sistemas político-econômicos. Os princípios opostos que nos dividem e dilaceram organizam-se em zonas mais primevas do ser e são constantemente atualizados, digamos, “historicizados” – mas a oposição fundamental permanece a mesma. No fundo, é a mesma disputa que se tem também no Cinema: de um lado, o cinema discurso, o cinema construção (Eisenstein), o cinema ficção, o cinema magia (Méliès), o cinema opaco; de outro, o cinema ontológico (Bazin e o neorrealismo), o cinema do real (irmãos Lumière), o cinema documentário, o cinema transparente. O cinema-ídolo (a decupagem clássica de Hollywood) e o cinema iconoclasta (Godard).
Mas há ainda um último elemento merecedor de reflexão em Dr. Parnassus, que é a peculiar participação de Heath Ledger. Foram muito felizes as modificações que se fizeram no roteiro e que permitiram que o filme fosse finalizado mesmo com a morte de um dos seus atores principais. Tais modificações garantiram a imprescindível coerência da história e ainda contribuíram para um maior aprofundamento das questões morais / psicológicas / filosóficas do filme. Claro que é complicado simplesmente falar em coerência tendo em vista o surrealismo nonsense de Terry Gilliam; não obstante, trata-se aqui mais de uma coerência interna ao próprio universo diegético, a qual ajuda sobremaneira no maior desenvolvimento da fabulação.
O personagem de Ledger é um playboy sem memória (para o qual, mais uma vez, o Dr. “sacerdote” de Mnemosine exercerá o seu papel de velho sábio) que trará um elemento de desestabilização, mas de necessária reflexão e renovação para o grupo de Parnassus. Mais uma vez (a outra foi como o “Joker” em O Cavaleiro das Trevas – 2008), Ledger desempenha o papel arquetípico do Tricster (o malandro, a força desestabilizadora do instinto, da natureza selvagem e arbitrária). Seus atos e palavras são ambíguos e ambíguos são os efeitos que produz para a trupe: positivos e negativos a um só tempo. A fantasia que usa como personagem na encenação do imaginarium é justamente a do bobo-da-corte, justamente a do “joker”.
Mais do que tudo, ele mente, ele engana, prega peças: neste ponto, dentro da expressão do Tricster, o folclore do “joker” encontra-se com o mito de Loki, o deus mascarado da trapaça (mitologia nórdica). Não é à toa que, durante a representação teatral do Dr. Parnassus, ele usa sempre uma máscara de bufão; já quando atravessa o “espelho”, seu rosto muda – e é precisamente aí que entram Johnny Depp, Jude Law e Colin Farrell para substituir o colega morto, em homenagem comovente que não se procura disfarçar (principalmente na cena de Depp). O remendo de um acontecimento trágico torna o conjunto da obra ainda mais artístico e paradoxalmente mais coerente do que se Ledger tivesse logrado finalizar sua participação. Fantástico.
O trecho acima reproduzido é um devaneio (daydream) do Dr. Jung, criador das teorias dos arquétipos e do inconsciente coletivo, que emolduram a psicologia analítica. Mostra o que o sujeito pode descobrir quando mergulha livre dentro de si mesmo; e livre principalmente de todas as amarras racionais / conscientes. O cinema de Terry Gilliam parece animado e bem disposto à prática constante desse mesmo “esporte”. O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus (“The Imaginarium of Dr. Parnassus”, Reino Unido / Canadá / França, 2009) é mais um exemplo, inserido dentro de uma linha de trabalho na qual assomam Brasil – O Filme (“Brazil”, 1985), As Aventuras do Barão de Munchausen (“The Adventures of Baron Munchausen”, 1988) e Contraponto (“Tideland”, 2005).
Todos esses filmes estruturam suas narrativas em torno da configuração visual das fantasias mais íntimas dos seus personagens. E todos eles se debatem nos limites entre a sanidade e a sua perda total – também podemos citar o caso de Medo e Delírio em Las Vegas (“Fear and Loathing in Las Vegas”, 1998), apesar de a “loucura” aqui estar mais associada à influência de drogas alucinógenas. A mise-en-scène, por sua vez, procura dar uma expressão verdadeiramente suntuosa ao incoerente universo interior desses loucos / iluminados – a direção de arte nos filmes de Gilliam é toda de um exuberante barroco, e o que vemos em Dr. Parnassus não é diferente.
Os cenários que concretizam o abstrato das almas: neste ponto, poderíamos conectar Gilliam à tradição expressionista – especialmente se pensarmos em O Gabinete do Dr. Caligari (1919, dir.: Robert Wiene) –, não fosse o fato de que as distorções e desproporções num filme como o que estamos discutindo não se estilizam segundo as convenções da estética em questão. A arquitetura e a decoração nos filmes do diretor são de um aspecto único, numa espécie de colagem nonsense que ainda hoje lembra as peculiares aberturas da série Monty Phyton Flying Circus (1969-1974), assinadas por ele (Gilliam também atuou no famoso grupo).
Algumas das paisagens da alma que vemos em Dr. Parnassus lembram os relevos surrealistas de um Dali ou de um Magritte – em relação a este último, destacam-se o paradoxal, o ilógico, o – mais uma vez – “nonsense” desses espaços. Neste ponto, o mais interessante do surrealismo de Gilliam é que este se (su)rrealiza atingindo os seus melhores efeitos quando não são usados efeitos especiais, quando a construção da imagem se faz exclusivamente com os cenários materiais e a câmera (olho) que capta a própria realidade intrigante deles. Nisto, o surreal é mais sugerido do que representado, ainda mais levando-se em conta a atmosfera geral da cena – ou do filme inteiro.
E tal forma de surreal deixa as suas marcas não apenas nas imagens que retratam o espaço subjetivo do personagem, mas no espaço propriamente exterior, no espaço físico do mundo que o rodeia, espaço este que se torna, assim, (quase) tão intrigante quanto o outro. Tomemos como ilustração os planos, logo no começo do filme, que mostram a curiosa carruagem-casa da trupe do Dr. Parnassus abrindo espaço por entre edifícios e automóveis de uma Londres pós-moderna até estacionar em frente à saída de uma casa noturna, onde se encenará mais um espetáculo fantástico do imaginarium. É a aproximação de elementos díspares – todos, em princípio, inquestionavelmente reais – que garante a força e o surreal dessa cena.
Encontramos esse procedimento em praticamente todos os filmes de Gilliam: basta lembrar as luzes, cartazes e decorações de ambientes na Las Vegas de Medo e Delírio, que já constituem por si sós fortes estímulos psicodélicos; ou os pantagruélicos e inexplicáveis encanamentos e tubulações que “ornam” o salão de um restaurante fino em Brazil; ou ainda a não menos pantagruélica e exuberante cabeça caída de um cavalo-estátua debaixo da qual se abriga uma família da cidade sitiada nas Aventuras do Barão... Há algo de cômico em todas essas imagens (a irreverência típica dos surrealistas filtrada pelo Monty Phyton?), para o qual também contribui a lente grande-angular – marca registrada do discurso fílmico de Gilliam.
De qualquer maneira, tal colagem entre objetos de campos semânticos distantes faz parte dos princípios da própria vanguarda surrealista, como atestam os escritos de André Breton, inspirados pelos do poeta Pierre Reverdy, que citamos em primeiro lugar (ambos os trechos foram retirados de MOURA, Murilo Marcondes de. Murilo Mendes – a poesia como totalidade. São Paulo: Edusp, 1995. p.19-21):
“A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos distantes.
Quanto mais as relações das duas realidades aproximadas forem longínquas e justas, mais a imagem será forte – mais ela terá poder emotivo e realidade poética.” (L’Image, em Plupart du temps, Paris, Flammarion, 1967, pp.409-410)
Para os surrealistas, essa aproximação deveria ser empreendida de modo inconsciente – a livre e arbitrária associação. Diz Breton, o pai do movimento:
“É da aproximação, de alguma maneira fortuita, de dois termos que brota uma luz particular, luz da imagem, à qual nos mostramos infinitamente sensíveis.
O valor da imagem depende da beleza da faísca obtida; ela é, conseqüentemente, função da diferença de potencial entre os dois condutores.” (Manifestes du Surréalisme, Paris, Gallimard, 1981, p.51).
Esta “faísca”, em Gilliam, produz quase explosões nucleares. Esta “faísca” incendeia o real, incendeia nossa percepção cotidiana e automatizada do real. O insólito aqui nos ensina a enxergar as coisas de maneira mais poética, tal como o fazem as crianças e os velhos, os loucos e os mendigos, os artistas mambembes, os vagabundos e os viciados que formam a fauna humana típica em todos os filmes do cineasta e que são justamente a parcela “não-produtiva” da sociedade da razão e do capital. O tema da encenação e do fingimento também perpassam a obra de Terry Gilliam (nisto, o teatral em Dr. Parnassus remete diretamente ao do Barão de Munchausen).
Mas, para o diretor, a encenação não está somente no trabalho dos atores; Gilliam os dirige tanto quanto parece dirigir o próprio cenário. Promovendo a criação de imagens surrealistas nos padrões que discutimos, ele põe os próprios objetos a encenarem seus “papéis”. Sabotando a configuração habitual das coisas e das paisagens (exteriores e interiores), modificando suas relações práticas umas com as outras, o cineasta consegue efeitos que nos lembram (mas um pouco longe) a genial mise-en-scène de Jacques Tati – especialmente as de Meu Tio (“Mon Oncle”, 1958) e Trafic (1971). Além do filme de que estamos tratando, isso acontece também em O Pescador de Ilusões (“The Fischer King”, 1991).
“The Imaginarium of Dr. Parnassus” acompanha as andanças de uma pequena e semi-miserável trupe formada pelo “Dr.” ancião (manifestação do arquétipo junguiano do “velho sábio”?), interpretado por Christopher Plummer, sua filha adolescente e dois atores / escudeiros (um deles é Verne Troyer, o conhecido “mini-me” da série Austin Powers). Na carruagem / palco / trailer do grupo está um espelho que, uma vez atravessado, conduz o (in)feliz aventureiro às sendas mais profundas do inconsciente – extremamente imaginativo – do Dr. e também aos fundos da alma do próprio “viajante”. Mais uma vez, Terry Gilliam parece dialogar com a literatura de Lewis Carroll, no caso a Alice Através do Espelho (a primeira referência ao escritor britânico encontra-se em Tideland, que cita copiosamente a Alice no País das Maravilhas).
O Dr. Parnassus parece querer ajudar quem mergulha “dentro” dele (e de si mesmo) a melhor conduzir o seu processo de individuação (Jung); sendo originariamente um “monge”, o Dr. parece confirmar-se no papel do velho sábio. Mas ele tem um antagonista. Chamado de o próprio “diabo”, trata-se de um cavalheiro meio dandi vivido pelo envolvente Tom Waits. Ambos se enfrentam numa disputa por “almas”, organizada através de sucessivas apostas. Logicamente, o “diabo” não é o mal; a configuração que o personagem ganha no filme faz-nos pensar nele mais como a expressão de um outro arquétipo, também fundamental: a sombra.
A “sombra” é a parcela mais obscura e teriomórfica da psique humana: seja nas formas de um diabo tentador ou de Darth Vader, é o “lado negro da força” que forma um conjunto dialético com o lado “luminoso”. Ambos precisam estar em equilíbrio, sabendo dialogar entre si, para a saúde mental do sujeito. E Dr. Parnassus mostra bem essa relação de quase amizade, de interdependência entre o ancião e seu “oponente”. Terry Gilliam dá uma dimensão cósmica – passando pela social – a esse embate psíquico. É interessante pensar que o “diabo”, que já aparece em seus trajes finos de cavalheiro vitoriano mesmo nos tempos ancestrais em que contata pela primeira vez o Dr. Parnassus, representa o princípio de invenção, de modernização, de mudança: nisto, o qualificativo de Lúcifer é para ele mais do que adequado.
Contudo, sabemos que, num processo por demais apegado a esses instintos “rebeldes”, a memória pode acabar sendo deixada de lado. É aí que entra o Dr., como seu guardião, zelando pelas narrativas que não podem se interromper, pois elas “sustentam” o universo. Desse modo, temos o embate entre o arcaico e o moderno; entre o intuitivo e o racional; entre a conservação e a invenção; entre o encanto e o desencanto; entre o mágico e o material. Já nas Aventuras do Barão de Munchausen, passadas no acadêmico século XVIII, Gilliam se munia de todo o nonsense do Monty Phyton para corroer sarcasticamente os fundamentos – digamos, fetichistas – da cultura da razão Iluminista.
Em Os Irmãos Grimm (2005), teremos mais uma vez a brava resistência do mito e do arquétipo contra a insegura prepotência de uma ciência e uma tecnologia gauches. Assim, o conteúdo moral mais profundo das fábulas de Terry Gilliam desenha alguns laços com aquelas de Guillermo Del Toro: O Labirinto do Fauno (“El Laberinto Del Fauno”, 2006) e os dois Hellboy (2004 e 2008); com as de Peter Jackson: O Senhor dos Anéis (“The Lord of The Rings”, 2001-2003); e mesmo com as de Tim Burton (excetuando-se, infelizmente, o último Alice). E não podemos nos esquecer do já clássico A História Sem Fim (“The NeverEnding Story”, 1984, dir.: Wolfgang Petersen).
É preciso chamar mais uma vez C. G. Jung, num trecho cujo tom de lamento emana da leitura mesmo a mais “científica” – mas que poderia bem ser tomado como manifesto pelos cineastas acima arrolados:
“A iconoclastia da Reforma abriu literalmente uma fenda na muralha protetora das imagens sagradas e desde então elas vêm desmoronando umas após as outras. Tornaram-se precárias por colidirem com a razão desperta. Além do mais, muito antes seu significado já fora esquecido. Terá sido realmente um esquecimento? Ou, no fundo, o homem jamais soube o que significavam, e só recentemente a humanidade protestante percebeu que não temos a menor idéia do que quer dizer o nascimento virginal, a divindade de Cristo, e as complexidades da Trindade? Até parece que essas imagens simplesmente surgiam e eram aceitas sem questionamento, sem reflexão, tal como as pessoas enfeitam as árvores de Natal e escondem ovos de Páscoa, sem saberem o que tais costumes significam. O fato é que as imagens arquetípicas têm um sentido a priori tão profundo que nunca questionamos seu sentido real. Por isso os deuses morrem, porque de repente descobrimos que eles nada significam, que foram feitos pela mão do homem, de madeira ou pedra, puras inutilidades. Na verdade, o homem apenas descobriu que até então jamais havia pensado acerca de suas imagens. E quando começa a pensar sobre elas, recorre ao que se chama “razão”; no fundo, porém, essa razão nada mais é do que seus preconceitos e miopias.” (JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p.24)
Parece que a grande batalha de nossos dias não se reduz apenas àquela entre sistemas político-econômicos. Os princípios opostos que nos dividem e dilaceram organizam-se em zonas mais primevas do ser e são constantemente atualizados, digamos, “historicizados” – mas a oposição fundamental permanece a mesma. No fundo, é a mesma disputa que se tem também no Cinema: de um lado, o cinema discurso, o cinema construção (Eisenstein), o cinema ficção, o cinema magia (Méliès), o cinema opaco; de outro, o cinema ontológico (Bazin e o neorrealismo), o cinema do real (irmãos Lumière), o cinema documentário, o cinema transparente. O cinema-ídolo (a decupagem clássica de Hollywood) e o cinema iconoclasta (Godard).
Mas há ainda um último elemento merecedor de reflexão em Dr. Parnassus, que é a peculiar participação de Heath Ledger. Foram muito felizes as modificações que se fizeram no roteiro e que permitiram que o filme fosse finalizado mesmo com a morte de um dos seus atores principais. Tais modificações garantiram a imprescindível coerência da história e ainda contribuíram para um maior aprofundamento das questões morais / psicológicas / filosóficas do filme. Claro que é complicado simplesmente falar em coerência tendo em vista o surrealismo nonsense de Terry Gilliam; não obstante, trata-se aqui mais de uma coerência interna ao próprio universo diegético, a qual ajuda sobremaneira no maior desenvolvimento da fabulação.
O personagem de Ledger é um playboy sem memória (para o qual, mais uma vez, o Dr. “sacerdote” de Mnemosine exercerá o seu papel de velho sábio) que trará um elemento de desestabilização, mas de necessária reflexão e renovação para o grupo de Parnassus. Mais uma vez (a outra foi como o “Joker” em O Cavaleiro das Trevas – 2008), Ledger desempenha o papel arquetípico do Tricster (o malandro, a força desestabilizadora do instinto, da natureza selvagem e arbitrária). Seus atos e palavras são ambíguos e ambíguos são os efeitos que produz para a trupe: positivos e negativos a um só tempo. A fantasia que usa como personagem na encenação do imaginarium é justamente a do bobo-da-corte, justamente a do “joker”.
Mais do que tudo, ele mente, ele engana, prega peças: neste ponto, dentro da expressão do Tricster, o folclore do “joker” encontra-se com o mito de Loki, o deus mascarado da trapaça (mitologia nórdica). Não é à toa que, durante a representação teatral do Dr. Parnassus, ele usa sempre uma máscara de bufão; já quando atravessa o “espelho”, seu rosto muda – e é precisamente aí que entram Johnny Depp, Jude Law e Colin Farrell para substituir o colega morto, em homenagem comovente que não se procura disfarçar (principalmente na cena de Depp). O remendo de um acontecimento trágico torna o conjunto da obra ainda mais artístico e paradoxalmente mais coerente do que se Ledger tivesse logrado finalizar sua participação. Fantástico.
Vi este filme a meses e tenho que rever para aproveitar melhor seu texto, fantàstico como sempre. Mas me lembro o suficiente dele para saber como repercutiu sobre mim. Ele não me levou, mas me fez lembrar as minhas primeiras sensações com o cinema, na infância, quando ver um filme era como magia. Nunca mais sentirei isto de novo, simplesmente porque sou adulta. A "culpa" não é so dos filmes. Acho que a minha cinefilia (se é que posso chamar assim) é so uma busca dia apos dia por isto. A cada filme, por mais tacanho, a tentativa (màgica) de ser outra pessoa em outro lugar e em outro tempo, temporalidade. Gostei muito da lembrança ao Magritte em seu texto, tive a mesma impressão.
ResponderExcluirMudando de assunto, eu não acho, mesmo, que o veiculo blog seja menos nobre ou menos qualquer coisa do que um livro. Mas eu não consigo não imaginar seus textos organizados e reunidos em um livro. Não pela nobreza ou pela legitimidade deste sobre aquele, como eu disse, mas adoraria ler tudo de uma vez, de modo mais confortàvel e bonito do que em uma tela. Você jà pensou nesta possibilidade?
abraços
Confesso que eu havia me desanimado, mas seu maravilhoso texto me fez ficar curioso novamente pelo filme. Esse surrealismo a que tanto menciona parece ser um primor.
ResponderExcluirEssa magia, Karina, é o mais importante de tudo no cinema. Eu também vivo esse processo de reencontrar a cada filme aquilo que me fez encantar pelo primeiro filme que vi na vida...
ResponderExcluirQuanto ao outro assunto, eu gosto do veículo específico que o blog proporciona. Quanto a formas mais impressas, vai ser uma questão de maior amadurecimento, trabalho e oportunidades...
Wally, o surrealismo de Gilliam é muito bem pensado mesmo! Vale a pena!
Gratidão !
ResponderExcluirAndré, fiz menção ao seu texto na minha crítica ao Dr. Parnassus (com link). Espero que vc não se importe. ;)
ResponderExcluirTranquilo, Malva!
ResponderExcluirUse à vontade...
:)