Em novembro de 1989, meus pais me levaram para assistir a Batman (o do Tim Burton) no velho cine Marabá, na avenida Ipiranga, em São Paulo. Lembro que havia uma fila imensa – que chegava a dobrar esquina – para entrar naquela que era uma das maiores (se não a maior) sala de cinema da cidade, com uma tela gigantesca (ainda mais para a perspectiva de uma criança). Já não era, nem de longe, a primeira vez que eu ia ao cinema, mesmo o Marabá. Mas assistir ao épico gótico do homem-morcego ali era uma experiência cujo assombro ninguém explica – mas a criança o compreende, apenas. Naquela época, os maiores, mais bem equipados, mais confortáveis e mais baratos cinemas de São Paulo ficavam no centro: além do já citado, despertam saudades o cine Metro, o Comodoro, o Ipiranga, o Ritz, o Marrocos...
As salas de shoppings eram poucas, caras, pequenas e de qualidade muito, muito inferior às clássicas salas de rua. Hoje, como todos sabem, a situação se encontra invertida. O charme de sair de um filme e cair diretamente na rua, ainda mais à noite, perdeu-se em grande parte. Não era apenas um charme; ocorria alguma espécie de transfiguração “fenomenológico-estética” do nosso olhar ao contemplar os carros, as luzes noturnas, o pavimento, as pessoas andando para lá e para cá; era como se ainda estivéssemos dentro do filme. Ainda me lembro que, ao sair do Marabá com o meu pai e minha mãe, após a exibição do primeiro Batman, tendo o céu já escurecido, tive um medo terrível de que fôssemos cercados por assaltantes em algum beco escuro do centro de SP, assim como acontecera ao jovem Bruce Wayne.
E o que é que tudo isso tem a ver com a exibição de Batman – O Cavaleiro das Trevas na sala I-MAX do Shopping Bourbon Pompéia? Ora, é simplesmente deprimente sair dessa imersão quase literal no Cinema para um ambiente tão claustrofóbico, anti-séptico, excessivamente iluminado e artificial em todos os sentidos de um “shopping center”. Até descer todas as escadas, dar as várias voltas procurando a saída daquele maldito labirinto e chegar à rua e ao mundo real, o efeito lisérgico provocado pelas “sombras elétricas” (conforme os chineses denominavam a invenção de Lumière nos primeiros tempos) na sala escura já terá passado... De qualquer maneira, ver esse filme, nessa sala, trouxe-me algumas das sensações de quase vinte anos atrás, no antigo Marabá. Sensações que eu já reputava bem adormecidas, mas que despertam ao menor estímulo apropriado.
A experiência audiovisual (sim, o som também nos transporta, e muito) do I-MAX em 2D é algo simplesmente assustador. Já fazia muito tempo que eu não sofria esse efeito de realidade hiperbolizada que é o grande fator em jogo de se ir até o cinema. Imersão, eis a palavra-chave. Mas não uma imersão na realidade que tanto conhecemos (caso do 3D), mas numa espécie de universo de gigantes, onde as imagens desproporcionais dilatam nossas pupilas até o limite; e o som, cuja materialidade sentimos com a força de golpes constantes em nosso peito, dilata os tímpanos às raias do incômodo. O I-MAX em 3D não produz esses mesmos resultados. Com os óculos especiais no rosto, perdemos a noção assombrosa da dimensão da tela no espaço restrito da sala (sim, a sala do I-MAX é bem menor do que se pode pressupor).
Assim, o que vemos encontra-se como que inserido no espaço diminuto das duas lentes coladas à nossa face. A graça do 3D é, naturalmente, o efeito único da perspectiva, a terceira dimensão, o fato de sentirmos o impulso de tocar e provar a textura de algum objeto pequeno – um peixe, uma moeda – colocado à frende de nossos olhos. A maravilha do I-MAX em 2D é bem outra. É indescritível a fenomenologia de você, em alguns momentos do filme, olhar para os lados e para trás, tentando abarcar e relacionar a visão da tela pantagruélica com a visão das pessoas totalmente hipnotizadas por aquele moderníssimo totem, numa novíssima e escuríssima caverna de Platão. Inebriante. No entanto, a experiência sensorial anda de mãos dadas com a experiência estética. Desse modo, vejamos o como a arte específica do cinema pode aproveitar a promessa do I-MAX.
O novo modo de filmagem e exibição em I-MAX traz de volta boa parte das reflexões que se faziam na época do advento do Cinemascope e do Cinerama (anos 50). O I-MAX não se trata de uma mudança de paradigmas, caso potencial do 3D, mas apresenta-se como um novo grau de uma escala que começou lá atrás: a da melhor imersão possível do espectador no universo hiperbólico de um filme bidimensional. Assim, no espírito das velhas discussões e considerando a contribuição de Batman – O Cavaleiro das Trevas como uma experiência-teste, quero propor o seguinte. Antes de mais nada, devem-se planejar e realizar filmes que sejam voltados para o I-MAX em sua totalidade; a fita de Christopher Nolan apresenta apenas algumas cenas que ocupam toda a tela da nova tecnologia. Mesmo assim, todos os outros momentos do filme ganham uma proporção inédita.
Entretanto, o problema de se pensar, rodar e vender um filme que aproveite todo o potencial do I-MAX é o que está implícito aí mesmo: tal filme só poderá ser 100% vivenciado sensorial e esteticamente numa sala apropriada. É a mesma angústia que temos, hoje, ao assistir na tela da TV a velhas fitas dos anos 50 e 60 pensadas para o Cinemascope (mesmo que os DVD’s e as TV’s sejam “widescreen”). Sabemos o como a televisão influenciou a linguagem e a estética do cinema e o como os produtores, hoje em dia, procuram a maximização dos lucros nas diversas plataformas (cinemas, DVD, TV a cabo). Assim, acredito eu que seria preciso grande coragem para rodar um filme que “radicalize” a proposta do I-MAX. Não obstante, supondo que apareça um genial e audacioso “Stanley Kubrick” do I-MAX, o que é que ele faria, em termos mais exatos?
Em primeiro lugar, esse cineasta voltaria a rezar pelo evangelho de André Bazin: eliminar-se-ia a montagem, diminuir-se-ia ao máximo a sua função narrativa e estética, tudo em função da fotografia, da composição do plano. Isso porque, um filme com cortes rápidos e constantes, um ritmo acelerado, algo à lá Eisenstein no I-MAX não daria certo de modo algum. Pela simples razão de que as pessoas vomitariam, cegariam, tonteariam, desorientar-se-iam sensorialmente por toda a sala de exibição. A montagem no I-MAX – principalmente a de “corte seco” – seria um ato de extrema violência e arbitrariedade com relação ao espectador. É fisicamente difícil acompanhar um filme com muitos cortes na barriga do Pantagruel que é o I-MAX. As cenas de O Cavaleiro das Trevas que melhor funcionam, sensorial e esteticamente, são as cenas fechadas em um único plano, o velho e famoso plano-sequência.
Dessa maneira, a nova estética do I-MAX deve resgatar e potencializar ao máximo o plano-sequência, de preferência com prolíficos movimentos de câmera (“travellings” e panorâmicas). A movimentação da câmera, num filme exibido em I-MAX, é um dos elementos que mais contribuem para o efeito inebriante de “imersão” do espectador dentro da tela. A sequência da aventura aérea de Batman em Hong Kong é um dos momentos mais entusiasmantes deste filme. Assim sendo, uma vez que se componha o filme tendo-se o plano como principal conceito de linguagem e de estética, dever-se-á – logicamente – aproveitar o plano em todos os cantos de sua dimensão bidimensional (largura e altura) e no implícito que é o seu aspecto tridimensional.
Ou seja, deve-se preencher significativamente e com foco perfeitamente nítido (o que é devidamente possibilitado pela tecnologia do I-MAX) todas as áreas da tela, inclusive o fundo – através do qual será reabilitado um outro princípio estilístico muito caro a Bazin: a profundidade de campo. A desfocalização ou focalização seletiva seria um pecado mortal no I-MAX, não só pelas razões bazinianas de que arrancaria ao espectador a liberdade de escolher o que ver e no que prestar atenção, mas pela razão bem prática de que seria um copioso desperdício de muitas dezenas (talvez centenas) de metros quadrados de superfície de exibição que ficariam absolutamente ociosos – mas que, outrossim, poderiam ser aproveitados descritivamente, narrativamente, esteticamente, etc. A não ser que a proposta artística do filme inclua exatamente algo como esses “latifúndios improdutivos” de tela.
Imagine um filme que mostrasse diversos pontos de interesse em cada plano, separados por muitos metros de distância, levando o espectador a virar os olhos grandemente, ou quem sabe a própria cabeça. Mas não é nada que o Cinemascope já não tenha feito. De qualquer maneira, essa questão do grande espaço da tela e dos múltiplos pontos de interesse leva-nos a conclusão de que os filmes em I-MAX deverão trabalhar, o máximo possível, com planos de conjunto, especialmente os paisagísticos (mais uma vez, vêm à memória os velhos épicos e faroestes do Cinemascope). Em O Cavaleiro das Trevas, são as melhores imagens. Entretanto, esse potencial não deve se tornar uma lei. O primeiro plano, principalmente o do rosto humano, hiperbolizado pelo I-MAX pode ganhar uma expressividade e dramaticidade enlouquecedoras (voltam aí as idéias de um outro grande teórico do cinema, Bela Balázs).
Imagine assistir ao Martírio de Joana D’Arc, de Carl. T. Dreyer, numa tela de 21 metros de comprimento por 14 metros de altura (isso porque a tela do I-MAX em São Paulo está “apenas” dentre as 50 maiores do mundo). É por essas e outras que continuo a acreditar no cinema. As tecnologias são instrumentos que apenas os verdadeiros artistas dominarão e utilizarão da maneira a mais significativa. Por ora, o que temos são experiências, testes, explorações e descobertas, aberturas e indicações de caminhos; preparações de terreno para os grandes e futuros gênios, desta ou de outras novas invenções. Batman – O Cavaleiro das Trevas é, como filme de cinema, uma grande obra – a ser vista e revista, pensada e repensada, uma fábula pós-moderna; como cinema em I-MAX, é uma obra cambaleante: são os primeiros passos. Vamos ver o que o futuro nos reserva.